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Wilson Martins


 


Uma experiência anarquista

Jornal do Brasil
17.09.2005

 

 

A extraordinária aventura da Colônia Cecília – comunidade libertária criada nos fins do século 19 em terras do Paraná – encontrou, afinal, em Miguel Sanches Neto o seu romancista por assim dizer predestinado (Um amor anarquista, Rio: Record, 2005). Mais do que trabalho coletivo e na propriedade comum dos proventos, o ideal político de Giovanni Rossi, personagem histórico e narrador, consistia na implantação do amor livre, parte essencial do programa coletivista que propôs: “Eu havia conhecido Adele em novembro de 1891, na Itália, quando falava do amor livre, da necessidade de mudança nos relacionamentos, só quando a mulher não pertencesse a ninguém e os filhos fossem não de um pai, mas da comunidade, a noção de família estaria banida”.

Era não contar com a natureza humana e seus ancestrais instintos de posse, como diria Restilia, mulher de Ernesto Ganazolli: “o dr. Rossi tem lá as idéias dele, anda muito sozinho, e esta mania de falar em amor livre é por não ter se casada ainda; se tivesse mulher e filhos, não ficaria perdendo tempo com tais conversas, está correto lutar por um mundo justo, mas o homem não vive sem família, vive?”. Falava o sólido bom-senso do realismo camponês sem ilusões, condicionado pelos valores tradicionais. Por outro lado, o amor livre logo degenerou em sofrimentos morais e conflitos domésticos (um dos participantes terminaria como ébrio habitual), enquanto, por outro lado, em prostituição abertamente assumida pelo menos por uma das libertárias. Uma solução de emergência e pouco “anarquista” foi contratar mulheres profissionais na cidade vizinha para visitas periódicas.

Também no que se refere à propriedade coletiva e ao trabalho em comum, não tardaram as reclamações e descontentamentos, para nada dizer do que poderiam ter previsto os anarquistas em geral e doutrinários menos idealistas que o dr. Rossi: já na fase de decomposição e em conseqüência dela, a Colônia recebeu um golpe de morte com a fuga de um deles, carregando a caixa da comunidade. O próprio Rossi acabaria por reconhecer o seu malogro: “O principal resultado da Cecília foi o amor livre. O fim da família tradicional deve ser o centro da grande revolução. A liberdade não será conquistada com a destruição de povos, mas com a prática sexual fora da família. Tudo de ruim que aconteceu na Colônia, da mesquinharia ao ciúme e à traição, sempre esteve ligado ao instituto de proteção familiar”.

É fato histórico, posto por Miguel Sanches Neto como núcleo generativo da estrutura narrativa, conforme esclareceu em entrevista a Irinêo Netto, referindo-se à contradição na vida de Rossi: “O defensor do amor livre, o homem que pregava a destruição total do casamento, do poder patriarcal, da paternidade, esse homem culto e com um pensamento científico, que tinha resposta para todas as crises sociais vividas naquela época, intelectual respeitado no meio anarquista da Itália, acaba a vida dentro de um casamento burguês, vivendo com a mulher que ele compartilhou com outros homens para provar que sob o anarquismo não existe mais o conceito de núcleo, de centro, que as partes se relacionam livremente”.

Nesse desfecho está todo o drama pessoal do grande idealista, desmentindo, na prática, o que havia pregado em teoria, depois de tentar aplicá-la de boa-fé e aceitando os imperativos da realidade que havia contestado. É o que Miguel Sanches Neto viu com segura intuição de romancista: no fundo, a tema de todo romance, e não apenas deste, é a condição humana e suas servidões: o anarquista aceitou a proteção benevolente do governo burguês que, de seu lado, tampouco percebeu qualquer contradição em concedê-la. Na verdade, empenhadas em vigorosa política de imigração, foi nessas perspectivas que as autoridades encararam o projeto, fornecendo transporte gratuito da Itália para o Brasil e terras a prazo. O presidente do estado e outras autoridades encontraram-se com Rossi, passando “boa parte da noite em palestra animada, eles me perguntando todos os detalhes sobre nossa Colônia. São homens instruídos, com grande liberalidade de pensamento, estavam informados não só de nossa experiência, mas também das idéias socialistas que florescem em toda a Europa”. O presidente, sem exigir nenhuma reserva mental, declarou: “Há muitas terras, dr. Rossi, para que seus amigos anarquistas testem seus princípios. (...) O governador (sic) gostou de minhas palavras. elogiou muito os anarquistas, dizendo que éramos uma força social sem culto religioso e poderíamos ajudar na melhoria da instrução da província (...)” – acrescentando que iria autorizar a Inspetoria de Terras e Colonização a um dar um subsídio complementar “para ajudar o senhor a trazer seus companheiros para nosssa terra” (carta ao dr. José Franco Grillo, representante do governo junto à Colônia). Era o anarquismo à brasileira, com os anarquistas recebendo subsídios do governo burguês para promover o projeto que se destinava a eliminá-lo...

Numa passagem do romance, entre tantas, Miguel Sanches Neto desvenda o drama íntimo e humano que as teorias e congeminações políticas não conseguiram contornar: “Escolina não respondeu, não tinha nas forças para se afastar de Colli, também sentia o cheiro dele no próprio corpo, mesmo depois do banho, era mais a memória deste cheiro, e nem se lembrava do odor do marido. O marido não deixara memória nela, deixara marcas, o corpo mais gasto de tantas vezes grávida, apenas isso. Não tinha como fingir que gostava com a mesma intensidade do marido, pelo marido que ela tinha afeto, viviam juntos, tinham filhos, mas amar era outra coisa (...)”.

O próprio Rossi, depois que tido acabara, pôde sentir a futilidade dos grandes programas políticos e ideológicos: “Quando morreu Pierina, quem chorou não foi o anarquista, foi o pai, então soube que a gente era realmente uma família, já não havia mais nada do experimento social, todos ali formavam uma única família, e ao nasceu nossa primeira filha, você deu o mesmo nome da morta (...)”. A Colônia consumira-se aos poucos, vítima de seus males de origem: “Alguns dos desertores (...) estão confundindo anarquia com desordem”, muitos deles que se retiraram para Curitiba conheceram destinos diversos: alguns tornaram-se vagabundos e criminosos, enquanto outros foram o núcleo de grandes e importantes famílias da burguesia local – última ironia da grande aventura anarquista.

 



Miguel Sanches Neto, 2002
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24/11/2005