O chamado amor cortês, invenção
hipócrita ao mesmo tempo literária e religiosa, jamais existiu na
realidade, “partindo do pressuposto de que o amor cortês occitânico
era uma sublimação do sentimento amoroso entre o trocador-amante e a
dama, de situação superior e sempre casada, um amor adúltero
portanto”. Como era diferente o amor em Portugal! Os trovadores
galego-portugueses, nas suas cantigas de amor e, principalmente, de
amigo, celebravam em regra o amor ingênuo, um simples namoro entre
um cavaleiro ou infanção e a dona-virgo, tudo isso levando os
estudiosos da literatura medieval “a conceder a esses textos uma
pureza de sentimentos que a maioria está longe de possuir” (Celso
Cunha. “Sob a pele das palavras”. Dispersos. Rio: Nova Fronteira/
Academia Brasileira de Letras, 2004).
Na realidade, “o amor cortês se opõe
diretamente às leis do matrimônio, pois que, se o objeto do amor é
em geral uma mulher casada, o amante nunca é o marido. A dama
desejada com intensa devoção pertence quase sempre a um estamento
superior ao do homem (...) as damas objeto do culto amoroso dos
trovadores eram em regra mulheres casadas”, era a poesia do
adultério poetizado, na qual “Deus protege sempre os amantes e
despreza os maridos ciumentos”.
Tudo isso ocorria no mesmo momento em
que a Igreja, reagindo, por um lado, contra a natureza misógina do
catolicismo e, por outro, contra a corrupção dos costumes, promoveu
o primeiro movimento de sacralização da virgindade, repetindo na
mariolatria do século XIX, estudado por Charles Boxer em livro que
merece mais atenção do que lhe tem sido dada (“Mary and misogyny”,
1975). Foi uma mudança de paradigma (para usar a terminologia de
Thomas Kuhn), consolidada desde então através dos séculos. Nas
palavras de Georges Duby, citado por Celso Cunha, “majestosamente, a
Virgem introduz-se na piedade do século XI, rodeada de toda uma
escolta de santas pecadoras; esperança das prostitutas, Madalena
triunfa em Vézelay e na Provença. Ora, no mesmo momento em que se
inicia o desvio do Cristianismo para valores femininos, começava-se
a exaltar a mulher nas cortes cavaleirescas das terras do Loire e do
Poitou. (...) O culto da Virgem e o culto da dama procedem de
movimentos distintos, desenvolvidos no fundo das mentalidades e de
que a história mal entrevê ainda a força e os ritmos. Mas
respondem-se”.
Respondem-se de maneira contraditória
e mutuamente compensatória, acrescento eu, porque à Igreja convinha
aceitar a convenção de que o amor cortês nada tinha de erótico nem
de pecaminoso, amor idealizado e inocente, paralelo ao culto da
virgindade como programa de vida. Dois fenômenos na aparência
diversos, eram mais complementares e congeniais do que imaginaríamos
e do que nos fizeram crer os manuais escolares e os professores
ingênuos. O que, aliás, nada tem de surpreendente, se lembrarmos a
salacidade do trocador Arnaut Daniel, que os concretistas,
desencaminhados por Ezra Pound, tornaram célebre no Brasil a
propósito da palavra noigandres , que escreviam com maiúscula e
diziam designar a “obra em progresso”, adotando-a como emblema da
sua escola. Ora, desde 1904, Emil Levy havia matado a charada ao
revelar que noi gandres era a noz moscada, utilizada como condimento
afrodisíaco pelo trovador-cozinheiro para despertar os sentidos da
mulher amada. Por que Ezra Pound, conhecendo os trabalhos de Levy,
decidiu ocultar-lhe o nome, é procedimento infelizmente muito comum
na vida literária (V. W. M. “A Crítica literária no Brasil”, II,
2002).
Afinal de contas, nada tinham de
inocente os líricos trovadores da Idade Média! Dentre os dispersos
de Celso Cunha reunidos neste volume, cabe lembrar as belas páginas
dedicadas aos seus mestres, nomeadamente Antenor Nascentes, antes
lingüista que filólogo, observa ele, “pelo temas idiomáticos de sua
preferência e pelo modo de enfocá-los”: “Infatigável no trabalho.
Nascentes estendeu a sua curiosidade por campos variados. Traduziu e
editou várias obras consagradas, escreveu livros de viagens e de
teoria musical, mas, examinando em conjunto a sua apreciável
bibliografia, vemos que a parte mais valiosa corresponde às três
preocupações que lhe foram permanentes na vida científica: o estudo
do léxico da língua portuguesa, no seu aspecto formal, semântico e
histórico; a recolha e descrição dos falares brasileiros; e a
modernização do ensino do idioma”.
Foi, também, a personificação do
professor ideal: “Que diferença encontraria entre a figura ríspida
da história lendária do colégio e aquele professor exigente mas
bondoso, que foi encontrar na universidade, que facultava sua
biblioteca particular aos que desejavam realmente aprender, que saía
de seus hábitos morigerados para ficar até altas horas da madrugada,
a debater os complexos fatos românticos com jovens ainda
inexperientes, que iam tirá-lo de suas comodidades!”.
Tendo sido paraninfo da primeira turma
de bacharéis em jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia
(1950), Celso Cunha abordou a questão que hoje parece haver
readquirido atualidade, isto é, a conveniência e até a necessidade
de cursos universitários da matéria, instituídos em 1943 pelo
decreto-Lei 5.480. Como a má-fé é um subproduto inevitável das
polêmicas, afirma-se agora, como sempre, que ninguém necessita de
“diploma” para ser bom jornalista. Mas, não se trata de “diploma”,
mas, sim, da cultura geral transmitida de forma sistemática e
orgânica nos bons cursos universitários, para além dos conhecimentos
técnicos e práticos que, de fato, só se adquirem na tarimba. Ou,
como dizia Georges Weil, citado por Celso Cunha, “as escolas
conseguem formar jornalista melhores (...) elas têm a vantagem de
eliminar um certo número de ignorantes e de incapazes, e de aumentar
os conhecimentos, elevando assim o nível intelectual dos futuros
jornalistas”.
Fora disso, o jornalismo será sempre
um exercício de improvisação, às vezes com brilhantes resultados,
para nada dizer dos jornalistas que foram, ou são, grandes
escritores, mestres do estilo e da língua, para o que, bem
entendido, não existe diploma. |