Os tambores de São Luís é, sem dúvida,
a obra-prima romanesca de Josué Montello, num conjunto em que,
aliás, não faltam romances de alta qualidade literária. É o momento
histórico da escravidão na segunda metade do século 19, momento em
que, por definição, o sistema iniciava o seu processo de declínio,
e, sendo romance histórico, é também romance de costumes da
sociedade escravocrata, no Maranhão e no Brasil. E, sendo romance de
costumes é, também, necessariamente, romance psicológico, tanto dos
personagens especificamente considerados, quanto das diversas
coletividades a que pertenciam – proprietários e escravos,
comerciantes e homens do mar, profissionais liberais e
eclesiásticos, políticos e libertos, todos condicionados pela
mentalidade da época ao mesmo tempo em que a condicionavam.
Evitemos, desde logo, as polarizações
simplistas, pois todos respondiam à consciência possível do momento,
vertente por assim dizer passiva da idade sociológica. Na vertente
ativa estava o poder público, deputados e senadores, conservadores e
liberais, por uma vez unidos na causa comum de manter a escravidão,
procurando imobilizar a história a pretexto de discipliná-la; não
queriam a aboli-la, queriam, ao contrário, perpetuá-la, na esperança
de que se extinguisse por exaustão 50 anos depois, quando eles
próprios tivessem desaparecido. Ignoraram sistematicamente os
numerosos projetos que se multiplicaram entre os tratadistas desde o
século 18 e, nomeadamente, o de José Bonifácio, propondo a abolição
gradativa que prevenisse o trauma mais que previsível de 1888.
Conhece-se a astuta relutância com que
as classes políticas dos 1800 acabaram por aceitar a proibição do
tráfico, assim como as duas leis supostamente humanitárias (como tal
ensinadas nas escolas): a do Ventre Livre e a dos Sexagenários,
destinadas, não a extinguir, mas a perpetuar a escravidão pelo maior
tempo possível. Embustes desde logo percebidos pelos escravos
personagens deste romance. Não eram apenas embustes: eram embustes
carregados de crueldade.
Tudo isso se passava no mundo social
em que a escravidão pertencia à ordem natural das coisas,
monstruosidade, dizia Joaquim Nabuco, de que os brasileiros tinham
tanta consciência quanto da lei da gravidade. Acrescentem-se as
práticas desumanas do dia-a-dia – a que correspondem, no outro
extremo, os fatos que hoje podem parecer pitorescos. É o lado do
romance de costumes neste romance histórico: “Mesmo as questões de
nonada, que se resolveriam com um breve diálogo, serviram de
pretexto aos velhos prelados para trocas de desaforos, prisões,
excomunhões, queixas ao rei e ao papa, intrigas, desfeitas públicas,
e até agressões e emboscadas”. Um bispo e um governador
envolveram-se em grave crise política porque ambos tinham interesses
no comércio de cravo. Outro bispo conheceu dificuldades por haver
denunciado “o mau costume, corrente entre os maiorais da terra, de
terem estes as suas concubinas”. Crise política ainda mais séria
ocorreu quando um capitão-general entendeu que tinha direito a três
ductos de incenso nas cerimônias religiosas, enquanto o bispo, com
quem se desentendera, ordenou ao coroinha que o destingüisse com
apenas dois...
Esse é o painel em que podemos ler Os
tambores de São Luís como romance histórico, partindo do geral para
o particular, panorama de uma época estruturada em círculos
concêntricos dos quais os mais largos continham sucessivamente os de
menor diâmetro, envolvendo a matéria real pela imaginativa, tudo sem
sacrificar a homogeneidade entre a verdade e a verossimilhança. Para
isso, é preciso que o romancista trate os personagens reais como
fictícios e os fictícios como reais, conferindo-lhes a verdade
romanesca, para além da factual. Nessas perspectivas, Josué Montello
utiliza-se da realidade histórica para conferir veracidade à
verossimilhança romanesca. Na lição aristotélica, a história é o que
realmente ocorreu, e a verossimilhança o que poderia ter ocorrido.
Como todo grande romancista, Montello inverte, de certa forma, o
ângulo de observação: seus personagens tirados da vida real
tornam-se verossímeis como se fossem inventados, e estes últimos
tornam-se reais na trama do romance. Mencione-se, entre tantos
outros, Donana Jansen, perfeita encarnação do sadismo desumano (no
que não se distinguia dos demais proprietários): ela só nos aparece
verossímil por ter sido real. É também a figura da aristocrata Ana
Rosa Ribeiro, denunciada por crimes de morte pelo jovem promotor
Celso Magalhães, prematuramente falecido, precursor de Sílvio Romero
nas pesquisas folclóricas. Há também a causa célebre do
desembargador Pontes Vergueiro, retrato gravado em água-forte pelo
romancista, sem esquecer a tragédia pessoal de Gonçalves Dias e seus
amores desgraçados.
Tudo isso nos induz a ler Os tambores
de São Luís como romance psicológico, partindo do particular para o
geral, caso em que a narrativa se desenvolve em espiral, tendo no
negro Damião o centro dinâmico de convergência e irradiação. Josué
Montello pertence à família espiritual de Balzac e Dostoievski; de
Joyce e Thomas Mann; de Tolstoi e Faulkner; de George Eliot e
Giovanni Verga; de Cervantes e John Dos Passos; de Conrad e
Flaubert; de Eça de Queiroz e Machado de Assis – todos semelhantes
nas suas diferenças e diferentes nas suas semelhanças, exatamente
como nas famílias naturais. Damião é a figura emblemática da
condição humana num determinado momento histórico, simbolizado, aos
olhos do Eterno, pelos tambores da Casa-Grande das Minas, vibrando
como memória da raça através do romance inteiro. Eles marcam a
sucessão dos episódios na sua vida, acompanhando-lhe as metamorfoses
existenciais. São o relógio cósmico que, começando a ouvir logo à
sua chegada a São Luís, continuará a marcar-lhe todas as horas,
pelos anos afora, até à noite cheia de presságios em que o romance
começa e termina. Já velho, caminhando na madrugada ao som dos
tambores, dominado pela expectativa do trineto que vai nascer, ele
os ouve como mensagem enigmática do destino, conforme só virá a
saber na última página do romance: “Tinha sido escravo, era um homem
livre ... viera de muito baixo, e ali se achava, com a sua casa, o
seu nome e a sua família. Lutara pela liberdade de sua raça (...)” –
deixando em nossa memória a figura de um grande entre os grandes do
romance universal. (Edição comemorativa. Nova Fronteira, 2005). |