Assim, pouco a pouco, Manuel Bandeira
regressa do purgatório em que são confinados os grandes escritores
falecidos, voltando, em geral, com algumas correções às idéias
feitas, às verdades aceitas e aos lugares-comuns dos manuais. Uma
leitura superficial catalogou-o desde logo entre os modernistas, o
que ele, aliás, expressamente desautorizou — equívoco reforçado pelo
diálogo epistolar que durante 22 anos manteve com Mário de Andrade.
Ora, essa amizade literária foi, antes de mais nada e nas suas
estratificações profundas, um exercício de conciliação e superação
de contrários (Ruy Espinheira Filho. “Forma & alumbramento: poética
e poesia em Manuel Bandeira”. Rio: José Olympio/Academia Brasileira
de Letras, 2004).
Nossas relações, escrevia Mário de
Andrade ao correspondente já em setembro de 1923, “foram sempre
assim. Tu a dares, eu a receber”, síntese perfeita das suas posições
recíprocas. Ele conceituava o amigo como seu Mentor, imagem retórica
que surpreende no vocabulário de um modernista, mas a ser aqui
tomada em todo o rigor do que significa. Mário confessava receber
com “docilidade por demais” as críticas do amigo, abertas e francas,
e até impiedosas, observa Ruy Espinheira. Na verdade, Bandeira
procurava morigerar os excessos “modernistas” e experimentais do
amigo, reagindo, de resto, com o seu próprio temperamento, mas a
franqueza ia às vezes longe demais, com as inevitáveis tensões de
amor próprio, a tal ponto que Bandeira sentiu necessidade de
amenizá-la: “A facilidade com que vais aceitando as minhas sugestões
atemorizam-me. Vê lá. Pesa-as bem, (...) Tomaste muito à conta de
correções o que fui lançando rapidamente à margem dos teus poemas.
Aquilo tudo eram apenas sugestões”.
Mas, não eram apenas “sugestões” o que
escreveu sobre “Paulicéia desvairada”: “neologismos fabricados por
necessidade ocasional de expressão, sem nenhum propósito de
diferenciação brasileira, como ‘luscofuscolares’, ‘suaviloqüência’,
‘jacotam’, etc.; um gosto de substantivar advérbios (...)
estendendo-se aos advérbios em ‘mente’ (Sentimentos em mim do
asperamente... os perenementes da ligação mensal (...)”. Mais feroz
ainda foi a sua leitura de “Macunaíma”, antecipando o que Mário de
Andrade reconheceria mais tarde, isto é, tratar-se de obra-prima que
não saiu obra-prima. Ele achava que o Macunaíma adulto não tinha a
mesma vida do “Macunaíma crila”, pondo, sem querer, o dedo no
defeito fundamental: a história perde gradativamente de interesse,
tornando-se irreparavelmente tediosa. Eis as partes que Bandeira
achava “chatas”: as em que se “adensam algumas lendas cheias de
detalhes... a Carla prás Icamiabas, paulificação horrorosa...
vernáculo sem sabor nenhum (...)”, e assim por diante.
O que não é nada perto do que escreveu
a respeito de “Há uma gota de sangue em cada poema”, em 1925:
considerava-o “uma merda”, violência de linguagem que procurou
amenizar na carta seguinte: achava tudo “muito ruim”, mas, apesar
disso, “um ruim diferente dos outros ruins, um ruim esquisito”,
expressão que faria fortuna, inclusive junto ao interessado: “O que
faço questão é que você não esqueça duma expressão inefável que você
empregou duas vezes em duas cartas diferentes sobre o meu
passadismo: um ruim esquisito. Não posso me lembrar dessa expressão
de você sem rir gostoso. É tão verdadeira!”.
Mário de Andrade é maior que a sua
obra, é nele que geralmente se concentra o interesse dos exegetas e
historiadores. Quanto a isso, Bandeira formulou o juízo crítico
essencial: “A sua obra vai ser como as de Fagundes Varela e Castro
Alves, uma coisa grandalhona de que a gente não pode gostar em
bloco, mas tem que aceitar em bloco”. Revelando insegurança mais
comum entre principiantes, Bandeira submeteu à leitura do amigo os
originais de suas poesias, antes de mandá-las à impressão, com o que
teve a surpresa muito comum nesses casos: “Antes de entregar meus
versos à tipografia, mandei-os a você, pedindo-lhe que os
criticasse: o meu desejo era que você fizesse com eles o que eu, a
seu pedido, faço com os seus: uma espinafração isenta de qualquer
medo de magoar ou melindrar — crítica de sala de jantar de família
carioca, de pijama e chinelo sem meia. Você tirou o corpo fora e
limitou-se a aconselhar a supressão de um soneto. Se você tivesse me
dado outros conselhos, o meu livro sairia mais magro porém
certamente mais belo”.
Não tendo lido os originais, Mário de
Andrade colocou-se, entretanto, em posição extremamente suspeita, ao
criticar o livro de maneira desfavorável na “Revista do Brasil”, ao
que Bandeira reagiu, como seria de esperar, surpreso pela
duplicidade que o amigo reconheceu: “Fiquei corrido de vergonha e
principalmente triste. É verdade. Essa mesma censura eu me tenho
feito várias vezes e não discuto: é verdade (...)” — seguindo-se
laboriosas justificações para o que não tinha nenhuma: “Esquece o
que te fiz”, concluía ele, sabendo que essas coisas não se esquecem
nem perdoam. Bandeira, de seu lado, “defendeu” os poemas censurados,
num gesto que, de qualquer maneira, dava o assunto por encerrado.
Figura antonomástica do Modernismo,
Mário de Andrade morreu simbolicamente em 1945, abrindo o vácuo em
que a geração seguinte se despenhou, sem outro projeto que o de
substituir, enquanto escola, o movimento de 22. Segundo João Cabral,
aqui citado, “a Geração de 45 não tem nenhum poeta original”, mas se
enganava ao atribuir-lhe a invenção a Lêdo Ivo. Na verdade, o nome e
a coisa foram lançados por Domingos Carvalho da Silva, no Congresso
de Poesia de São Paulo, o que, aliás, não tira a Lêdo Ivo a condição
de grande poeta que é a sua, por oposição aos pálidos eruditos da
Retórica que em sua maior parte a constituíam.
Na observação de Mário de Andrade, sua
correspondência com o amigo escapava ao “estilo epistolar” em que os
escritores geralmente se comprazem. Um e outro escreviam “de
pijama”, primeiro sinal de autêntica espontaneidade, “contando
coisas, dizendo palavrões, discutindo problemas estéticos e
sociais... sem mandar respeitos à excelentíssima esposa... sem
dançar minuetos sobre eleições acadêmicas e doenças do fígado
(...)”. Que esse tom não nos engane, entretanto, porque os
correspondentes, ao contrário, eram profissionais que levavam
extremamente a sério a dignidade das letras e das artes. |