Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Mestre e discípulo


09.10.2004

Em José Lins do Rego (1901-1957), o ensaísmo completa a ficção, acrescentando-lhe novas dimensões, talvez despercebidas, e até subestimadas, pelos leitores dos volumes individuais (“O cravo de Mozart é eterno”. Crônica e ensaios. Ed. Lêdo Ivo. Rio: José Olympio, 2004). Nesta coletânea, as páginas mais importantes para a sua biografia intelectual e para a história do pensamento brasileiro são as dedicadas a Gilberto Freyre, em cujas relações ele representou o papel de discípulo submisso e fervoroso em face do herói civilizador que então regressava à província natal: “Conheci Gilberto Freyre em 1923. Foi numa tarde de Recife, do nosso querido Recife, que nos encontramos, e de lá para cá a minha vida foi outra, foram outras as minhas leituras, os meus entusiasmos”.

Lins do Rego datava desse encontro a sua “existência literária (...) e a minha aprendizagem com o mestre da minha idade se iniciava sem que eu sentisse as lições. Começou uma vida a agir sobre outra com tamanha intensidade, com tal força de compreensão, que eu me vi sem saber dissolvido, sem personalidade, tudo pensando por ele, tudo resolvendo, tudo construindo como ele fazia”. O impacto foi extraordinário e ambivalente, porque, à medida que o mestre forjava a nova personalidade do discípulo, destruía-lhe, por isso mesmo, a personalidade original, com o resultado de torná-lo o romancista paradigmático por excelência do que se convencionou chamar, na década de 1930, o “romance do Nordeste” em sua definição mais pura, quero dizer, sem programa político como em Jorge Amado, sem o inevitável pitoresco, como em Rachel de Queiroz, e, menos ainda, a matéria psicológica de Graciliano Ramos, sem dependências necessárias com a região, exceto nos contos de “Vidas secas”, quando o intratável Graciliano se deixou contaminar, por um momento, pelas modas reinantes: “Graciliano Ramos é um retratista sem fundo. Tudo nele se concentra no que é homem, no que é a tragédia de ser homem. Os seus romances, por esta maneira, ganharam em profundidade (...). Os homens e as mulheres, até os bichos que ele cria, são criaturas que carregam a vida como o maior castigo”.

O mais paradoxal é que esse herói civilizador não era um herói modernizador, antes pelo contrário, pois a sua mensagem consistia em conservar ou recuperar o passado desaparecido (já então grandemente idealizado): “Fomos juntos a Igaraçu (...) as casas e as árvores, as igrejas, as velhas ruas esburacadas, as pobres freiras com os pés nos chinelos, o convento de Santo Antônio com o seu tristonho claustro, tudo vinha para ele como as coisas mais belas do mundo. (...). O Pernambuco que Gilberto Freyre queria para a sua paixão, para os seus regalos, para a sua ternura, era o Pernambuco que ninguém via, o subterrâneo ínfimo, que dera os senhores de engenho fidalgos, os padres rebelados, os bispos trágicos e o povo capaz de expulsar os holandeses e fazer o carnaval mais alegre do mundo”.

Regressando ao Brasil no momento em que os modernistas de São Paulo já haviam promovido a sua revolução estética (na qual, em teoria, Gilberto Freyre deveria encaixar-se), razões de temperamento e, talvez, o despeito de se ver ultrapassado, levou-o a posicionar-se desde logo numa atitude de hostilidade, arrastando consigo o discípulo bem-amado. De fato, o romance nordestino, antes de ser nordestino, estava implicitamente no programa modernista — mas só começou a ser escrito tardiamente, em 1926, com “O estrangeiro”, e em 1928, com “A bagaceira”. Já então, entretanto, viram-se desmonetizados pelos nordestinos, cujos romances, aliás, foram escritos no Rio de Janeiro.

Ocorreu, então, a ruptura rancorosa que transformou os dois pernambucanos em “inimigos” do modernismo, muito embora, anos mais tarde, reconhecendo o erro que havia cometido, Gilberto Freyre afirmasse e reafirmasse que o movimento regionalista do Recife também tinha sido um modernismo “à sua maneira”, procurando absorver ou reconciliar o inconciliável. Mas, quando Lins do Rego escreveu o prefácio a “Região e tradição”, as feridas ainda estavam abertas: “Havia nessa época o movimento modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência”.

A verdade é que, tanto Gilberto Freyre quanto Lins do Rego acabaram incorporados, pela força das coisas, à história do modernismo, em cujo universo intelectual “Casa grande & senzala” e o romance de Lins do Rego acabariam como obras representativas, com o sentido profundo implantado em São Paulo na Semana de 1922. Dois anos mais tarde (um ano depois do regresso de Gilberto Freyre), o modernismo chegava “oficialmente” ao Nordeste pelas mãos de Joaquim Inojosa. Acresce que, apesar das aparências, o brasileirismo programático dos modernistas também era implicitamente regionalista e saudosista (a “descoberta” das cidades históricas!), de forma que os antagonismos eram mais aparentes do que substanciais, tanto que, a longo prazo, acabaram por se conciliar: “Casa grande & senzala” é, em sua natureza real, uma das obras fundamentais do modernismo.

Como os discípulos são sempre mais radicais que os mestres, Lins do Rego, homem, afinal de contas, afável e generoso, substitui as restrições matizadas de Gilberto Freyre pelo bate-boca puro e simples: “Se o sr. Milliet conhecesse a história da arte...” (!), o que, aliás, não o impedia de ocasionalmente acertar na mosca: “A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação” — e isto, que é definitivo: “Canaã” “não é um grande romance, mas é um grande livro”. Ser capaz de tais distinções revela um escritor congenial com a coisa literária.

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09/01/2006