Antigamente, a escola era risonha e
franca: o autor escrevia o seu livro, oferecia-o com bajulatória
introdução a algum poderoso do momento, que, por sua vez, o
gratificava com maior ou menor generosidade, permitindo-lhe pagar o
impressor e matar a fome por algum tempo. Nessa tradição de nobres
antecedentes, a história criou a instituição do mecenato,
transformando em substantivo comum o nome de Mecenas, magnífico
protetor do poeta Horácio, cuja arte poética fixou as regras do
pensamento literário durante séculos.
Aí estava a mais longínqua semente da
mercantilização progressiva do trabalho intelectual, até ao momento
em que se começou a falar de direitos autorais: a essa altura, o
autor o manuscrito de uma vez por todas, sem qualquer outro retorno
por parte do impressor. Daí a palavra copyright , que, como o nome
indica, é o direito sobre a cópia, sobre os originais adquiridos,
transformados em objetos de comércio pelas leis vigentes de compra e
venda. A propriedade passava do autor para o livreiro ou impressor:
“A relação dos profissionais das corporações organizadas com os
autores de livros, desde que teve início a atividade de imprimir e
comercializar livros, era de simples compra e venda de um
manuscrito, como outro produto qualquer. Os autores vendiam suas
obras por um valor determinado, abrindo mão de seus direitos de
publicação e de futuros royalties , ainda que o livro viesse a se
popularizar e o livreiro obtivesse altos lucros. De acordo com a
regulação da Coroa (inglesa), aquele que adquirisse um manuscrito
adquiria também o direito exclusivo de cópia de seu conteúdo, isto
é, o copyright , a ser registrado no livro da corporação, mediante a
inscrição do nome do adquirente” (Marisa Gandelman. “Poder e
conhecimento na economia global: o regime internacional da
propriedade intelectual da sua formação às regras de comércio
atuais”. Rio: Civilização Brasileira, 2004).
Observe-se, a título de curiosidade,
que era precisamente por esse regime que, em pleno século XIX,
Machado de Assis vendia as suas obras ao editor Garnier. Tudo havia
começado na Inglaterra, sendo apenas natural, em retrospecto, que a
idéia haja surgido nessa nação de comerciantes, cujo talento passou,
no devido tempo, aos seus descendentes de ultramar: “Criado em 1709,
o Estatuto de Anne ou Copyright Act reflete uma mudança na forma de
entender o tema e o foco da regulação. O novo estatuto pretendia
regular o comércio de livros. Entre outras coisas, reduziu o prazo
de proteção da obra. (...) O estatuto reconheceu o autor como
proprietário de seu trabalho. (...) Até então, os autores eram
mantidos por patronos ou mecenas, e não pelo mercado”.
O que estava por trás de tudo isso,
lembra Marisa Gandelman, “era a batalha comercial entre vários
grupos de livreiros. (...) A limitação do prazo, reflexo de um
contexto em que florescia o pensamento liberal, feria os interesses
dos livreiros de Londres — o Cartel de Londres, que desde a criação
da corporação dos livreiros (Stationers’s Company) dominava e
monopolizava a atividade”. Transcorreram dois séculos de avanços,
recuos e estagnações para que se aceitasse na prática a idéia da
propriedade intelectual, processo de mudança marcado, segundo Marisa
Gandelman, por três momentos-chave: a) criação da União de Paris e
da União de Berna no fim do século XIX; b) criação da OMPI
(Organização Mundial da Propriedade Intelectual) na década de 1960;
c) criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) na década de
1990.
O conceito de propriedade intelectual,
em germe, no plano teórico, desde o século XVI, chegou aos nossos
dias com tais e tantas modificações que o tornariam irreconhecível
pelos tratadistas anteriores, sobretudo a partir dos começos do
século XX e cada vez mais à medida que avança o seguinte. É que
entraram em ação avanços técnicos até então insuspeitados,
nomeadamente os de natureza eletrônica. Há um menino novo no bairro,
chamado Computador: “A inclusão dos programas de computador na lista
de obras protegidas consagra a tendência à ampliação do conceito de
propriedade e sua extensão a todas as formas de criatividade
humana”.
Já o cinema, arte coletiva entre todas
e, afinal de contas, puramente mecânica, resistiu quanto pôde ao
reconhecimento da propriedade intelectual. Durante muito tempo
discutiu-se a respeito de quem era o “autor” do filme, até que a
questão foi resolvida com a fuga para a frente: criou-se o “cinema
de autor”, que, na verdade, sempre existiu, mas pretende dar uma
formulação jurídica para o problema. A indústria cinematográfica,
escreve Marisa Gandelman, “durante muito tempo se opôs à adesão a
Berna, justamente em razão da cláusula dos direitos morais. Bettig
explica que os produtores contratavam roteiristas para criar
histórias a serem filmadas e precisavam ter toda a liberdade para
modificá-las de acordo com seus orçamentos de produção, ou para
garantir um bom retorno de bilheteria”.
Era um falso problema, facilmente
resolvido pela forma habitual, isto é, pagando em moeda corrente
todos os interessados. A ironia está em que os estúdios, comprando
obras literárias com os livreiros do século XVIII compravam os
manuscritos, e os autores, vendendo-as pelo mesmo princípio,
retomaram as práticas que o princípio da propriedade intelectual se
propôs a abolir. Em nossos dias, os autores mais intransigentes
quanto aos seus direitos morais, são os primeiros a insistir no
pagamento das cópias xerox tiradas dos seus livros — no que, bem
entendido, estão associados soa editores.
Há um subcapítulo interessante em toda
essa história: “Os Estados Unidos não aderiram à Convenção de Berna
até o fim da década de 1980”, passando a fazer parte “com a intenção
de mudar o regime na direção que entedia ser a correta, e que era
muito diferente da tradição de pensamento adotado pelo texto
original de acordo”. Para mudá-lo, entretanto, era preciso aderir à
Convenção, o que acabaram fazendo com a intenção, conclui Marisa
Gandelman, “de modificar o acordo e incrementar seus recursos de
poder para determinar como deve operar o mercado de bens e serviços
que dependem da propriedade intelectual”.
Tema aparentemente pacífico, os
direitos autorais tiveram, como estamos vendo, uma história
movimentada e conflituosa, o que sempre acontece quando o dinheiro
está em causa. O que eu, de minha parte, estou longe de censurar. |