Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Clérigo e cidadão


26.02.2005

Com o aparecimento de Antonio Candido nos meados de 1940, completava-se a santíssima trindade da crítica brasileira no século XX (composta, além dele, por Tristão de Athayde e Álvaro Lins), simétrica à que, no século anterior, reunira Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior. Houve, como seria de esperar, o rival ambicioso na pessoa de Afrânio Coutinho, que, na década de 1950, pregou na porta do Templo da Crítica as teses tradicionais do luteranismo literário, agora sob as espécies da Nova Crítica, cuja legitimidade, como na doutrina original, provava-se pela fé, não pelas obras — o que ele, desde logo, passou a demonstrar pelo exemplo.

Com o tratado de crítica impressionista, por ele chamada de expressionista (introdução a Afonso Arinos), Tristão de Athayde antecipara-se, em 1922, às febres metodológicas que tomaram conta das universidades em todo o mundo, aqui representadas por Afrânio Coutinho e seus discípulos diretos ou indiretos, cravando, nos mesmos anos, o marco dos “Estudos”, cujas cinco séries lhe estabeleceram a autoridade judicativa. Naquele ano, ele era o “mestre em estado nascente”, recuperado por Antonio Candido em artigo de 1983, agora incluído no volume de “Recortes”, parte das reedições promovidas em 2004 pela nova editora carioca Ouro sobre Azul. Em apresentação gráfica uniforme, a coleção reúne os seus artigos e ensaios, literários e outros, documentando a trajetória intelectual iniciada em 1943 com “Brigada ligeira” (além dos citados, “O discurso e a cidade”; “Vários escritos”; “Iniciação à literatura brasileira”; “O observador literário” e “O albatroz e o chinês”).

Em 1945, Candido também se antecipou às preocupações teóricas (antes de que se tornassem moda estudantil) com a “Introdução ao método crítico de Sílvio Romero”, assim reatando com a trindade oitocentista, enquanto, no mesmo ano, Tristão de Athayde voltaria a tais interesses com duas teses universitárias de concurso, posteriormente reunidas em volume único (“Estética literária. O crítico literário”). Mas, quem nos anos de 1940 analisou “de maneira regular e segura” a literatura brasileira, escreve Antonio Candido, foi Álvaro Lins, “que manteve em alto nível a tradição do ‘rodapé’, ou seja, o artigo semanal situado na parte inferior da página de jornal, destinado a comentar os livros novos. Num estilo incisivo, soube apontar o que havia de melhor (e de pior, acrescento eu...), fazendo da crítica uma conseqüência da personalidade bem formada e bem orientada do crítico” (“Iniciação á literatura brasileira”).

O mesmo Álvaro Lins que, desde 1941, registrava a emergência duma nova geração, nomeadamente a de Antonio Candido e da revista “Clima”: “os jovens de vinte anos que neste momento estão surgindo para as letras serão ainda meus companheiros de geração ou serão as primeiras figuras de uma nova geração? (...) E precisamente esta nova geração acaba de oferecer um forte sinal de sua presença através da revista ‘Clima’, cujo primeiro número vem de ser editado em São Paulo. (...) A leitura agora da revista ‘Clima’ — e mais as palavras de explicação do seu redator que me entregou esta obra de juventude — me traz à lembrança de outras revistas (...).” (“Jornal de crítica”, 2 série, 1943).

Diga-se, entre parênteses, que Antonio Candido parece não ter gostado do tom involuntariamente paternalista do artigo que a situava entre os “cadetes” do batalhão literário, ele que, como os tenentes de Napoleão, sabia trazer na mochila o bastão de marechal... Seja como for, o tribuno Álvaro Lins, como o qualificou Otto Maria Carpeaux, traçava desde logo o decálogo dos deveres morais da sua e da nova geração no momento histórico em que viviam: “Compreende-se que o intelectual de hoje não terá somente a tarefa de defender as condições de vida que tornam possível esta mesma obra. (...) O escritor ou o artista e hoje se sente assim ameaçado duplamente: na realização da sua obra e nas condições sociais que a tornam possível. São dois caminhos convergentes: o da arte em si mesma e o da vida social e política”.

Ele era, sem dúvida, um tribuno com a coragem cívica dos tribunos autênticos e sem a retórica vazia dos falsos tribunos, mas era, acima de tudo, um espírito agudo que sabia ler: “Tenho um pressentimento de que a nova geração vai entender esta complexidade do artista no mundo moderno, esta necessidade de se apresentar harmonicamente como um ‘clérigo’ e um cidadão. Afirmo este pressentimento, por exemplo, através desta revista ‘Clima’, de São Paulo, que representa unanimemente as melhores tendências de todos os jovens da nova geração brasileira. Encontro neles ‘clérigos’ e cidadãos. Um certo idealismo, uma certa disposição para influir e afirmar, uma certa capacidade de defender princípios e ideais — explicam a presença de cidadãos. Os estudos e as páginas literárias — um rapaz de vinte anos que escreve longamente sobre Marcel Proust, um seu companheiro que se dedica à crítica literária com uma ardente seriedade (...) explicam a presença de ‘clérigos’”.

Note-se que essas palavras, escritas em 1941, poderiam servir para crítica de toda a obra literária de Antonio Candido, assim sagrado e consagrado por quem tinha autoridade para fazê-lo. Mas, não se trata apenas de ser “clérigo” e “cidadão”, é preciso ainda ser crítico no sentido, digamos, rotineiro ou profissional da palavra, perspectiva em que o pronunciamento sobre livros e autores do momento tem tanta importância e necessidade quanto os ensaios “em profundidade”, como os que escreveu sobre romances de Zola, Giovanni Verga, Aluísio Azevedo e Oswald de Andrade, ou a poesia de Mário de Andrade e Drummond, para lembrar apenas alguns. É, de resto, para esta última categoria que me parece tender a inclinação mais espontânea do seu espírito. Quanto à crítica hebdomadária e séria, é uma espécie em extinção, na qual perdeu, desde já, muito de sua densidade orgânica, sejam quais forem os motivos e as razões.

Com o passar do tempo e com o amadurecimento intelectual jamais interrompido, estes sete volumes, além do que representam com o bibliografia específica, são também os marcos que o seu pensamento literário, de época para época, foi deixando ao longo do caminho como testemunhos do homem.

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10/01/2006