Nos 85 anos decorridos desde o seu
aparecimento até à edição anotada por Isabel Lustosa (São Paulo:
Companhia das Letras, 2004), a “História do Brasil pelo método
confuso”, de Mendes Fradique, foi perdendo gradativamente o seu
potencial humorístico como um líquido quente que se evaporasse na
atmosfera: falta-lhe agora o contexto que a tornava engraçada. O
manancial inesgotável do humorismo pátrio àquela altura eram as
piadas sobre negros, judeus e portugueses, hoje condenadas como
politicamente incorretas (nem por isso menos populares).
Lembre-se que nas duas primeiras
décadas do século XX a opinião pública no Rio de Janeiro era
furiosamente antilusitana, conhecendo campanhas jornalísticas e
conflitos de rua da mais extrema violência. João do Rio, por
exemplo, tido como defensor dos interesses da colônia, foi
fisicamente agredido por um grupo de valorosos oficiais da Marinha,
ofendidos nos seus brios nacionalistas. É constrangedor pensar que
os ataques mais sórdidos contra ele provinham de Humberto de Campos,
escritor então prestigioso, hoje completamente esquecido.
É nessas perspectivas que cabe situar
o que Mendes Fradique escreveu sobre a famosa travessia do Atlântico
pelos pilotos portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral: “Essa
coisa de virem Cabrais dar com os lusitanos costados em terras do
Brasil é, sabiamente ( sic , por sabidamente), um mau costume, que
vem de longa data. (...) A odisséia de Gago e Cabral é, em toda a
linha, uma reprise da aventura de 1500. Apenas diferem as
proporções, cabendo a Saca-Gago a feição mais modesta. Cabral I
tinha uma esquadra; Cabral II um avião. Cabral I acompanhou-se de
uma expedição; Cabral II acompanhou-se de um Gago. (...) Houve na
colônia quem afirmasse que Sacadura e Gago se haviam feito
acompanhar de 150 homens portugueses pura blague — os 150 homens
portugueses nada mais foram do que uma interpretação errônea dos 150
HP, potência do motor do Fairey 17”.
Os leitores terão apreciado a finura
do trocadilho, sendo justo mencionar que os brasileiros não eram
tampouco poupados, nomeadamente os políticos e os poderosos do
momento, além de figuras conhecidas, entre outras o historiador
Capistrano de Abreu que as más línguas diziam refratário à água e ao
sabonete, tudo glosado por Mendes Fradique em diversas passagens, ao
mesmo tempo em que não economizava ironias sobre nomes de pessoas e
casas comerciais, para nada dizer das biografias fantasiosas e
anacrônicas a respeito de altas personalidades, como, por exemplo,
Venceslau Braz: “Pela primeira vez, das praias da Galiléia, onde
levava uma vida de pobre pescador, moveu-se Venceslau, o Taciturno ,
em busca de regiões menos sujeitas à voracidade territorial que
ilustra a civilização dos povos do Noroeste Europeu. Emigrou para
Alexandria, onde encontrou o seu primo Absalão. (...) Fez-se
vendedor de relíquias; vendeu a Eça de Queiroz oitocentas ferraduras
da jumenta que conduziu ao Egito a Sagrada Família (...). ...nessa
ocasião chegava a Alexandria o cronista internacional João do Rio,
vindo de Constantinopla, vestido ainda de odalisco (...)”.
Claro, o fim do governo Venceslau foi
dominado por Pinheiro Machado, objeto de um dos melhores perfis. No
trecho transcrito há numerosas alusões e subentendidos que nem todos
os leitores dos nossos dias serão capazes de perceber. O que nos
leva às anotações de Isabel Lustosa na ingente tarefa de identificar
personalidades, fatos históricos e obras literárias. Era o tempo em
que jornalistas e escritores citavam autores franceses no original,
sem necessidade das traduções parentéticas que, segundo parece, se
tornaram agora indispensáveis. Contudo, esses cuidados maternais
estão estimulando a preguiça mental, no pressuposto de que não se
deve exigir nenhum esforço do leitor, entre outros o de consultar o
dicionário. Assim mesmo, é pouco provável que seja necessário
explicar o significado de palavras comuns, como cavação, cassange,
cabalar, carraspana, sarilho, alarve, bestunto, à tripa forra,
carrancismo, tresandar, belquior e assim por diante. Quem necessita
de cuidados dessa natureza corre o risco de tomar literalmente esta
passagem: “Diogo (Álvares Correia) munido de habeas-corpus
perambulava calmamente pelas ruas da urbe. Era terça-feira de
Carnaval. Chegando à praça Onze, aderiu a um cordão que estava
causando sucesso, as Marrões Glaceis da Cidade Nova, constituído em
sua maioria por selvagens da tribo dos tupiniquins. (...)
Separando-se do cordão às quatro horas da madrugada, dirigiram-se o
Diogo e Paraguaçu ao mercado, onde tomaram um fartão de ostras cruas
ao parati. (...) ...a foliona, já um pouco alegre, não pôde manter o
disfarce, dando-se então a conhecer ao companheiro: não era
Paraguaçu, chamava-se Catarina e era polaca. Caramuru desabou”.
É preciso estar bem familiarizado com
o estilo de Rui Barbosa para apreciar em sua justa medida a paródia
exemplar incluída como prefácio apócrifo: “Agora que venho de
terminar a leitura desse chefe d’obra, apresso-me em patentear a
minha alta admiração (...). Um simples golpe de vista, e o seu
trabalho fez-me escrever-lhe o nome do autor no rol dos que não
desanimam, dos que não temem, dos que não lêem, dos que não votam,
dos que não medem, dos que não têm senso comum, dos que não pensam,
dos que não se avacalham, dos que se não vendem por pouco dinheiro;
mas trabalham, mas penetram, mas ousam, mas escrevem, mas imprimem,
mas publicam, mas impingem, mas praticam a gaucheria, o civismo, a
cavação, o cabotinismo, o amor, a virtude, a coragem, e surgem e
lutam e levam na cabeça”.
Mendes Fradique escreveu seu mea culpa
no capítulo “Oásis”: “Eu, na qualidade de bom brasileiro, não deixei
de hostilizá-lo com a minha pilhéria plebéia e irreverente (...).
Rui Barbosa, isolado na grandeza de sua inteligência, é a expressão
máxima da inteligência nacional” — palavras canhestras que lhe
demonstram a inaptidão para o estilo solene e grandiloqüente. Mas,
não resistiu por muito tempo: Rui Barbosa “não foi prosaico como
Wilson. Deixando a vida pública (...) recolheu-se à privada”. |