Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Lições dos dispersos


21.08.2004

O chamado amor cortês, invenção hipócrita ao mesmo tempo literária e religiosa, jamais existiu na realidade, “partindo do pressuposto de que o amor cortês occitânico era uma sublimação do sentimento amoroso entre o trocador-amante e a dama, de situação superior e sempre casada, um amor adúltero portanto”. Como era diferente o amor em Portugal! Os trovadores galego-portugueses, nas suas cantigas de amor e, principalmente, de amigo, celebravam em regra o amor ingênuo, um simples namoro entre um cavaleiro ou infanção e a dona-virgo, tudo isso levando os estudiosos da literatura medieval “a conceder a esses textos uma pureza de sentimentos que a maioria está longe de possuir” (Celso Cunha. “Sob a pele das palavras”. Dispersos. Rio: Nova Fronteira/ Academia Brasileira de Letras, 2004).

Na realidade, “o amor cortês se opõe diretamente às leis do matrimônio, pois que, se o objeto do amor é em geral uma mulher casada, o amante nunca é o marido. A dama desejada com intensa devoção pertence quase sempre a um estamento superior ao do homem (...) as damas objeto do culto amoroso dos trovadores eram em regra mulheres casadas”, era a poesia do adultério poetizado, na qual “Deus protege sempre os amantes e despreza os maridos ciumentos”.

Tudo isso ocorria no mesmo momento em que a Igreja, reagindo, por um lado, contra a natureza misógina do catolicismo e, por outro, contra a corrupção dos costumes, promoveu o primeiro movimento de sacralização da virgindade, repetindo na mariolatria do século XIX, estudado por Charles Boxer em livro que merece mais atenção do que lhe tem sido dada (“Mary and misogyny”, 1975). Foi uma mudança de paradigma (para usar a terminologia de Thomas Kuhn), consolidada desde então através dos séculos. Nas palavras de Georges Duby, citado por Celso Cunha, “majestosamente, a Virgem introduz-se na piedade do século XI, rodeada de toda uma escolta de santas pecadoras; esperança das prostitutas, Madalena triunfa em Vézelay e na Provença. Ora, no mesmo momento em que se inicia o desvio do Cristianismo para valores femininos, começava-se a exaltar a mulher nas cortes cavaleirescas das terras do Loire e do Poitou. (...) O culto da Virgem e o culto da dama procedem de movimentos distintos, desenvolvidos no fundo das mentalidades e de que a história mal entrevê ainda a força e os ritmos. Mas respondem-se”.

Respondem-se de maneira contraditória e mutuamente compensatória, acrescento eu, porque à Igreja convinha aceitar a convenção de que o amor cortês nada tinha de erótico nem de pecaminoso, amor idealizado e inocente, paralelo ao culto da virgindade como programa de vida. Dois fenômenos na aparência diversos, eram mais complementares e congeniais do que imaginaríamos e do que nos fizeram crer os manuais escolares e os professores ingênuos. O que, aliás, nada tem de surpreendente, se lembrarmos a salacidade do trocador Arnaut Daniel, que os concretistas, desencaminhados por Ezra Pound, tornaram célebre no Brasil a propósito da palavra noigandres , que escreviam com maiúscula e diziam designar a “obra em progresso”, adotando-a como emblema da sua escola. Ora, desde 1904, Emil Levy havia matado a charada ao revelar que noi gandres era a noz moscada, utilizada como condimento afrodisíaco pelo trovador-cozinheiro para despertar os sentidos da mulher amada. Por que Ezra Pound, conhecendo os trabalhos de Levy, decidiu ocultar-lhe o nome, é procedimento infelizmente muito comum na vida literária (V. W. M. “A Crítica literária no Brasil”, II, 2002).

Afinal de contas, nada tinham de inocente os líricos trovadores da Idade Média! Dentre os dispersos de Celso Cunha reunidos neste volume, cabe lembrar as belas páginas dedicadas aos seus mestres, nomeadamente Antenor Nascentes, antes lingüista que filólogo, observa ele, “pelo temas idiomáticos de sua preferência e pelo modo de enfocá-los”: “Infatigável no trabalho. Nascentes estendeu a sua curiosidade por campos variados. Traduziu e editou várias obras consagradas, escreveu livros de viagens e de teoria musical, mas, examinando em conjunto a sua apreciável bibliografia, vemos que a parte mais valiosa corresponde às três preocupações que lhe foram permanentes na vida científica: o estudo do léxico da língua portuguesa, no seu aspecto formal, semântico e histórico; a recolha e descrição dos falares brasileiros; e a modernização do ensino do idioma”.

Foi, também, a personificação do professor ideal: “Que diferença encontraria entre a figura ríspida da história lendária do colégio e aquele professor exigente mas bondoso, que foi encontrar na universidade, que facultava sua biblioteca particular aos que desejavam realmente aprender, que saía de seus hábitos morigerados para ficar até altas horas da madrugada, a debater os complexos fatos românticos com jovens ainda inexperientes, que iam tirá-lo de suas comodidades!”.

Tendo sido paraninfo da primeira turma de bacharéis em jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia (1950), Celso Cunha abordou a questão que hoje parece haver readquirido atualidade, isto é, a conveniência e até a necessidade de cursos universitários da matéria, instituídos em 1943 pelo decreto-Lei 5.480. Como a má-fé é um subproduto inevitável das polêmicas, afirma-se agora, como sempre, que ninguém necessita de “diploma” para ser bom jornalista. Mas, não se trata de “diploma”, mas, sim, da cultura geral transmitida de forma sistemática e orgânica nos bons cursos universitários, para além dos conhecimentos técnicos e práticos que, de fato, só se adquirem na tarimba. Ou, como dizia Georges Weil, citado por Celso Cunha, “as escolas conseguem formar jornalista melhores (...) elas têm a vantagem de eliminar um certo número de ignorantes e de incapazes, e de aumentar os conhecimentos, elevando assim o nível intelectual dos futuros jornalistas”.

Fora disso, o jornalismo será sempre um exercício de improvisação, às vezes com brilhantes resultados, para nada dizer dos jornalistas que foram, ou são, grandes escritores, mestres do estilo e da língua, para o que, bem entendido, não existe diploma.

 
 

 

 

 

 

09/01/2006