Tudo indica que Rubens Eduardo
Ferreira Frias é ou foi um talentoso estudante de letras, sofrendo
da bulimia de leituras e com a idéia, bem universitária, de que o
estilo literário se faz com figuras de linguagem (“A raposa sem as
uvas: uma leitura de ‘Ninho de Cobras’, de Lêdo Ivo”. Rio: Academia
Brasileira de Letras, 2004). Uma das peculiaridades do romance,
acentua ele, está em que o narrador, “à primeira vista tradicional,
onisciente, além de empregar vários recursos da narrativa
contemporânea: acronia, anacronia, prolepses, subvertendo a
seqüência temporal cronológica, emprega as mais diversas figuras
retóricas: metonímias, metáforas, elipses, hipalages, zeugmas,
sinestesias, sinédoques, etc.” — recursos, claro está, que em nada o
distingue ou singulariza, encontrando-se, como se encontram, em
qualquer texto literário da qualidade. Além, bem entendido, de
substantivos, adjetivos e verbos, para nada dizer das preposições,
advérbios e conjunções.
Passando para as reminiscências de
leitura que, em Ferreira Frias são inesgotáveis e incoercíveis,
percebe-se que ele trabalha por associação de idéias, não se
referindo jamais a qualquer aspecto do romance ou matéria correlata
sem evocar imediatamente todas as referências possíveis, próximas ou
remotas. Eis uma passagem típica:
“Os procedimentos citados conferem a
‘Ninho de cobras’ uma revitalização do realismo, culminando num
aprofundamento psicológico e numa densidade e dramatização de
conflitos existentes também em grandes mestres da ficção: Machado de
Assis, Graciliano Ramos, Juan Rulfo, Cortázar, Borges e muitos
outros. Vargas Llosa, por exemplo, exerceu antes um aprendizado ao
traduzir ‘Madame Bovary’, de Flaubert, e escrever um belo ensaio
sobre o ficcionista francês: ‘La Orgia perpetua’”.
Percebe-se em tudo isso a dissertação
acadêmica “demonstrando” a universalidade de conhecimentos e o
domínio da matéria. Ele não perde a oportunidade de explicar, à sua
maneira, a ironia implícita no subtítulo: “‘uma história mal
contada’ contribui para instaurar a ambigüidade e a ironia,
permanente e bastante eficaz em toda a literatura do romancista
alagoano. Trata-se da ironia em sua forma ancestral, derivada da
Antiga Retórica e empregada com maestria por Sócrates nas praças de
Atenas”. Como a história se passa na cidade de Maceió, Ferreira
Frias mostra saber que a topologia urbana já foi inspiração
característica na literatura e no cinema: “Esta Maceió, revisitada e
reinventada no papel, bem poderia ser considerada a protagonista
desse texto aquém e além do romance, assim como a Paris de Godard,
no filme crítico e iconoclasta intitulado, com humor e talento,
‘Duas ou três coisas que sei sobre ela’”.
A técnica narrativa de Lêdo Ivo,
acentua o autor, “assemelha-se à densidade temporal e psicológica de
Joyce em ‘Ulisses’, romance da Dublin contemporânea e ao mesmo tempo
viva na ficção e na realidade (...)”. São paralelos que, além da
evidente impropriedade, jogam sobre os ombros de Lêdo Ivo um peso
capaz de esmagá-lo. Ainda aqui a associação de idéias é
irresistível: a referência ao “Ulisses” torna automática a seguinte:
o texto de Lêdo Ivo está “repleto de encantos (ou encantamentos,
segundo a Circe do primeiro ‘Ulisses’?)”. Contudo, a Maceió do
romance “só nominalmente corresponde ao original, mas passa por
várias transformações, tornando-se um lugar diferente, chegando em
alguns casos à idealidade total de ‘Utopia’, ou dos países visitados
por Gulliver” (!). Cidade ficcional, diz o autor, que, nessas
perspectivas, deve ser vista, antes, como cidade protéica. Seja como
for, “corresponde à Macondo, de Gabriel García Márquez em ‘Cien años
de soledad’”.
Claro, como há uma raposa no livro de
Lêdo Ivo, é natural que Ferreira Frias evoque a sua “congênere” em
Saint-Exupéry ou Esopo, mas a nossa é uma raposa ideológica, para
além do reino animal e das fábulas medievais: “tendo em vista que a
narrativa de ‘Ninho de cobras’ se desenrola durante a ditadura
Vargas (embora, nas linhas e entrelinhas, esteja presente a ditadura
Médicis, tempo em que o romance foi escrito), a raposa, em sua
presença plurissignificativa, representa ainda, e talvez
principalmente ( sic !), a liberdade política, o direito à diferença
e à divergência. Assim, o seu sacrifício impiedoso corresponde a um
ato de perseguição, sacrifício e silenciamento. Dentro deste quadro,
‘Ninho de cobras’ há de ser considerado um romance político ,
inserido na linhagem do ‘El Señor Presidente’, do guatemalteco
Miguel Angel Asturias”. Decididamente, nada escapa a Ferreira Frias!
É tempo (é mais que tempo!) de reler
as páginas de morigeradora ironia acrescentadas por Lêdo Ivo à
terceira edição de “Ninho de cobras” (Rio: Topbooks, 1997),
apontando, justamente, para esses e outros delírios exegéticos
propensos a desvendar sentidos profundos, simbólicos ou ideológicos
nas obras de literatura. Muitos deles podem figurar, sem desdouro,
na história da tolice humana: “As peripécias críticas que se
seguiram à publicação de ‘Ninho de cobras’ indicam que uma obra de
arte é sempre, ou quase sempre, ambígua e controversial. (...) Para
certo leitor ou crítico, a raposa que termina morta a pauladas por
alguns policiais significa a liberdade ou o amor sacrificados pelo
homem. (...) Não foram poucos os que, na eventual leitura
identificadora, encontraram nela o emblema da transgressão (...)
mais de um leitor viu no romance uma metáfora do Brasil como nação
periférica e dependente (...) um leitor mais avisado enxergou no
narrador onisciente e quase invisível a figura do informante”, e
assim por diante. A verdade é que o romance se passa em Maceió,
deduziu outro leitor com grande argúcia. Um terceiro, fiel às
fantasias metodológicas que dominaram, se é que ainda não continuam
dominando a universidade, afirmou que o personagem principal era a
linguagem.
Peçamos aos deuses da literatura que
moderem nos críticos os excessos de imaginação que melhor serviriam
aos ficcionistas. Mas, tudo no mundo é mal distribuído, o que não
tira a “Ninho de cobras” a condição de ser um dos grandes romances
brasileiros. |