Transplantadas para o Brasil, as
instituições e estruturas jurídicas portuguesas foram um poderoso
fator de unidade nacional, criando entre os habitantes o sentimento
de solidariedade e igualdade perante a lei, tanto nas relações civis
quanto no conjunto das leis penais. Escravos e índios situavam-se,
por definição, fora desse quadro (o que se prolongou até a
República), áreas sociológicas e históricas em que “era precária ou
inexistente a ordem estatal portuguesa”, aspecto peculiar das
conhecidas distinções entre o país real e o país legal. Daí a
importância de estudos como o de Arno Wehling e Maria José Wehling
que, para além do interesse específico, projetam luzes sobre a
civilização brasileira (“Direito e justiça no Brasil colonial: o
Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808)”. Rio: Renovar,
2004).
Quiseram os fatos que, no Brasil, o
Estado chegasse junto com a sociedade, ou talvez antes, como queria
Oliveira Viana: em matéria de organização social, recebemos prontas,
acabadas e funcionando as instituições públicas de que
necessitávamos, como prolongamento implícito da metrópole que assim
se transferia para a colônia, embora as novas terras passassem a
existir em regime colonial. Nesse quadro, os tribunais da Relação,
“que funcionavam na Bahia e no Rio de Janeiro, exerceram também
funções para muito além das cortes de primeira instância ou de
apelação. Consultoria a governadores e vice-reis, definição de
limites entre capitanias, sindicâncias policiais em navios e várias
outras intervenções de caráter político e administrativo assinalam a
latitude de suas responsabilidades, fora da esfera judicial”.
Era qualquer coisa como um superpoder
ou poder paralelo, “instância intermediária entre os juízes
monocráticos — como magistrados ordinários, juízes de fora e
ouvidores — e o tribunal superior da Casa de Suplicação. Cabia-lhe
aplicar a justiça real, exercendo no seu âmbito o papel do ‘juiz
legal’ que se definiu com a afirmação do absolutismo, com o qual se
excluíam, ou buscavam-se excluir, as demais justiças concorrentes”.
Assim tomamos contato com figuras como juízes de fora, ouvidores,
desembargadores e outros da hierarquia judiciária, cujo papel
determinava e circunscrevia a vida da colônia, não raro com
conflitos de jurisdição ou de vaidade, de inevitáveis ressonâncias
humorísticas. Foi do que se aproveitaram, entre outros, José de
Alencar e Machado de Assis nos poemas herói-cômicos intitulados “O
Almada” sobre as desavenças entre D. Manuel de Sousa Almada,
presbítero do hábito de S. Pedro, e o administrador da Prelazia do
Rio de Janeiro, alcaide-mor Tomé Correia de Alvarenga, conforme o
relato de Baltazar da Silva Lisboa nos “Anais do Rio de Janeiro”.
Em atividade por cerca de meio século,
o Tribunal da Relação fundiu-se, afinal, com a Casa da Suplicação,
instalada no Rio pela vinda da família real. A competência do
tribunal estendia-se ao julgamento dos crimes políticos,
colocando-nos em cheio na vida brasileira como nação e como Estado:
“No caso dos sete julgamentos políticos que couberam ao Tribunal da
Relação, deve ser lembrado que ocorreram no clima do ‘despotismo
esclarecido’, três sob Pombal, dois outros no ano de sua queda e os
dois últimos sob o trauma da Revolução Francesa e o temor à sua
disseminação. Foram eles o processo dos jesuítas (1759), o da perda
da Colônia do Sacramento (1762), o da perda do Rio Grande (1763), o
da queda da Ilha de Santa Catarina (1777), o da nova e definitiva
perda da Colônia do Sacramento (1777), o da Conjuração Mineira
(1789) e o da Conjuração Carioca (1794)”.
Na composição do Tribunal, “havia
clara discriminação por motivos étnicos ou religiosos. O ingresso à
magistratura era vedado a mulatos, ciganos ou cristãos-novos, a este
aspecto era parte da inquirição que fazia o corregedor encarregado
da investigação sobre a ascendência e a vida do bacharel-candidato”.
Para manter a boa perspectiva, lembremos que restrições idênticas
existiam nas ordens religiosas, havendo, mesmo, o caso conhecido em
que o padre Antônio Vieira defendia com argúcia jurídico-jesuítica a
proibição de entrada, nos colégios da Companhia, a candidatos negros
e mulatos — colégios, entretanto, subsidiados pelo poder público.
O fato de chamar-se “do Ouvidor” o que
por muito tempo foi a principal rua da cidade dá idéia da “presença”
do personagem na vida coletiva. Era, dizem os autores, “peça
fundamental do mecanismo absolutista com a finalidade de acentuar o
caráter justiceiro do rei e de quebrar as resistências locais. (...)
deveria eliminar a opressão de almoxarifes, escrivães e outros
funcionários sobre os povos, suprimir os focos de resistência à
arrecadação real, dirimir conflitos entre câmaras municipais,
inspecionar a defesa das vilas, os conventos e mosteiros, bem como a
condição das prisões”, e assim por diante em competência
praticamente irrestrita. Até 1609, quando foi pela primeira vez
criado o tribunal baiano, os ouvidores eram a autoridades máxima
desta área, de suas sentenças cabendo recurso à Casa de Suplicação
ou, excepcionalmente, ao governador-geral.
Também no Brasil colônia havia queixas
contra a morosidade da Justiça e seu excessivo formalismo, o que
decorria, segundo os autores, de três ordens de problemas: os
inerentes à organização da Justiça e do Estado português; os
especificamente coloniais; e aqueles que, embora inerentes a
Portugal, agravavam-se no Brasil. O que mais os agravava, creio eu,
era a distância geográfica, sabendo-se que a travessia marítima
levava então cerca de dois meses (quando tudo corria bem), ou seja,
quatro meses apenas para a circulação dos papéis. Acrescentando-se a
demora natural dos julgamentos, percebe-se que a morosidade
acumulava-se sobre si mesma.
Tudo isso se passava em tempos
pré-montesquianos, quando, na prática, não havia separação de
poderes. Assim, o governador da capitania do Rio de Janeiro, chefe,
em termos modernos, do poder executivo, exercia a presidência da
Relação (que era o poder judiciário), contaminações semelhantes
ocorrendo em todos os graus da escala hierárquica: embora em forma
de pirâmide, as estruturas eram verticais. A liturgia dos cargos e
instituições, até hoje perpetuada com bastante desgaste, era então o
primeiro “sinal exterior” de sacralidade. Era uma “formalidade vazia
de conteúdo”, perguntam os autores, ou possuía um “significado
intrínseco”? Digamos que tinham, e têm, o significado que lhe
queiramos atribuir. |