Vivo estará ou, pelo menos, redivivo,
na imensa bibliografia repetitiva que se pode prever nas
comemorações do centenário, havendo até quem o apresente como um
pensador para o século XXI (Annie Cohen-Solal. Sartre: um penseur
pour le XXIe siècle. Paris: Gallimard, 2005). Vivo ou, pelo menos
redivivo, já está sendo no Brasil, com a reedição de suas obras
literárias nas clássicas traduções de Sérgio Milliet, homem que
sabia francês, sabia português e sabia o que traduzir significa (Os
caminhos da liberdade. I: A idade da razão; II: Sursis; III: Com a
morte na alma), além dos contos “O muro” (trad. H. Alcântara
Silveira) e “A náusea” (trad. Rita Braga), todos na editora Nova
Fronteira, 2005.
Autora da biografia exemplar e
certamente definitiva (Sartre. Gallimard, 1985), Annie Cohen-Solal
nela mencionava, entre outras coisas, que, em sua primeira visita
aos Estados Unidos, Sartre, viajando em navio cargueiro, manteve
vulcânicas relações com a esposa de um diplomata brasileiro, cujo
nome não revela, nem consta que jamais se tenha vangloriado de tão
gloriosa aventura. Iniciavam-se com isso os contatos do casal Sartre
com os dois continentes, sabendo-se que, anos depois, Simone de
Beauvoir conheceria a paixão de sua vida na pessoa de Nelson Algren,
aliás pouco propenso aos transportes românticos da bela francesa que
o ameaçava com definitiva vida em comum.
O pacto nupcial do casal Sartre
estipulava ampla e irrestrita liberdade de comportamento por parte
dos dois, o que foi cumprido à risca, se assim me posso exprimir,
conforme o novo livro de Annie Cohen-Solal confirma com abundante
documentação iconográfica. É certo que, ao fim de tudo, Simone de
Beauvoir revelou amargo arrependimento, seja nas rancorosas memórias
que escreveu sobre o marido, seja nas suas próprias, cuja última
linha é um gemido, digamos, revoltado: “fui tapeada”. Os encontros
marítimos de Sartre com a tentadora brasileira prenunciavam de
alguma maneira a sua viagem ao nosso país, geralmente negligenciada
pelos biógrafos, sem excluir Annie Cohen-Solal, mas que, para nós, e
até para mim, tem particular interesse. Vindo a convite da
Universidade Federal de Pernambuco para o I Congresso Brasileiro de
Crítica e História Literária (1960), ele estava a caminho de Cuba,
em mais uma das suas reconciliações com o Partido Comunista.
Tive a honra de ser incluído na
comissão designada para recebê-lo no aeroporto mas, logo à chegada,
Jorge Amado se antecipou pela pista ao encontro dos visitantes,
acompanhando-os de perto, desde então, pelo périplo brasileiro. Quis
o destino que eu viesse junto com eles no mesmo automóvel até ao
hotel, em cujo trajeto Simone de Beauvoir — que, aliás, nem mesmo
correspondeu ao meu cumprimento — permaneceu em impenetrável
silêncio. Morrerei sem jamais ter ouvido a sua voz.
À noite, Jorge Amado pediu-me que
fizesse a tradução simultânea do que desejava dizer na saudação ao
visitante, do que me desincumbi, claro está, com a fidelidade
possível. Em sua conferência, Sartre lançou os postulados taxativos
do que deveria ser a literatura brasileira, isto é, instrumento das
massas revolucionárias na conquista do poder. Foi um sucesso. Refiro
tudo isso a título de curiosidade, como achegas para a pequena
história, geralmente ignorada pela grande. A viagem de Sartre
realizava-se sob o duplo signo da revolução cubana e da guerra da
Argélia, minuciosamente descrita tanto por Annie Cohen-Solal quanto
por Simone de Beauvoir em “La force des choses” (1963). Nenhuma
delas atribui qualquer importância ao Congresso de Crítica Literária
do Recife: Annie Cohen-Solal ignora-o por completo e Simone de
Beauvoir descarta-o com uma alusão desdenhosa: “Nous passâmes
quelques instants au congrès (...)”. Alguns instantes nos quais
Sartre falou por mais de uma hora sobre a responsabilidade política
dos intelectuais, tema maior de sua obra.
De minha parte, apenas no que
concernia à literatura brasileira e como ele tivesse revelado
escasso conhecimento das nossas letras, tomei a liberdade de
opor-lhe algumas respeitosas objeções, mas ele, que, segundo Raymond
Aron, “jamais tolerou o face-a-face”, nada replicou, morrendo o
debate com a mesma brevidade com que se iniciara. Se, durante os
dois meses de sua permanência, escrevi em 1986, Sartre não teve
oportunidade de falar às “massas brasileiras”, como era de seu
propósito evidente, os encontros com intelectuais e estudantes
corresponderam à consagração absoluta que se esperava e que então o
acolhia pelo mundo todo. Vivendo em “país subdesenvolvido e
semicolonizado”, como o definia Simone de Beauvoir, as novas
gerações brasileiras, menos politizadas no sentido ideológico da
palavra e moderadamente propensas à paixão intelectual, não
enterraram Jean-Paul Sartre depois de tê-lo carregado em triunfo:
deixaram simplesmente de lê-lo, se é que jamais o haviam lido.
Foi na conferência de Araraquara,
publicada mais tarde em edição bilingüe (Rio/São Paulo: Paz e
Terra/UNESP, 1986), que ele finalmente, e a contragosto, falou de
filosofia, explicitando o provocativo axioma com que se abria e no
qual repousava a “Critique de la raison dialectique”: o marxismo era
a filosofia insuperável do nosso tempo. O encontro foi provocado por
uma pergunta de Fausto Castilho (atualmente professor da Unicamp),
desejoso de saber se era possível alguém denominar-se ideólogo em
nossos dias sem cair nas dificuldades que Marx assinala a propósito
de toda ideologia. Para Simone de Beauvoir, esse “professor L.,
desejando promover-se, manobrou de tal maneira que Sartre acabou
aceitando” (o convite para falar), mas tudo acabaria mal para o
ambicioso, pois, tendo um jornal paulista noticiado que o filósofo
pregara a revolução, o professor L, segundo o testemunho de um Jorge
Amado hilariante, gemia pelos corredores dizendo-se um “homem
acabado”.
Assim escrevem a História os
predicantes do rigor intelectual e da intransigência ética. Nas
melhores tradições francesas, tudo terminaria em canção: tendo
dificuldade em acender um cigarro durante a conferência, Sartre
descreveu a tensão que isso criou entre ele e a platéia, dizendo que
tinha passado de um estado a outro “através de um sistema de crise,
de oposição e de síntese e a operação se fez e é a mais simples do
mundo”. Com o que o modesto isqueiro entrou para a história da
filosofia. |