Com o aparecimento de Antonio Candido
nos meados de 1940, completava-se a santíssima trindade da crítica
brasileira no século XX (composta, além dele, por Tristão de Athayde
e Álvaro Lins), simétrica à que, no século anterior, reunira Sílvio
Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior. Houve, como seria de
esperar, o rival ambicioso na pessoa de Afrânio Coutinho, que, na
década de 1950, pregou na porta do Templo da Crítica as teses
tradicionais do luteranismo literário, agora sob as espécies da Nova
Crítica, cuja legitimidade, como na doutrina original, provava-se
pela fé, não pelas obras — o que ele, desde logo, passou a
demonstrar pelo exemplo.
Com o tratado de crítica
impressionista, por ele chamada de expressionista (introdução a
Afonso Arinos), Tristão de Athayde antecipara-se, em 1922, às febres
metodológicas que tomaram conta das universidades em todo o mundo,
aqui representadas por Afrânio Coutinho e seus discípulos diretos ou
indiretos, cravando, nos mesmos anos, o marco dos “Estudos”, cujas
cinco séries lhe estabeleceram a autoridade judicativa. Naquele ano,
ele era o “mestre em estado nascente”, recuperado por Antonio
Candido em artigo de 1983, agora incluído no volume de “Recortes”,
parte das reedições promovidas em 2004 pela nova editora carioca
Ouro sobre Azul. Em apresentação gráfica uniforme, a coleção reúne
os seus artigos e ensaios, literários e outros, documentando a
trajetória intelectual iniciada em 1943 com “Brigada ligeira” (além
dos citados, “O discurso e a cidade”; “Vários escritos”; “Iniciação
à literatura brasileira”; “O observador literário” e “O albatroz e o
chinês”).
Em 1945, Candido também se antecipou
às preocupações teóricas (antes de que se tornassem moda estudantil)
com a “Introdução ao método crítico de Sílvio Romero”, assim
reatando com a trindade oitocentista, enquanto, no mesmo ano,
Tristão de Athayde voltaria a tais interesses com duas teses
universitárias de concurso, posteriormente reunidas em volume único
(“Estética literária. O crítico literário”). Mas, quem nos anos de
1940 analisou “de maneira regular e segura” a literatura brasileira,
escreve Antonio Candido, foi Álvaro Lins, “que manteve em alto nível
a tradição do ‘rodapé’, ou seja, o artigo semanal situado na parte
inferior da página de jornal, destinado a comentar os livros novos.
Num estilo incisivo, soube apontar o que havia de melhor (e de pior,
acrescento eu...), fazendo da crítica uma conseqüência da
personalidade bem formada e bem orientada do crítico” (“Iniciação á
literatura brasileira”).
O mesmo Álvaro Lins que, desde 1941,
registrava a emergência duma nova geração, nomeadamente a de Antonio
Candido e da revista “Clima”: “os jovens de vinte anos que neste
momento estão surgindo para as letras serão ainda meus companheiros
de geração ou serão as primeiras figuras de uma nova geração? (...)
E precisamente esta nova geração acaba de oferecer um forte sinal de
sua presença através da revista ‘Clima’, cujo primeiro número vem de
ser editado em São Paulo. (...) A leitura agora da revista ‘Clima’ —
e mais as palavras de explicação do seu redator que me entregou esta
obra de juventude — me traz à lembrança de outras revistas (...).”
(“Jornal de crítica”, 2 série, 1943).
Diga-se, entre parênteses, que Antonio
Candido parece não ter gostado do tom involuntariamente paternalista
do artigo que a situava entre os “cadetes” do batalhão literário,
ele que, como os tenentes de Napoleão, sabia trazer na mochila o
bastão de marechal... Seja como for, o tribuno Álvaro Lins, como o
qualificou Otto Maria Carpeaux, traçava desde logo o decálogo dos
deveres morais da sua e da nova geração no momento histórico em que
viviam: “Compreende-se que o intelectual de hoje não terá somente a
tarefa de defender as condições de vida que tornam possível esta
mesma obra. (...) O escritor ou o artista e hoje se sente assim
ameaçado duplamente: na realização da sua obra e nas condições
sociais que a tornam possível. São dois caminhos convergentes: o da
arte em si mesma e o da vida social e política”.
Ele era, sem dúvida, um tribuno com a
coragem cívica dos tribunos autênticos e sem a retórica vazia dos
falsos tribunos, mas era, acima de tudo, um espírito agudo que sabia
ler: “Tenho um pressentimento de que a nova geração vai entender
esta complexidade do artista no mundo moderno, esta necessidade de
se apresentar harmonicamente como um ‘clérigo’ e um cidadão. Afirmo
este pressentimento, por exemplo, através desta revista ‘Clima’, de
São Paulo, que representa unanimemente as melhores tendências de
todos os jovens da nova geração brasileira. Encontro neles
‘clérigos’ e cidadãos. Um certo idealismo, uma certa disposição para
influir e afirmar, uma certa capacidade de defender princípios e
ideais — explicam a presença de cidadãos. Os estudos e as páginas
literárias — um rapaz de vinte anos que escreve longamente sobre
Marcel Proust, um seu companheiro que se dedica à crítica literária
com uma ardente seriedade (...) explicam a presença de ‘clérigos’”.
Note-se que essas palavras, escritas
em 1941, poderiam servir para crítica de toda a obra literária de
Antonio Candido, assim sagrado e consagrado por quem tinha
autoridade para fazê-lo. Mas, não se trata apenas de ser “clérigo” e
“cidadão”, é preciso ainda ser crítico no sentido, digamos,
rotineiro ou profissional da palavra, perspectiva em que o
pronunciamento sobre livros e autores do momento tem tanta
importância e necessidade quanto os ensaios “em profundidade”, como
os que escreveu sobre romances de Zola, Giovanni Verga, Aluísio
Azevedo e Oswald de Andrade, ou a poesia de Mário de Andrade e
Drummond, para lembrar apenas alguns. É, de resto, para esta última
categoria que me parece tender a inclinação mais espontânea do seu
espírito. Quanto à crítica hebdomadária e séria, é uma espécie em
extinção, na qual perdeu, desde já, muito de sua densidade orgânica,
sejam quais forem os motivos e as razões.
Com o passar do tempo e com o
amadurecimento intelectual jamais interrompido, estes sete volumes,
além do que representam com o bibliografia específica, são também os
marcos que o seu pensamento literário, de época para época, foi
deixando ao longo do caminho como testemunhos do homem. |