Em José Lins do Rego (1901-1957), o
ensaísmo completa a ficção, acrescentando-lhe novas dimensões,
talvez despercebidas, e até subestimadas, pelos leitores dos volumes
individuais (“O cravo de Mozart é eterno”. Crônica e ensaios. Ed.
Lêdo Ivo. Rio: José Olympio, 2004). Nesta coletânea, as páginas mais
importantes para a sua biografia intelectual e para a história do
pensamento brasileiro são as dedicadas a Gilberto Freyre, em cujas
relações ele representou o papel de discípulo submisso e fervoroso
em face do herói civilizador que então regressava à província natal:
“Conheci Gilberto Freyre em 1923. Foi numa tarde de Recife, do nosso
querido Recife, que nos encontramos, e de lá para cá a minha vida
foi outra, foram outras as minhas leituras, os meus entusiasmos”.
Lins do Rego datava desse encontro a
sua “existência literária (...) e a minha aprendizagem com o mestre
da minha idade se iniciava sem que eu sentisse as lições. Começou
uma vida a agir sobre outra com tamanha intensidade, com tal força
de compreensão, que eu me vi sem saber dissolvido, sem
personalidade, tudo pensando por ele, tudo resolvendo, tudo
construindo como ele fazia”. O impacto foi extraordinário e
ambivalente, porque, à medida que o mestre forjava a nova
personalidade do discípulo, destruía-lhe, por isso mesmo, a
personalidade original, com o resultado de torná-lo o romancista
paradigmático por excelência do que se convencionou chamar, na
década de 1930, o “romance do Nordeste” em sua definição mais pura,
quero dizer, sem programa político como em Jorge Amado, sem o
inevitável pitoresco, como em Rachel de Queiroz, e, menos ainda, a
matéria psicológica de Graciliano Ramos, sem dependências
necessárias com a região, exceto nos contos de “Vidas secas”, quando
o intratável Graciliano se deixou contaminar, por um momento, pelas
modas reinantes: “Graciliano Ramos é um retratista sem fundo. Tudo
nele se concentra no que é homem, no que é a tragédia de ser homem.
Os seus romances, por esta maneira, ganharam em profundidade (...).
Os homens e as mulheres, até os bichos que ele cria, são criaturas
que carregam a vida como o maior castigo”.
O mais paradoxal é que esse herói
civilizador não era um herói modernizador, antes pelo contrário,
pois a sua mensagem consistia em conservar ou recuperar o passado
desaparecido (já então grandemente idealizado): “Fomos juntos a
Igaraçu (...) as casas e as árvores, as igrejas, as velhas ruas
esburacadas, as pobres freiras com os pés nos chinelos, o convento
de Santo Antônio com o seu tristonho claustro, tudo vinha para ele
como as coisas mais belas do mundo. (...). O Pernambuco que Gilberto
Freyre queria para a sua paixão, para os seus regalos, para a sua
ternura, era o Pernambuco que ninguém via, o subterrâneo ínfimo, que
dera os senhores de engenho fidalgos, os padres rebelados, os bispos
trágicos e o povo capaz de expulsar os holandeses e fazer o carnaval
mais alegre do mundo”.
Regressando ao Brasil no momento em
que os modernistas de São Paulo já haviam promovido a sua revolução
estética (na qual, em teoria, Gilberto Freyre deveria encaixar-se),
razões de temperamento e, talvez, o despeito de se ver ultrapassado,
levou-o a posicionar-se desde logo numa atitude de hostilidade,
arrastando consigo o discípulo bem-amado. De fato, o romance
nordestino, antes de ser nordestino, estava implicitamente no
programa modernista — mas só começou a ser escrito tardiamente, em
1926, com “O estrangeiro”, e em 1928, com “A bagaceira”. Já então,
entretanto, viram-se desmonetizados pelos nordestinos, cujos
romances, aliás, foram escritos no Rio de Janeiro.
Ocorreu, então, a ruptura rancorosa
que transformou os dois pernambucanos em “inimigos” do modernismo,
muito embora, anos mais tarde, reconhecendo o erro que havia
cometido, Gilberto Freyre afirmasse e reafirmasse que o movimento
regionalista do Recife também tinha sido um modernismo “à sua
maneira”, procurando absorver ou reconciliar o inconciliável. Mas,
quando Lins do Rego escreveu o prefácio a “Região e tradição”, as
feridas ainda estavam abertas: “Havia nessa época o movimento
modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse
de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia
muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não
precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos
rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar,
de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência”.
A verdade é que, tanto Gilberto Freyre
quanto Lins do Rego acabaram incorporados, pela força das coisas, à
história do modernismo, em cujo universo intelectual “Casa grande &
senzala” e o romance de Lins do Rego acabariam como obras
representativas, com o sentido profundo implantado em São Paulo na
Semana de 1922. Dois anos mais tarde (um ano depois do regresso de
Gilberto Freyre), o modernismo chegava “oficialmente” ao Nordeste
pelas mãos de Joaquim Inojosa. Acresce que, apesar das aparências, o
brasileirismo programático dos modernistas também era implicitamente
regionalista e saudosista (a “descoberta” das cidades históricas!),
de forma que os antagonismos eram mais aparentes do que
substanciais, tanto que, a longo prazo, acabaram por se conciliar:
“Casa grande & senzala” é, em sua natureza real, uma das obras
fundamentais do modernismo.
Como os discípulos são sempre mais
radicais que os mestres, Lins do Rego, homem, afinal de contas,
afável e generoso, substitui as restrições matizadas de Gilberto
Freyre pelo bate-boca puro e simples: “Se o sr. Milliet conhecesse a
história da arte...” (!), o que, aliás, não o impedia de
ocasionalmente acertar na mosca: “A língua que Mário de Andrade quis
introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação” — e isto, que
é definitivo: “Canaã” “não é um grande romance, mas é um grande
livro”. Ser capaz de tais distinções revela um escritor congenial
com a coisa literária. |