Reunindo os "remanescentes dos
anos 60" no velório de um amigo, José Nêumanne Pinto inovou o romance
contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas (O
Silêncio do Delator. São Paulo: A Girafa, 2004).
É a história intelectual e sentimental de uma geração, pontilhada no ritmo
da ação pela música e, sobretudo, pelas letras dos Beatles e de Bob Dylan:
"Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e
crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala
[...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de
carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que
salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós,
da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que
vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga
Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era
sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de
Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor
beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este
ambiente, nada têm a ver com a
morte".
É também o romance das ilusões perdidas, matéria privilegiada dos grandes
romances, "velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta
turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das
próprias intenções, por melhores que fossem. Aqui não jaz meu corpo
apodrecido pelo câncer. Aqui jazem, de certa forma, ideais que ele abrigou
e expôs, burilou e perdeu, ao longo da vida. Aqui jazem algumas ilusões,
espremidas entre as flores neste
caixão".
Pouco importam, a essa altura, as racionalizações compensatórias a que o
morto se entrega: as vitórias e sucessos posteriores dos personagens no
plano mundano apenas encobrem o malogro essencial que os acompanha como um
remorso implacável. Eram todos vitoriosos - à custa de sua autenticidade
profunda. Em brilhante derrota, tinha conquistado o mundo, mas perdido a
alma.
Eram agora "o publicitário famoso, o cantor de sucesso, o burocrata
aplicado, a historiadora persistente, a psicanalista analisada, todos
enfim, até aquele que poderia ter estado ali, mas ninguém cumprimentou nem
por alguém foi cumprimentado, embora alguém pudesse tê-lo notado". Mas,
todos vencidos da vida, segundo Eça de Queiroz, em passagem conhecida,
definiu um desses grupos. Dominando a complexidade da intriga e a
estruturação cronológica (exigindo, como é natural, ativa participação do
leitor), José Nêumanne Pinto assume o seu lugar entre os mestres do
romance contemporâneo, tanto mais que tudo resulta de rigorosa
planificação. Percebe-se que "a voz do morto" é, na verdade, um
desdobramento do autor, propondo os esclarecimentos necessários para poder
acompanhá-lo, enquanto simultaneamente toma consciência do romance como
obra de arte literária, história mental da segunda metade do século 20, em
torno do personagem que "abandona a mulher (que conheceu na adolescência)
com os filhos e a amante casada, para arriscar um segundo casamento com a
primeira paixão da adolescência [...]. Sua primeira idéia era fazer uma
abordagem joyciana do texto ... mas o resultado final ficou tão ruim, a
história se perdia em tantos malabarismos que você resolveu
desistir".
De fato, a partir de Joyce, o romance não pode pretender que Joyce não
existiu, mas o romancista autêntico não se dispõe a imitá-lo servilmente,
mas antes a prosseguir nas incontáveis direções que sugeriu. Um dos sinais
possíveis dessa emancipação genética e o abandono da narrativa linear e
progressiva em favor da composição circular, própria da civilização
eletrônica (Marshall McLuhan tem mais razão e viu mais longe do que
imaginam os críticos superficiais). Cedendo à vaidade inocente de
nos fazer perceber o rigoroso planejamento da intriga -
diferenciando-se dos experimentalismos arbitrários em que tantos se
comprazem - o autor mais uma vez esclarece pela "voz do morto": "eu
bem que desconfiava que sua tática de querer fazer tudo de uma vez
... tinha tudo para malograr. [...] O problema é que você foi
espalhando migalhas no caminho da floresta e os passarinhos se
fartaram, agora você não tem pistas para voltar".
No começo, diz o autor em confissão transposta para a "voz do morto":
"Lembra-se de quando começou este projeto de traçar um inventário de sua
geração num romance-enciclopédia? Pois é, no começo deste relato, no
começo dessa delação, você o situou em 1984. Primeiro, você tentou
escrever sobre um cara que abandona a mulher, amiga de infância, e a
amante, que não tinha nenhuma relação com sua história de vida" – romance
convencional que, como se vê, nada acrescentaria ao romance convencional.
Contudo, Joyce havia existido, tornando obsoletos os romances
convencionais ... fossem quais fossem as suas qualidades intrínsecas
enquanto romances. Em 1922 (ano prodigioso!), ele inaugurava o século 20
literário, e o século 20 literário passou a existir num mundo que, além
dele, era mentalmente configurado pelo cinema e por Bob Dylan, pelos Beatles e por tudo que se incorporou à genética das idéias e dos
sentimentos. Nisso estava, justamente, o roteiro virtual do romance
moderno, pós-balzaquiano com tudo o que significava, isto é, o século 19
com russos e ingleses, franceses e italianos, portugueses e brasileiros...
As ironias da história transfiguraram os jovens revolucionários dos anos
de 1960 (guiados, é preciso dizê-lo, pela idéia mística, não realista, da
revolução), em conservadores desenganados, sem repudiar, bem entendido, a
aventura heróica que haviam vivido. Por esses processos, o autor transmite
o caráter caótico daqueles tempos (como todos os tempos), condicionado,
entretanto, por sua própria lógica interna. História retrospectiva que
introduz coerência no passado, enquanto a atualidade dinâmica, no momento
em que é vivida, é sempre movida por suas "contradições internas" como
diria um esquerdista de manual. Ou a "voz do morto", exprimindo as
inquietações do autor: "este romance está virando um samba de crioulo
doido. Primeiramente porque se já não tinha um espaço definido, agora
também se perde no tempo [...] se tinha um assunto central, o inventário
de uma geração de repente, sem aviso nenhum ao leitor incauto, saltou para
temas que não lhe dizem respeito e que aparentemente com nada se
conectam".
O que, precisamente, é a grande qualidade deste romance como romance.
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