Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Homem do mundo


10.07.2004

As “melhores crônicas” de Ignácio de Loyola Brandão estão entre as melhores jamais escritas no Brasil (Sel. Cecília de Almeida Salles. São Paulo: Global, 2004). Autor em plena maturidade intelectual e com o “saber de experiência feito” (e não “experiências” como dizem os que citam Camões de ouvido — “experiência” sendo uma coisa, e “experiências” coisa inteiramente diversa) — mas, como ia dizendo, Rastignac de província partindo para a conquista do mundo, observador de arguto espírito crítico, jornalista com olho para o insólito e também para a banalidade em que ninguém repara, cada uma das suas crônicas propõe a idéia platônica da crônica enquanto espécie literária.

É o mestre dos instantâneos urbanos, em Araraquara, em São Paulo, em Berlim, em qualquer lugar onde se estabeleça o unanimismo dos estranhos que deixam por um momento de ser estranhos entre si: “Por muitos anos, existiu uma tarefa impossível. Conseguir táxi depois das cinco e meia da tarde. Iniciado o rush , pronto! Quem deu sorte, deu! E nas festas de fim de ano?”. E, a qualquer hora nos dias de chuva ou de neve?, acrescento por minha conta. Loyola Brandão está ligado à cidade de São Paulo por ambivalentes sentimentos de amor e ódio: “Não é fácil caminhar em São Paulo. Para fazê-lo, temos de manter os olhos baixos. Não podemos nos distrair, é preciso vigiar a calçada. Claro que corremos o risco de dar encontrões. (...) Se não olhamos para baixo podemos cair, enfiar o pé num buraco, topar num montinho de entulho, escorregar no lixo, pisar em bosta de cachorro. Se estiver chovendo, tire o cavalo da chuva. Ou saia você da chuva. São poças, pocinhas, lagoas, igarapés, nos quais vamos metendo os pés”. Soa-lhe familiar, caro leitor, meu semelhante, meu irmão?

Mais exigente que Moisés, Loyola arrolou 28 proibições no seu decálogo, para tornar mais tolerável a vida urbana. É a litania característica de todas as nossas cidades. Por que não se proíbem: “carros que param sobre a faixa de pedestres... carros que estacionam sobre as calçadas... motoristas que não respeitam o sinal para pedestres... buracos nas ruas... carrocinhas que despejam entulho por toda a parte, emporcalhando a cidade... filas duplas diante das escolas... ônibus e caminhões com escapamentos laterais (...)?”. O caderno de queixas é infinito, sempre endereçado aos prefeitos resguardados nos seus castelos kafkianos. A explicação é simples: falta-nos ainda civilização suficiente para viver em cidades, enquanto, por outro lado, prefeitos e altas autoridades não andam de ônibus e muito menos a pé, por paradoxo nada sabem dos problemas urbanos na vida do dia a dia.

Estamos no Brasil e em São Paulo: “Até que, de repente, contemplamos nossa cidade de fora e admitimos: como a suportamos? Por que não protestamos e nos conformamos em viver num lugar esburacado, calçadas podres, ruas sujas, poluição visual? Que sentimento masoquista é este? E por que não lutamos contra os que a tornam feia?”. Ele não deixa de lutar e, se lhe perguntam se quer ir embora, responde que não, sem hesitar, pelas mesmas razões irracionais que levam os cariocas a permanecer no Rio, os parisienses em Paris e os londrinos em Londres.

Permanece, entretanto, na memória afetiva a Araraquara da infância, o mundo quotidiano que se tornou mirífico, apesar do impulso por assim dizer orgânico que o levou a dar o grande salto: “Foi há 40 anos”, escreveu em 1997, “apanhei o trem das 6h05m e desci em São Paulo às 11h10m. A pontualidade da Companhia Paulista era férrea, germânica, irritante. Mais tarde, o governador Carvalho Pinto estatizou e esculhambou, foram por água abaixo as ferrovias que funcionavam (...)”. Depois disso, veio a fase das privatizações obsessivas, porque o Brasil caminha, em tudo, ao ritmo caprichoso das tentativas e erros, ou das tentativas cheias de erros, como disse Mário de Andrade, tudo subproduto das fantasias burocráticas.

Esse o “domínio público” do cronista Loyola Brandão, ligado às cidades, às viagens, aos choques culturais, aos usos e costumes do mundo estranho e alheio, como dizia o romancista. Mas, há também as páginas, não menos interessantes, inspiradas no “domínio íntimo”, no tempo perdido, na memória sentimental, na angústia das horas fugitivas, como, por exemplo, as evocações da figura paterna, “homem contido”, pouco propenso às expansões emocionais. Eis a bela história da ponte da Escócia: “Essa ponte era a menina dos olhos de meu pai, para usar expressão daquele tempo. Ele passava horas diante daquelas fotos e me explicava o moderno e formidável (palavra que usava com parcimônia e reservava para grandes situações) sistema desenvolvido para erguer os pilares de concreto dentro do rio. (...) Em 1991, fui à Escócia produzir um especial para a ‘Vogue’. (...) Súbito, antes de chegar à cidade o trem começou a atravessar uma ponte gigantesca” — era “a ponte”! No dia seguinte, seu primeiro cuidado foi adquirir o volume comemorativo da construção: “Ao voltar, corri a Araraquara para entregá-lo ao velho Antônio, agora com 86 anos e só então começando a desanimar um pouco. (...) Seus olhos brilhavam, suas mãos se agitaram (...)”.

Essa crônica pertence idealmente à série dos “‘Acasos’ do cotidiano”, como os episódios dos óculos perdidos, primeiro num táxi do Rio, depois numa papelaria de Paris. O motorista carioca guardou-os, devolvendo-os, meses depois, à atriz Suzana Vieira, passageira ocasional, reconhecida como a pessoa com quem ele então viajara. Em Paris, feitas as compras, ele acreditou tê-los enfiado no bolso: “Eles devem ter caído na calçada, alguém os encontrou, entregou, a loja os expôs, prevendo que o dono poderia passar por ali e retirar”. Não estavam à venda (era uma loja de decoração), ali ficando na vitrine, à sua espera, para quando os acasos da vida o levassem de novo pela mesma rua.

São os acasos sucessivos que vão tramando o tecido das existências, recebendo o nome de “destino” ou “predestinação”, conforme o gosto de cada um. Os acasos foram metamorfoseando ao longo dos anos o menino de Araraquara em homem do mundo, cosmopolita e inquieto.

 
 

 

 

 

 

09/01/2006