Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

O espírito das leis


21.08.2004

Transplantadas para o Brasil, as instituições e estruturas jurídicas portuguesas foram um poderoso fator de unidade nacional, criando entre os habitantes o sentimento de solidariedade e igualdade perante a lei, tanto nas relações civis quanto no conjunto das leis penais. Escravos e índios situavam-se, por definição, fora desse quadro (o que se prolongou até a República), áreas sociológicas e históricas em que “era precária ou inexistente a ordem estatal portuguesa”, aspecto peculiar das conhecidas distinções entre o país real e o país legal. Daí a importância de estudos como o de Arno Wehling e Maria José Wehling que, para além do interesse específico, projetam luzes sobre a civilização brasileira (“Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808)”. Rio: Renovar, 2004).

Quiseram os fatos que, no Brasil, o Estado chegasse junto com a sociedade, ou talvez antes, como queria Oliveira Viana: em matéria de organização social, recebemos prontas, acabadas e funcionando as instituições públicas de que necessitávamos, como prolongamento implícito da metrópole que assim se transferia para a colônia, embora as novas terras passassem a existir em regime colonial. Nesse quadro, os tribunais da Relação, “que funcionavam na Bahia e no Rio de Janeiro, exerceram também funções para muito além das cortes de primeira instância ou de apelação. Consultoria a governadores e vice-reis, definição de limites entre capitanias, sindicâncias policiais em navios e várias outras intervenções de caráter político e administrativo assinalam a latitude de suas responsabilidades, fora da esfera judicial”.

Era qualquer coisa como um superpoder ou poder paralelo, “instância intermediária entre os juízes monocráticos — como magistrados ordinários, juízes de fora e ouvidores — e o tribunal superior da Casa de Suplicação. Cabia-lhe aplicar a justiça real, exercendo no seu âmbito o papel do ‘juiz legal’ que se definiu com a afirmação do absolutismo, com o qual se excluíam, ou buscavam-se excluir, as demais justiças concorrentes”. Assim tomamos contato com figuras como juízes de fora, ouvidores, desembargadores e outros da hierarquia judiciária, cujo papel determinava e circunscrevia a vida da colônia, não raro com conflitos de jurisdição ou de vaidade, de inevitáveis ressonâncias humorísticas. Foi do que se aproveitaram, entre outros, José de Alencar e Machado de Assis nos poemas herói-cômicos intitulados “O Almada” sobre as desavenças entre D. Manuel de Sousa Almada, presbítero do hábito de S. Pedro, e o administrador da Prelazia do Rio de Janeiro, alcaide-mor Tomé Correia de Alvarenga, conforme o relato de Baltazar da Silva Lisboa nos “Anais do Rio de Janeiro”.

Em atividade por cerca de meio século, o Tribunal da Relação fundiu-se, afinal, com a Casa da Suplicação, instalada no Rio pela vinda da família real. A competência do tribunal estendia-se ao julgamento dos crimes políticos, colocando-nos em cheio na vida brasileira como nação e como Estado: “No caso dos sete julgamentos políticos que couberam ao Tribunal da Relação, deve ser lembrado que ocorreram no clima do ‘despotismo esclarecido’, três sob Pombal, dois outros no ano de sua queda e os dois últimos sob o trauma da Revolução Francesa e o temor à sua disseminação. Foram eles o processo dos jesuítas (1759), o da perda da Colônia do Sacramento (1762), o da perda do Rio Grande (1763), o da queda da Ilha de Santa Catarina (1777), o da nova e definitiva perda da Colônia do Sacramento (1777), o da Conjuração Mineira (1789) e o da Conjuração Carioca (1794)”.

Na composição do Tribunal, “havia clara discriminação por motivos étnicos ou religiosos. O ingresso à magistratura era vedado a mulatos, ciganos ou cristãos-novos, a este aspecto era parte da inquirição que fazia o corregedor encarregado da investigação sobre a ascendência e a vida do bacharel-candidato”. Para manter a boa perspectiva, lembremos que restrições idênticas existiam nas ordens religiosas, havendo, mesmo, o caso conhecido em que o padre Antônio Vieira defendia com argúcia jurídico-jesuítica a proibição de entrada, nos colégios da Companhia, a candidatos negros e mulatos — colégios, entretanto, subsidiados pelo poder público.

O fato de chamar-se “do Ouvidor” o que por muito tempo foi a principal rua da cidade dá idéia da “presença” do personagem na vida coletiva. Era, dizem os autores, “peça fundamental do mecanismo absolutista com a finalidade de acentuar o caráter justiceiro do rei e de quebrar as resistências locais. (...) deveria eliminar a opressão de almoxarifes, escrivães e outros funcionários sobre os povos, suprimir os focos de resistência à arrecadação real, dirimir conflitos entre câmaras municipais, inspecionar a defesa das vilas, os conventos e mosteiros, bem como a condição das prisões”, e assim por diante em competência praticamente irrestrita. Até 1609, quando foi pela primeira vez criado o tribunal baiano, os ouvidores eram a autoridades máxima desta área, de suas sentenças cabendo recurso à Casa de Suplicação ou, excepcionalmente, ao governador-geral.

Também no Brasil colônia havia queixas contra a morosidade da Justiça e seu excessivo formalismo, o que decorria, segundo os autores, de três ordens de problemas: os inerentes à organização da Justiça e do Estado português; os especificamente coloniais; e aqueles que, embora inerentes a Portugal, agravavam-se no Brasil. O que mais os agravava, creio eu, era a distância geográfica, sabendo-se que a travessia marítima levava então cerca de dois meses (quando tudo corria bem), ou seja, quatro meses apenas para a circulação dos papéis. Acrescentando-se a demora natural dos julgamentos, percebe-se que a morosidade acumulava-se sobre si mesma.

Tudo isso se passava em tempos pré-montesquianos, quando, na prática, não havia separação de poderes. Assim, o governador da capitania do Rio de Janeiro, chefe, em termos modernos, do poder executivo, exercia a presidência da Relação (que era o poder judiciário), contaminações semelhantes ocorrendo em todos os graus da escala hierárquica: embora em forma de pirâmide, as estruturas eram verticais. A liturgia dos cargos e instituições, até hoje perpetuada com bastante desgaste, era então o primeiro “sinal exterior” de sacralidade. Era uma “formalidade vazia de conteúdo”, perguntam os autores, ou possuía um “significado intrínseco”? Digamos que tinham, e têm, o significado que lhe queiramos atribuir.

 
 

 

 

 

 

09/01/2006