Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Ainda a escravidão


16.07.2005

Mais um livro sobre a escravidão? De fato, mas o de A. J. R. Russell-Wood, publicado em 1982, deve ser posto em lugar à parte, tanto pela amplitude da pesquisa quanto pela inteligência e objetividade com que interpreta um fenômeno social e histórico de extrema complexidade, desfigurado por apresentações tendenciosas, quando não claramente errôneas. Em grande número de casos, tais estudos defendem uma “tese” ideológica necessariamente anacrônica. É nesse contexto que o livro de Russell-Wood deve ser lido, por seus numerosos desmentidos às verdades aceitas, nem todas rigorosamente verdadeiras (“Escravos e libertos no Brasil colonial”. Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio: Civilização Brasileira, 2005).

Tomemos, por exemplo, a visão simplista que vê “o escravo” e não “os escravos”, nomeadamente a população livre e liberta de indivíduos de ascendência africana: “O fato de esta população não ser monolítica devia ter sido afirmado com mais clareza (na edição original). Alguns nasceram livres. Outros eram escravos que conquistaram ou receberam cartas de manumissão e eram chamados de libertos ou forros”. Havia, ainda, os coartados, palavra que designava o escravo “que parcelava durante certo número de anos os pagamentos da quantia mutuamente combinada para a compra de sua carta de alforria”.

Assim, Russell-Wood chama a atenção para um fato geral de nossa história, e não apenas no que se refere à escravidão: trata-se de uma realidade “nuançada e gradativa”: “A história brasileira costuma desafiar a compartimentalização e a categorização. Adotar uma abordagem binária e enfatizar a dicotomia — negro/branco, escravo/livre, resistência/acomodação — é forçar o que é fluido e poroso a caber num recipiente rígido e desconfortável”. Imposta pelas inevitáveis simplificações dos manuais escolares, a figura convencional e estereotipada que passou para o nosso imaginário é a do escravo rural, o trabalhador do eito, nas fazendas e engenhos. Contudo, era completamente diversa a condição do escravo urbano, seja os chamados “negros de ganho”, seja os artesãos dedicados a misteres profissionais, o que, de resto, também ocorria nas áreas rurais: “As necessidades de mão-de-obra da plantation iam além de cortar e processar a cana. Havia grande procura de artesãos: os ferreiros e fabricantes de caldeirões e tachos estavam no alto da folha de pagamento, mas eram especialmente procurados os que trabalhavam em construção, pedreiros, carpinteiros e fabricantes de tijolos e cantaria, assim como construtores de caixotes, de barcos e de carros e carroças. Além disso, havia artesões ambulantes que percorriam o campo, passando uma semana aqui, um mês ali, para aceitar encomendas. As damas das plantations eram boas freguesas dos chapeleiros. O mesmo acontecia com os homens em busca de um bom alfaiate ou sapateiro”.

A situação financeira dos escravos documenta-se pelos inventários, assim como Alcântara Machado havia feito com relação aos bandeirantes paulistas: “A elaboração do testamento também é um momento de retrospecto e introspecção. Os arquivos do Brasil preservam testamentos de indivíduos de ascendência africana, nascidos na África ou no Brasil (...). Esses testamentos revelam situações domésticas e relacionamentos íntimos que vão dos mais simples aos mais complexos, do harmoniosamente felizes aos violentos, e os historiadores têm escrutinado esse material atrás de indícios da história familiar. Não menos interessante é o que os inventários podem revelar sobre o estilo e a qualidade de vida, que possessões eram valorizadas e o que podem contar ao historiador não só sobre seu valor intrínseco como também sua importância simbólica para o dono. As jóias de ouro aparecem com freqüência em inventários de negras livres e libertas falecidas e eram cobiçadas não só pro seu apelo decorativo como também por serem um investimento que podia ser penhorado em épocas difíceis e recuperado no futuro”.

Russell-Wood salienta o grande desenvolvimento dos estudos sobre a escravidão nestes últimos anos, graças, em particular, à consulta sistemática dos arquivos, sempre negligenciada pelos historiadores ideológicos, tudo resultando em conseqüências inesperadas e até irônicas, uma delas relacionadas com a fortuna crítica de Gilberto Freyre, “ícone na década de 1950, objeto de críticas e vitupérios nas décadas de 1970 e 80 e beneficiário, nos anos 1990 e posteriores, de uma avaliação mais equilibrada que o insere num contexto histórico”. A verdade é que ele introduziu uma visão nova e até desafiadora dos lugares-comuns e verdades aceitas no tratamento de civilização brasileira, aí incluída, como é óbvio, a grande questão escravocrata: “A publicação de ‘Casa-grande & senzala’ (...) foi um marco histórico, cultural, acadêmico e literário não só para o Brasil como para o estudo da contribuição negra nas Américas. (...) ‘Casa-grande’ representou uma reavaliação da colonização portuguesa, especialmente vis-à-vis a colonização anglo-sacônica da América do Norte. Freyre aventou que a força da lei portuguesa, acoplada às forças onipresentes do catolicismo, levou os portugueses a buscarem uma forma mais benigna de escravidão, do que a existente em outros pontos das Américas”.

Historiadores convencionais ou doutrinários questionaram e continuam questionando a validade desses pontos de vista e, em particular, a influência do mestiçamento como fator de democracia social, tudo em nome de uma idéia abstrata de “democracia” que, de fato, não existe nem no Brasil nem em qualquer outro país. O interesse despertado pelos estudos de Gilberto Freyre, observa Russell-Wood, “resultaria numa onda de atividade acadêmica, tanto ao norte quanto ao sul do Rio Grande. O resultado era previsível. Os fundamentos e as conclusões (...) seriam postos em questão” por diversos especialistas, mas a verdade é que ele continua a ser um nome incontornável na história social do Brasil como o próprio livro de Russell-Wood demonstra para além de qualquer dúvida. Trata-se de autoridade tanto mais respeitável quanto foi discípulo de Charles Boxer, historiador britânico que se dedicou em muitos livros (aliás referentes a outras áreas e culturas) à refutação obsessiva de Gilberto Freyre.

No tratamento da matéria, pode-se ignorar o que escreveram os seus adversários, nomeadamente os da chamada Escola Paulista de Sociologia, todos levando uma terrível desvantagem já no ponto de partida: é que Gilberto Freyre escrevia bem, no que até nisso encontrou quem o censurasse.

 
 

 

 

 

 

10/01/2006