Mais um livro sobre a escravidão? De
fato, mas o de A. J. R. Russell-Wood, publicado em 1982, deve ser
posto em lugar à parte, tanto pela amplitude da pesquisa quanto pela
inteligência e objetividade com que interpreta um fenômeno social e
histórico de extrema complexidade, desfigurado por apresentações
tendenciosas, quando não claramente errôneas. Em grande número de
casos, tais estudos defendem uma “tese” ideológica necessariamente
anacrônica. É nesse contexto que o livro de Russell-Wood deve ser
lido, por seus numerosos desmentidos às verdades aceitas, nem todas
rigorosamente verdadeiras (“Escravos e libertos no Brasil colonial”.
Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio: Civilização Brasileira, 2005).
Tomemos, por exemplo, a visão
simplista que vê “o escravo” e não “os escravos”, nomeadamente a
população livre e liberta de indivíduos de ascendência africana: “O
fato de esta população não ser monolítica devia ter sido afirmado
com mais clareza (na edição original). Alguns nasceram livres.
Outros eram escravos que conquistaram ou receberam cartas de
manumissão e eram chamados de libertos ou forros”. Havia, ainda, os
coartados, palavra que designava o escravo “que parcelava durante
certo número de anos os pagamentos da quantia mutuamente combinada
para a compra de sua carta de alforria”.
Assim, Russell-Wood chama a atenção
para um fato geral de nossa história, e não apenas no que se refere
à escravidão: trata-se de uma realidade “nuançada e gradativa”: “A
história brasileira costuma desafiar a compartimentalização e a
categorização. Adotar uma abordagem binária e enfatizar a dicotomia
— negro/branco, escravo/livre, resistência/acomodação — é forçar o
que é fluido e poroso a caber num recipiente rígido e
desconfortável”. Imposta pelas inevitáveis simplificações dos
manuais escolares, a figura convencional e estereotipada que passou
para o nosso imaginário é a do escravo rural, o trabalhador do eito,
nas fazendas e engenhos. Contudo, era completamente diversa a
condição do escravo urbano, seja os chamados “negros de ganho”, seja
os artesãos dedicados a misteres profissionais, o que, de resto,
também ocorria nas áreas rurais: “As necessidades de mão-de-obra da
plantation iam além de cortar e processar a cana. Havia grande
procura de artesãos: os ferreiros e fabricantes de caldeirões e
tachos estavam no alto da folha de pagamento, mas eram especialmente
procurados os que trabalhavam em construção, pedreiros, carpinteiros
e fabricantes de tijolos e cantaria, assim como construtores de
caixotes, de barcos e de carros e carroças. Além disso, havia
artesões ambulantes que percorriam o campo, passando uma semana
aqui, um mês ali, para aceitar encomendas. As damas das plantations
eram boas freguesas dos chapeleiros. O mesmo acontecia com os homens
em busca de um bom alfaiate ou sapateiro”.
A situação financeira dos escravos
documenta-se pelos inventários, assim como Alcântara Machado havia
feito com relação aos bandeirantes paulistas: “A elaboração do
testamento também é um momento de retrospecto e introspecção. Os
arquivos do Brasil preservam testamentos de indivíduos de
ascendência africana, nascidos na África ou no Brasil (...). Esses
testamentos revelam situações domésticas e relacionamentos íntimos
que vão dos mais simples aos mais complexos, do harmoniosamente
felizes aos violentos, e os historiadores têm escrutinado esse
material atrás de indícios da história familiar. Não menos
interessante é o que os inventários podem revelar sobre o estilo e a
qualidade de vida, que possessões eram valorizadas e o que podem
contar ao historiador não só sobre seu valor intrínseco como também
sua importância simbólica para o dono. As jóias de ouro aparecem com
freqüência em inventários de negras livres e libertas falecidas e
eram cobiçadas não só pro seu apelo decorativo como também por serem
um investimento que podia ser penhorado em épocas difíceis e
recuperado no futuro”.
Russell-Wood salienta o grande
desenvolvimento dos estudos sobre a escravidão nestes últimos anos,
graças, em particular, à consulta sistemática dos arquivos, sempre
negligenciada pelos historiadores ideológicos, tudo resultando em
conseqüências inesperadas e até irônicas, uma delas relacionadas com
a fortuna crítica de Gilberto Freyre, “ícone na década de 1950,
objeto de críticas e vitupérios nas décadas de 1970 e 80 e
beneficiário, nos anos 1990 e posteriores, de uma avaliação mais
equilibrada que o insere num contexto histórico”. A verdade é que
ele introduziu uma visão nova e até desafiadora dos lugares-comuns e
verdades aceitas no tratamento de civilização brasileira, aí
incluída, como é óbvio, a grande questão escravocrata: “A publicação
de ‘Casa-grande & senzala’ (...) foi um marco histórico, cultural,
acadêmico e literário não só para o Brasil como para o estudo da
contribuição negra nas Américas. (...) ‘Casa-grande’ representou uma
reavaliação da colonização portuguesa, especialmente vis-à-vis a
colonização anglo-sacônica da América do Norte. Freyre aventou que a
força da lei portuguesa, acoplada às forças onipresentes do
catolicismo, levou os portugueses a buscarem uma forma mais benigna
de escravidão, do que a existente em outros pontos das Américas”.
Historiadores convencionais ou
doutrinários questionaram e continuam questionando a validade desses
pontos de vista e, em particular, a influência do mestiçamento como
fator de democracia social, tudo em nome de uma idéia abstrata de
“democracia” que, de fato, não existe nem no Brasil nem em qualquer
outro país. O interesse despertado pelos estudos de Gilberto Freyre,
observa Russell-Wood, “resultaria numa onda de atividade acadêmica,
tanto ao norte quanto ao sul do Rio Grande. O resultado era
previsível. Os fundamentos e as conclusões (...) seriam postos em
questão” por diversos especialistas, mas a verdade é que ele
continua a ser um nome incontornável na história social do Brasil
como o próprio livro de Russell-Wood demonstra para além de qualquer
dúvida. Trata-se de autoridade tanto mais respeitável quanto foi
discípulo de Charles Boxer, historiador britânico que se dedicou em
muitos livros (aliás referentes a outras áreas e culturas) à
refutação obsessiva de Gilberto Freyre.
No tratamento da matéria, pode-se
ignorar o que escreveram os seus adversários, nomeadamente os da
chamada Escola Paulista de Sociologia, todos levando uma terrível
desvantagem já no ponto de partida: é que Gilberto Freyre escrevia
bem, no que até nisso encontrou quem o censurasse. |