Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

A geração perdida

Gazeta do Povo
22.11.2004

Reunindo os "remanescentes dos anos 60" no velório de um amigo, José Nêumanne Pinto inovou o romance contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas (O Silêncio do Delator. São Paulo: A Girafa, 2004).

É a história intelectual e sentimental de uma geração, pontilhada no ritmo da ação pela música e, sobretudo, pelas letras dos Beatles e de Bob Dylan: "Vista aqui do caixão", diz "a voz do morto", narrador complementar e crítico do autor, "posta em contraste com os círculos espalhados pela sala [...] de viúvas de Elvis Presley e nostálgicos de John Lennon, de fãs de carteirinha de Mick Jagger e saudosos de Jim Morrison, ela tem um viço que salta aos olhos e atinge o plexo solar como um soco de Mike Tyson - nós, da geração de Cassius Marcellus Clay, ou melhor Muhammad Ali; nós, que vimos com um pouco de preconceito o filme de Hollywood com o trânsfuga Mikhail Barishnikov, meu outro xará russo, pensando que aquilo era sobretudo o desperdício de um talento, nós que gostávamos das tiras de Mafalda e Charlie Brown. Pois é: esse viço evidente, esse jeitinho de flor beijada pelo orvalho, esse ar de sereno de madrugada não combinam com este ambiente, nada têm a ver com a morte".
            É também o romance das ilusões perdidas, matéria privilegiada dos grandes romances, "velório de uma geração inteira, o sepultamento do sonho desta turma de gente bem-intencionada, mas que não soube cuidar direito das próprias intenções, por melhores que fossem. Aqui não jaz meu corpo apodrecido pelo câncer. Aqui jazem, de certa forma, ideais que ele abrigou e expôs, burilou e perdeu, ao longo da vida. Aqui jazem algumas ilusões, espremidas entre as flores neste caixão".             

Pouco importam, a essa altura, as racionalizações compensatórias a que o morto se entrega: as vitórias e sucessos posteriores dos personagens no plano mundano apenas encobrem o malogro essencial que os acompanha como um remorso implacável. Eram todos vitoriosos - à custa de sua autenticidade profunda. Em brilhante derrota, tinha conquistado o mundo, mas perdido a alma.

Eram agora "o publicitário famoso, o cantor de sucesso, o burocrata aplicado, a historiadora persistente, a psicanalista analisada, todos enfim, até aquele que poderia ter estado ali, mas ninguém cumprimentou nem por alguém foi cumprimentado, embora alguém pudesse tê-lo notado". Mas, todos vencidos da vida, segundo Eça de Queiroz, em passagem conhecida, definiu um desses grupos. Dominando a complexidade da intriga e a estruturação cronológica (exigindo, como é natural, ativa participação do leitor), José Nêumanne Pinto assume o seu lugar entre os mestres do romance contemporâneo, tanto mais que tudo resulta de rigorosa planificação. Percebe-se que "a voz do morto" é, na verdade, um desdobramento do autor, propondo os esclarecimentos necessários para poder acompanhá-lo, enquanto simultaneamente toma consciência do romance como obra de arte literária, história mental da segunda metade do século 20, em torno do personagem que "abandona a mulher (que conheceu na adolescência) com os filhos e a amante casada, para arriscar um segundo casamento com a primeira paixão da adolescência [...]. Sua primeira idéia era fazer uma abordagem joyciana do texto ... mas o resultado final ficou tão ruim, a história se perdia em tantos malabarismos que você resolveu desistir".

De fato, a partir de Joyce, o romance não pode pretender que Joyce não existiu, mas o romancista autêntico não se dispõe a imitá-lo servilmente, mas antes a prosseguir nas incontáveis direções que sugeriu. Um dos sinais possíveis dessa emancipação genética e o abandono da narrativa linear e progressiva em favor da composição circular, própria da civilização eletrônica (Marshall McLuhan tem mais razão e viu mais longe do que imaginam os críticos superficiais). Cedendo à vaidade inocente de nos fazer perceber o rigoroso planejamento da intriga - diferenciando-se dos experimentalismos arbitrários em que tantos se comprazem - o autor mais uma vez esclarece pela "voz do morto": "eu bem que desconfiava que sua tática de querer fazer tudo de uma vez ... tinha tudo para malograr. [...] O problema é que você foi espalhando migalhas no caminho da floresta e os passarinhos se fartaram, agora você não tem pistas para voltar".

No começo, diz o autor em confissão transposta para a "voz do morto": "Lembra-se de quando começou este projeto de traçar um inventário de sua geração num romance-enciclopédia? Pois é, no começo deste relato, no começo dessa delação, você o situou em 1984. Primeiro, você tentou escrever sobre um cara que abandona a mulher, amiga de infância, e a amante, que não tinha nenhuma relação com sua história de vida" – romance convencional que, como se vê, nada acrescentaria ao romance convencional. Contudo, Joyce havia existido, tornando obsoletos os romances convencionais ... fossem quais fossem as suas qualidades intrínsecas enquanto romances. Em 1922 (ano prodigioso!), ele inaugurava o século 20 literário, e o século 20 literário passou a existir num mundo que, além dele, era mentalmente configurado pelo cinema e por Bob Dylan, pelos Beatles e por tudo que se incorporou à genética das idéias e dos sentimentos. Nisso estava, justamente, o roteiro virtual do romance moderno, pós-balzaquiano com tudo o que significava, isto é, o século 19 com russos e ingleses, franceses e italianos, portugueses e brasileiros...

As ironias da história transfiguraram os jovens revolucionários dos anos de 1960 (guiados, é preciso dizê-lo, pela idéia mística, não realista, da revolução), em conservadores desenganados, sem repudiar, bem entendido, a aventura heróica que haviam vivido. Por esses processos, o autor transmite o caráter caótico daqueles tempos (como todos os tempos), condicionado, entretanto, por sua própria lógica interna. História retrospectiva que introduz coerência no passado, enquanto a atualidade dinâmica, no momento em que é vivida, é sempre movida por suas "contradições internas" como diria um esquerdista de manual. Ou a "voz do morto", exprimindo as inquietações do autor: "este romance está virando um samba de crioulo doido. Primeiramente porque se já não tinha um espaço definido, agora também se perde no tempo [...] se tinha um assunto central, o inventário de uma geração de repente, sem aviso nenhum ao leitor incauto, saltou para temas que não lhe dizem respeito e que aparentemente com nada se conectam". O que, precisamente, é a grande qualidade deste romance como romance. 

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31/12/2005