Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Superleituras imaginosas


12.06.2004

Tudo indica que Rubens Eduardo Ferreira Frias é ou foi um talentoso estudante de letras, sofrendo da bulimia de leituras e com a idéia, bem universitária, de que o estilo literário se faz com figuras de linguagem (“A raposa sem as uvas: uma leitura de ‘Ninho de Cobras’, de Lêdo Ivo”. Rio: Academia Brasileira de Letras, 2004). Uma das peculiaridades do romance, acentua ele, está em que o narrador, “à primeira vista tradicional, onisciente, além de empregar vários recursos da narrativa contemporânea: acronia, anacronia, prolepses, subvertendo a seqüência temporal cronológica, emprega as mais diversas figuras retóricas: metonímias, metáforas, elipses, hipalages, zeugmas, sinestesias, sinédoques, etc.” — recursos, claro está, que em nada o distingue ou singulariza, encontrando-se, como se encontram, em qualquer texto literário da qualidade. Além, bem entendido, de substantivos, adjetivos e verbos, para nada dizer das preposições, advérbios e conjunções.

Passando para as reminiscências de leitura que, em Ferreira Frias são inesgotáveis e incoercíveis, percebe-se que ele trabalha por associação de idéias, não se referindo jamais a qualquer aspecto do romance ou matéria correlata sem evocar imediatamente todas as referências possíveis, próximas ou remotas. Eis uma passagem típica:

“Os procedimentos citados conferem a ‘Ninho de cobras’ uma revitalização do realismo, culminando num aprofundamento psicológico e numa densidade e dramatização de conflitos existentes também em grandes mestres da ficção: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Juan Rulfo, Cortázar, Borges e muitos outros. Vargas Llosa, por exemplo, exerceu antes um aprendizado ao traduzir ‘Madame Bovary’, de Flaubert, e escrever um belo ensaio sobre o ficcionista francês: ‘La Orgia perpetua’”.

Percebe-se em tudo isso a dissertação acadêmica “demonstrando” a universalidade de conhecimentos e o domínio da matéria. Ele não perde a oportunidade de explicar, à sua maneira, a ironia implícita no subtítulo: “‘uma história mal contada’ contribui para instaurar a ambigüidade e a ironia, permanente e bastante eficaz em toda a literatura do romancista alagoano. Trata-se da ironia em sua forma ancestral, derivada da Antiga Retórica e empregada com maestria por Sócrates nas praças de Atenas”. Como a história se passa na cidade de Maceió, Ferreira Frias mostra saber que a topologia urbana já foi inspiração característica na literatura e no cinema: “Esta Maceió, revisitada e reinventada no papel, bem poderia ser considerada a protagonista desse texto aquém e além do romance, assim como a Paris de Godard, no filme crítico e iconoclasta intitulado, com humor e talento, ‘Duas ou três coisas que sei sobre ela’”.

A técnica narrativa de Lêdo Ivo, acentua o autor, “assemelha-se à densidade temporal e psicológica de Joyce em ‘Ulisses’, romance da Dublin contemporânea e ao mesmo tempo viva na ficção e na realidade (...)”. São paralelos que, além da evidente impropriedade, jogam sobre os ombros de Lêdo Ivo um peso capaz de esmagá-lo. Ainda aqui a associação de idéias é irresistível: a referência ao “Ulisses” torna automática a seguinte: o texto de Lêdo Ivo está “repleto de encantos (ou encantamentos, segundo a Circe do primeiro ‘Ulisses’?)”. Contudo, a Maceió do romance “só nominalmente corresponde ao original, mas passa por várias transformações, tornando-se um lugar diferente, chegando em alguns casos à idealidade total de ‘Utopia’, ou dos países visitados por Gulliver” (!). Cidade ficcional, diz o autor, que, nessas perspectivas, deve ser vista, antes, como cidade protéica. Seja como for, “corresponde à Macondo, de Gabriel García Márquez em ‘Cien años de soledad’”.

Claro, como há uma raposa no livro de Lêdo Ivo, é natural que Ferreira Frias evoque a sua “congênere” em Saint-Exupéry ou Esopo, mas a nossa é uma raposa ideológica, para além do reino animal e das fábulas medievais: “tendo em vista que a narrativa de ‘Ninho de cobras’ se desenrola durante a ditadura Vargas (embora, nas linhas e entrelinhas, esteja presente a ditadura Médicis, tempo em que o romance foi escrito), a raposa, em sua presença plurissignificativa, representa ainda, e talvez principalmente ( sic !), a liberdade política, o direito à diferença e à divergência. Assim, o seu sacrifício impiedoso corresponde a um ato de perseguição, sacrifício e silenciamento. Dentro deste quadro, ‘Ninho de cobras’ há de ser considerado um romance político , inserido na linhagem do ‘El Señor Presidente’, do guatemalteco Miguel Angel Asturias”. Decididamente, nada escapa a Ferreira Frias!

É tempo (é mais que tempo!) de reler as páginas de morigeradora ironia acrescentadas por Lêdo Ivo à terceira edição de “Ninho de cobras” (Rio: Topbooks, 1997), apontando, justamente, para esses e outros delírios exegéticos propensos a desvendar sentidos profundos, simbólicos ou ideológicos nas obras de literatura. Muitos deles podem figurar, sem desdouro, na história da tolice humana: “As peripécias críticas que se seguiram à publicação de ‘Ninho de cobras’ indicam que uma obra de arte é sempre, ou quase sempre, ambígua e controversial. (...) Para certo leitor ou crítico, a raposa que termina morta a pauladas por alguns policiais significa a liberdade ou o amor sacrificados pelo homem. (...) Não foram poucos os que, na eventual leitura identificadora, encontraram nela o emblema da transgressão (...) mais de um leitor viu no romance uma metáfora do Brasil como nação periférica e dependente (...) um leitor mais avisado enxergou no narrador onisciente e quase invisível a figura do informante”, e assim por diante. A verdade é que o romance se passa em Maceió, deduziu outro leitor com grande argúcia. Um terceiro, fiel às fantasias metodológicas que dominaram, se é que ainda não continuam dominando a universidade, afirmou que o personagem principal era a linguagem.

Peçamos aos deuses da literatura que moderem nos críticos os excessos de imaginação que melhor serviriam aos ficcionistas. Mas, tudo no mundo é mal distribuído, o que não tira a “Ninho de cobras” a condição de ser um dos grandes romances brasileiros.

Link para Lêdo Ivo

 

 

 

 

 

06/01/2006