A releitura de Manuel Bandeira deve
ser feita pela leitura de Ivan Junqueira, quero dizer, a busca de
sua organicidade profunda, para além da ordem cronológica mecânica,
menos ainda pelas ilusórias inserções históricas, critério de
análise que só serve para escritores menores (“Testamento de
Pasárgada”. Antologia poética. 2 ed., rev. Org. e estudos de Ivan
Junqueira. Rio: Nova Fronteira, 2003).
No que se refere à “inserção
histórica”, Bandeira foi um excêntrico, remanescente da
sensibilidade simbolista em pleno fastígio do Modernismo, conforme
ele próprio observou ao declarar-se “associado a uma geração que, em
verdade, não era a minha”. No caso, originava-se na transição
penumbrista em que ele e os seus amigos mais chegados (basta lembrar
Ribeiro Couto) se situavam nos anos privilegiados de formação: era a
deliqüêscência final do Simbolismo, prolongando-se, de forma larvar
pela década seguinte, cujo centro dinâmico estava, aliás, fora do
Rio de Janeiro.
Tal sensibilidade persistiu em
Bandeira até ao fim de sua vida (o que nada tem de surpreendente nem
de anormal). Para o que nos interessa no momento, Ivan Junqueira
estuda, no que bem pode ser o fulcro mesmo da questão, o
condicionamento espiritual (e não apenas as relações intelectuais)
de Bandeira com o Modernismo, ou, se quisermos, o seu caráter
essencial como poeta. É tema a que, com a finura, a competência e a
elegância habituais, Joaquim-Francisco Coelho dedicou um ensaio que,
como acentuei àquela altura, abria perspectivas inteiramente novas à
sua interpretação, desconsiderando ismos, escolas e cronologias
(“Manuel Bandeira pré-modernista”. Rio: José Olympio, 1982). Seu
livro foi publicado dois anos após a primeira edição da antologia de
Junqueira.
Note-se, de passagem, que, apesar das
datas, não há qualquer filiação entre essas obras: dados os
costumeiros atrasos editoriais da José Olympio, pode-se presumir que
os originais de Joaquim-Francisco Coelho já ali se encontravam
quando saiu o livro de Ivan Junqueira, tanto mais que os autores
trabalhavam não só em cidades, mas até em continentes diferentes. Os
modernistas apropriaram-se d’“Os sapos” com muita astúcia, como
brado de guerra, mas o poeta resistiria por uma boa década ao
prestígio das novas correntes: é com “O ritmo dissoluto”, dois anos
depois da Semana, que ele se põe “a caminho da ‘modernidade’ da
expressão”; caberia estender a “Carnaval” o que Joaquim-Francisco
Coelho escreve a propósito da “A cinza das horas”, ou seja, que
Manuel Bandeira andava até então alheio ao vanguardismo já em curso
na Europa: “Quanto aos processos de expressão, perfilham sobretudo
(mas não exclusivamente) os mandamentos da ars poetica do
Parnasianismo, mediante um culto artesanal da forma que radica, é
sabido, no solo do mais puro classicismo”.
A fluidez musical do neo-Simbolismo,
cujas águas já então se confundiam com o chamado Penumbrismo, a
língua melodiosa que não excluia a fala coloquial, a melancolia que
ia de par com a ironia, elementos esses que, pouco “parnasianos”,
pareciam prenunciar o Modernismo — mas só pareceram prenunciá-lo e
logo em seguida passou-se a afirmar que prenunciavam, quando o
Modernismo já se constituíra em escola definida e divisor de águas.
Confirmava-se, no caso, o postulado de T. S. Eliot: as obras novas
alteraram não só a escala de valores do passado, mas até a sua
fisionomia e realidade (W. M. “Pontos de vista”, 11, 1995).
Assim, pode-se concordar com Ivan
Junqueira e Joaquim-Francisco Coelho: é somente , não sobretudo , a
partir de “Libertinagem” (1930) que o poeta encontrará não a sua voz
própria e definitiva , mas a sua voz modernista, que anda longe de
ser definitiva. Porque em 1940, com a “Lira dos cinqüent’anos”, ele
retorna ao soneto, abjurando tacitamente dos anátemas modernistas,
ou, pelo menos, integrando a respectiva tradição na tradição mais
larga da poesia brasileira, assim como, entre 1930 e 1940, havia
integrado a tradição parnasiana e simbolista na tradição modernista
(W. M., id.). Em outras palavras, ele foi pré-modernista até 1930...
Essa é também a lição de Ivan
Junqueira: “Embora tenha de ser reconhecido como precursor e
participante deste movimento literário, Bandeira não deve ser
incluído entre os modernistas enquanto porta-voz do novo ideário
estético (papel este, aliás, que ele efetivamente jamais desempenhou
e ao qual desde sempre se furtou, tendo apenas liderado, como Dante
Milano e Osvaldo Costa, a falange carioca do movimento), e sim como
catalisador de uma reação que desarticulava então toda a pirâmide
sócio-cultural da sociedade remanescente aos horrores e ruínas da
Primeira Guerra Mundial”.
Manuel Bandeira, provindo do
neo-Simbolismo penumbrista, pertencia ao passado imediato. Ora,
escreve ainda Ivan Junqueira, “o passado imediato parecia
infinitamente mais intolerável e indigno do que quaisquer estágios
históricos anteriormente vividos pelo homem enquanto sujeito de
razão, de conhecimento e de cultura. Ou se era modernista, ou não se
era coisa alguma”. Havia, mesmo, irremovíveis incompatibilidades de
temperamento: o Modernismo nasceu e se desenvolveu sob o signo da
Alegria (apesar das críticas depreciativas de Mário de Andrade a
esse princípio central da filosofia de Graça Aranha), enquanto
Bandeira, na demonstração de Ivan Junqueira, viveu e escreveu
dominado pela tristeza: “Ao lirismo de Bandeira se poderiam aplicar
diversas qualificações, mas nenhuma lhe seria tão pertinente quanto
a da tristeza”. Era o homem do sorriso em face das gargalhadas
carnavalescas dos modernistas: o seu era, significativamente, o
“carnaval sem nenhuma alegria”. Era o poeta das reticências
sugestivas e impressionistas, ao lado do expressionismo dos modernos
com os seus pontos de exclamação; era o poeta e o homem da penumbra
em oposição ao sol radiante e pernasiano dos modernistas, celebrado,
entre outros, por Ronald de Carvalho. De fato, o Modernismo nada lhe
devia, mas o que ficou devendo ao Modernismo é mais uma reconstrução
retrospectiva de lugares-comuns simplificadores do que uma realidade
substancial. |