Em nossas letras, Fagundes Varela é figura paradigmática do
poeta maldito, numa escala em que, aliás, não eram os poetas tenebrosos
que faltavam (Melhores poemas, Sel. Antônio Carlos Secchin. São Paulo:
Global, 2005). Em 1861, as Noturnas, seu livro de estréia, continham dez
poemas arcaizantes, prolongando a atmosfera byroniana da Academia de São
Paulo na geração anterior: “A temática do maldito e do errante, do
foragido e desenraizado predomina nesses poucos poemas, escritos no
período em que ele ‘escolhia’ existencialmente a sua própria biografia (O
foragido, Fragmentos, Sobre um túmulo, Tristeza), descontada a espórtula
que pagou à imitação literária e aos lugares-comuns da escola”, observei
na História da inteligência brasileira.
Não era, contudo, e à diferença de tantos outros, uma
atitude literária ou cacoete romântico: era um destino e uma condenação
prometéica. Nas palavras de Antônio Carlos Sechin, “toda a sua vida foi
marcada por desencontros, projetos inconclusos, infortúnios. Na vida
acadêmica, não conseguiu concluir o curso de Direito (...) na vida
afetiva, foi infeliz nos dois casamentos ... dois dos seus filhos morreram
antes do primeiro aniversário... dependia financeiramente do pai.. zanzou,
bêbado, por lugarejos e fazendas fluminenses, declamando de improviso
versos que passaram à tradição oral (...)”.
Nos românticos da geração anterior, o byronismo foi uma
extravagância de juventude; ele, chegando “tarde demais num mundo
demasiadamente velho”, viveu a frustração de não poder competir em
igualdade, menos ainda superar, os marcos que outros haviam plantado antes
dele. Sua vida desregrada foi uma vingança, uma reação de ressentimento.
Era também uma obsessão obscura: em 1865, prefaciando os Cantos e
fantasia, Ferreira de Menezes dizia tratar-se da “ressureição de Álvares
de Azevedo”, mas, acrescento por minha conta, ele apresentava sobre o
autor adolescente da Lira dos vinte anos a vantagem do amadurecimento
emocional e poético. O volume incorporou para sempre à nossa literatura o
“Cântico do Calvário”, além de introduzir uma nota nova no lirismo
amoroso: a desgraça de uma personalidade anormal, condenada sem esperança
à infelicidade e ao sofrimento.
Falecendo em 1875, ele deixou no prelo Anchieta ou O
Evangelho nas selvas, tentativa, ao mesmo tempo, de epopéia cristã e
reafirmação de fidelidade católica e jesuítica, linha de inspiração que
seria retomada por Bittencourt Sampaio, em 1882, com A divina epopéia de
João Evangelista, paráfrase evangélica a colocar na mesma estante da
paráfrase vareliana da história sagrada. De fato, seus mais de oito mil
decassílabos brancos, escreve Antônio Carlos Secchin, “revelam um escritor
de grande domínio técnico, embora o imperativo de obediência à narrativa
do Novo Testamento acabe freando maiores ímpetos de imaginação, reduzindo
o nível do texto a uma mediania algo tediosa ao leitor não particularmente
aficionado do assunto”. É o menos que se pode dizer a respeito de um poema
mais propenso a desencorajar a fé do que a estimulá-la. Para compô-lo em
alto plano poético seria preciso um pensamento poderoso, uma maturidade
filosófica e uma inspiração épica que lhe faltavam por completo,
idealmente imagináveis na pena de um Antônio Vieira, não na do bem
intencionado Anchieta.
Sua incapacidade para tratá-lo aparece desde logo na
ficção de que se serviu: os Evangelhos explicados aos índios, o que
corresponde a ignorar-lhes a grandeza e a essência. Sua tarefa seria,
antes, a de “interpretar” e não a de parafrasear, seria, por assim dizer,
“criá-los” no piano poético, como Victor Hugo criou a história da
humanidade na Légende des siêcles. Quando Varela se atreve a abandonar os
carreiros estreitos da paráfrase é para cair, ou na heresia teológica,
apresentando Sócrates como precursor de Jesus, ou na antecipação malvinda,
com a antevisão do continente americano, ou no anacronismo puro e simples,
colocando os Francos na Gália ao tempo de Jesus. Nesse quadro, surpreende
encontrá-lo compromissado com a realidade social e política do momento, a
exemplo do poema “A estátua eqüestre”, que encerra o volume de 1861.
Trata-se da enorme polêmica que agitara o país em 1855, quando Haddock
Lobo propôs à Câmara Municipal do Rio erguer um monumento ao fundador do
Império, na praça da Constituição. Àquela altura, o projeto não despertou
nenhum antagonismo, abrindo-se o concurso em que foi escolhido o modelo do
escultor Mafra, mandado executar em Paris.
Contudo, ao se aproximar a data da inauguração, os
liberais mais exaltados e os republicanos viram nessa homenagem uma
tentativa dissimulada de revitalizar as instituições monárquicas.
Publicado no momento da inauguração, um poema célebre de Pedro Luís
chamava à estátua “mentira de bronze”, opondo a Pedro I o nome de
Tiradentes como verdadeiro herói da emancipação brasileira. Datado de
1861, o poema de Varela insiste nos mesmos temas, nas mesmas imagens e
paralelos históricos: “Ergue-te ousado sobre o chão da praça,/ Homem de
bronze – imagem de monarca / Simulacro fatal! (...) Raça de ilotas ... por
que reledes o passado escuro / Quando deveras derribar os tronos /
Cantando a liberdade ? // Vota-se à treva o busto dos Andradas, / Some-se
a glória de ferventes mártires / Na lama do ervaçal! / Mas fria a estátua
pisa a turba, como / As dura patas do corcel de bronze / O chão do
pedestal!”.
O poeta também comungou na indignação coletiva por
ocasião da famosa Questão Christie – “diplomata insolente, ave maldita”:
“Dize, filho da sombra, – onde aprendeste / A voar como as àguias ? ”.
Reconheçamos que não estava nada mal no seu gênero, inspirando-lhe ainda,
com o poema “ A São Paulo”, pátria de heróis, berço de guerreiros “, uma
das páginas mais belas e perfeitas de nossa literatura poética, tanto mais
admirável quanto não faz a menor alusão ao incidente diplomático: ”Foi no
teu solo, em borbotões de sangue/ Que a fronte ergueram destemidos bravos
(...). O que, sub-reptícia e ironicamente, significava restituir a Pedro I
o seu papel no processo da Independência... |