As “melhores crônicas” de Ignácio de
Loyola Brandão estão entre as melhores jamais escritas no Brasil (Sel.
Cecília de Almeida Salles. São Paulo: Global, 2004). Autor em plena
maturidade intelectual e com o “saber de experiência feito” (e não
“experiências” como dizem os que citam Camões de ouvido —
“experiência” sendo uma coisa, e “experiências” coisa inteiramente
diversa) — mas, como ia dizendo, Rastignac de província partindo
para a conquista do mundo, observador de arguto espírito crítico,
jornalista com olho para o insólito e também para a banalidade em
que ninguém repara, cada uma das suas crônicas propõe a idéia
platônica da crônica enquanto espécie literária.
É o mestre dos instantâneos urbanos,
em Araraquara, em São Paulo, em Berlim, em qualquer lugar onde se
estabeleça o unanimismo dos estranhos que deixam por um momento de
ser estranhos entre si: “Por muitos anos, existiu uma tarefa
impossível. Conseguir táxi depois das cinco e meia da tarde.
Iniciado o rush , pronto! Quem deu sorte, deu! E nas festas de fim
de ano?”. E, a qualquer hora nos dias de chuva ou de neve?,
acrescento por minha conta. Loyola Brandão está ligado à cidade de
São Paulo por ambivalentes sentimentos de amor e ódio: “Não é fácil
caminhar em São Paulo. Para fazê-lo, temos de manter os olhos
baixos. Não podemos nos distrair, é preciso vigiar a calçada. Claro
que corremos o risco de dar encontrões. (...) Se não olhamos para
baixo podemos cair, enfiar o pé num buraco, topar num montinho de
entulho, escorregar no lixo, pisar em bosta de cachorro. Se estiver
chovendo, tire o cavalo da chuva. Ou saia você da chuva. São poças,
pocinhas, lagoas, igarapés, nos quais vamos metendo os pés”. Soa-lhe
familiar, caro leitor, meu semelhante, meu irmão?
Mais exigente que Moisés, Loyola
arrolou 28 proibições no seu decálogo, para tornar mais tolerável a
vida urbana. É a litania característica de todas as nossas cidades.
Por que não se proíbem: “carros que param sobre a faixa de
pedestres... carros que estacionam sobre as calçadas... motoristas
que não respeitam o sinal para pedestres... buracos nas ruas...
carrocinhas que despejam entulho por toda a parte, emporcalhando a
cidade... filas duplas diante das escolas... ônibus e caminhões com
escapamentos laterais (...)?”. O caderno de queixas é infinito,
sempre endereçado aos prefeitos resguardados nos seus castelos
kafkianos. A explicação é simples: falta-nos ainda civilização
suficiente para viver em cidades, enquanto, por outro lado,
prefeitos e altas autoridades não andam de ônibus e muito menos a
pé, por paradoxo nada sabem dos problemas urbanos na vida do dia a
dia.
Estamos no Brasil e em São Paulo: “Até
que, de repente, contemplamos nossa cidade de fora e admitimos: como
a suportamos? Por que não protestamos e nos conformamos em viver num
lugar esburacado, calçadas podres, ruas sujas, poluição visual? Que
sentimento masoquista é este? E por que não lutamos contra os que a
tornam feia?”. Ele não deixa de lutar e, se lhe perguntam se quer ir
embora, responde que não, sem hesitar, pelas mesmas razões
irracionais que levam os cariocas a permanecer no Rio, os
parisienses em Paris e os londrinos em Londres.
Permanece, entretanto, na memória
afetiva a Araraquara da infância, o mundo quotidiano que se tornou
mirífico, apesar do impulso por assim dizer orgânico que o levou a
dar o grande salto: “Foi há 40 anos”, escreveu em 1997, “apanhei o
trem das 6h05m e desci em São Paulo às 11h10m. A pontualidade da
Companhia Paulista era férrea, germânica, irritante. Mais tarde, o
governador Carvalho Pinto estatizou e esculhambou, foram por água
abaixo as ferrovias que funcionavam (...)”. Depois disso, veio a
fase das privatizações obsessivas, porque o Brasil caminha, em tudo,
ao ritmo caprichoso das tentativas e erros, ou das tentativas cheias
de erros, como disse Mário de Andrade, tudo subproduto das fantasias
burocráticas.
Esse o “domínio público” do cronista
Loyola Brandão, ligado às cidades, às viagens, aos choques
culturais, aos usos e costumes do mundo estranho e alheio, como
dizia o romancista. Mas, há também as páginas, não menos
interessantes, inspiradas no “domínio íntimo”, no tempo perdido, na
memória sentimental, na angústia das horas fugitivas, como, por
exemplo, as evocações da figura paterna, “homem contido”, pouco
propenso às expansões emocionais. Eis a bela história da ponte da
Escócia: “Essa ponte era a menina dos olhos de meu pai, para usar
expressão daquele tempo. Ele passava horas diante daquelas fotos e
me explicava o moderno e formidável (palavra que usava com
parcimônia e reservava para grandes situações) sistema desenvolvido
para erguer os pilares de concreto dentro do rio. (...) Em 1991, fui
à Escócia produzir um especial para a ‘Vogue’. (...) Súbito, antes
de chegar à cidade o trem começou a atravessar uma ponte gigantesca”
— era “a ponte”! No dia seguinte, seu primeiro cuidado foi adquirir
o volume comemorativo da construção: “Ao voltar, corri a Araraquara
para entregá-lo ao velho Antônio, agora com 86 anos e só então
começando a desanimar um pouco. (...) Seus olhos brilhavam, suas
mãos se agitaram (...)”.
Essa crônica pertence idealmente à
série dos “‘Acasos’ do cotidiano”, como os episódios dos óculos
perdidos, primeiro num táxi do Rio, depois numa papelaria de Paris.
O motorista carioca guardou-os, devolvendo-os, meses depois, à atriz
Suzana Vieira, passageira ocasional, reconhecida como a pessoa com
quem ele então viajara. Em Paris, feitas as compras, ele acreditou
tê-los enfiado no bolso: “Eles devem ter caído na calçada, alguém os
encontrou, entregou, a loja os expôs, prevendo que o dono poderia
passar por ali e retirar”. Não estavam à venda (era uma loja de
decoração), ali ficando na vitrine, à sua espera, para quando os
acasos da vida o levassem de novo pela mesma rua.
São os acasos sucessivos que vão
tramando o tecido das existências, recebendo o nome de “destino” ou
“predestinação”, conforme o gosto de cada um. Os acasos foram
metamorfoseando ao longo dos anos o menino de Araraquara em homem do
mundo, cosmopolita e inquieto. |