A diferença entre os versos escritos
em língua referencial e a poesia escrita no idioma metafórico não é
de qualidade, mas de natureza: os primeiros simplesmente não são
poesia literária. O aferidor de qualidade só se aplica nos domínios
específicos da poesia: há poetas bons e menos bons, para nada dizer
dos grandes, situados fora de série, mas a avaliação de qualidade,
pressupondo-se no leitor a competência judicativa no ponto de
partida, tem muito de pessoal e subjetivo. Os “bons” poetas são para
determinados grupos de leitores de idêntica sensibilidade e
formação: a poesia literária está tanto no poeta quanto no leitor.
Eis, por exemplo, o caso de Jorge de
Lima (1893-1953), cuja obra não pode ser ignorada, nem mesmo
menosprezada, nos quadros da poesia brasileira do século XX, e
contudo... sujeito a periódicos “esquecimentos”, regularmente
entremeados de não menos periódicas reavaliações, sempre destinadas
a recuperá-lo, abrindo caminho para outras temporadas de oblívio.
Bom conhecedor da matéria, José Paulo Paes reduzia-lhe a carreira a
duas fases — a consubstancialista e a formalista — “deixando de fora
os primeiros sonetos esparsos e os XIV alexandrinos como meros
tentamens de versejador, mais que de poeta.”
De fato, ele foi organicamente um
espírito mimético, parnasiano ao tempo do Parnasianismo expirante,
modernista quando o Modernismo já era história, surrealista temporão
do nosso Surrealismo igualmente temporão, ao qual incorporou as
crenças e o proselitismo católico durante a vaga que recebeu o nome
de Espiritualismo. Daí para a epopéia de biblioteca era um passo
quase previsível, transposto em 1952 com “Invenção de Orfeu”,
“nebulosa cosmogonia”, como a qualifica Cláudio Murilo Leal (Jorge
de Lima. “Invenção de Orfeu”. Rio: Record, 2005). Nas históricas
palavras introdutórias da primeira edição, Adolfo Casais Monteiro,
refletindo desde logo a perplexidade que iria tomar conta de nosso
pensamento crítico, afirmava que seriam necessárias várias gerações
de intérpretes e analistas para que afinal se configurasse o quadro
dos julgamentos definitivos. As gerações se sucederam, como no
Eclesiastes, e a “terra” continuou a mesma: de Casais Monteiro e
Mário Faustino e chegando a Luiz Busatto, o veredito, tão amenizado
quanto possível, tem sido negativo, apesar da benevolência dos
jurados.
“Invenção de Orfeu” é o coroamento
natural e, ao mesmo tempo bastardo, de sua obra: “o mimetismo chega
à paráfrase, se não à transcrição pura e simples dos grandes
modelos, inclusive de segunda mão, através das empedradas traduções
de Odorico Mendes, aliás elogiadas pelos teóricos do Concretismo”,
escrevi em 1997. Cuidadosamente ignorado pela crítica, o livro de
Luiz Busatto (“Intertextualidade de Invenção de Orfeu”, 1987) é a
resposta irônica ao prefácio de Casais Monteiro, ao tempo em que os
plágios, imitações e remissões literais receberam o nome acadêmico
de “intertextualidade”. Imitar epopéias não é escrevê-las: sua
unidade estrutural, observava José Paulo Paes, “é garantida ora por
um fio narrativo, ora por alguma homogeneidade de dicção. Já isso
não acontece em “Invenção de Orfeu” cujos dez cantos não desenvolvem
nenhum tipo de argumento: a ocasional reiteração de motivos-chave,
como o da busca da ilha mística ou da progressiva e emblemática
fundação do poeta pelo seu próprio cantar metalingüístico, não chega
nem de longe a dar um mínimo esqueleto de sustentação à mole verbal
de mais de nove mil versos. Tampouco há qualquer homogeneidade de
dicção: verso branco e verso rimado se alternam discricionariamente;
discricionariamente se misturam variados tipos de estrofação”.
Segundo o livro clássico de C. M.
Bowra (“From Virgil to Milton”, 1945), as epopéias se distinguem não
por serem “autênticas” ou “literárias”, mas por serem orais ou
escritas: a “Eneida”, modelo dos “Lusíadas”, pertence a esta última
categoria, assim como a “Jerusalém libertada” e o “Paraíso perdido”.
Desnecessário dizer que a ambição de Jorge de Lima foi rivalizar com
Camões superando-o, aposta perdida no instante mesmo em que se
formulou, antes de mais nada por lhe faltar matéria autêntica: “Os
autores de epopéias literárias vêem o seu assunto através de
enevoadas associações eruditas; não o abordam diretamente como parte
de sua vida quotidiana”, ensinava o mesmo Bowra. O poeta brasileiro
não via a “ilha”, mas Camões, conforme Cláudio Murilo Leal assinala
no ensaio introdutório: “‘Invenção de Orfeu’, o longo poema
épico-subjetivo de Jorge de Lima, está para a literatura brasileira
como ‘Os Lusíadas’ estão para a portuguesa” — idéia que só pode ser
aceita se a despojarmos de qualquer conotação qualitativa, antes de
mais nada porque, dado o caráter fragmentário dos cantos, falta-lhe
a unidade profunda que toda narrativa épica deve ter.
Na composição dos versos, ele
empregava os artifícios próprios do plágio, como, por exemplo, a
substituição de palavras: onde Odorico Mendes escreveu: “Vai talvez
resvalando”, ele escreve: “Vai minaz resvalando”; em lugar de “Berço
de ventos”, “berço de heróis”, quando não ocorre a cópia pura e
simples: “invictos muros, divinal estância”, nos dois poetas. Mas,
como é natural, sempre se salva alguma coisa: “Se todavia, além de
atento, o dito leitor for medianamente sensível, não deixará de
encontrar, na sua travessia desse magma, regiões da mais alta beleza
— para citar apenas dois exemplos imediatos, o soneto sobre a garupa
palustre e bela, as estâncias sobre o desassossego de Inês — e, a
cada braçada, versos memoráveis como o há sempre um copo de mar /
para um homem navegar” (José Paulo Paes).
Apesar de tudo, trata-se de um
malogro, “grandioso e desafiante malogro que convida à perene
revisitação”, concluía José Paulo Paes, o que, claro está, não é a
mesma “revisitação” dos grandes épicos ou, mesmo, a de poetas que
deixaram a sua marca no desenvolvimento dos gêneros. Qual será o
autêntico Jorge de Lima, quero dizer, o que respondia à sua natureza
profunda de homem? “Consubstancialmente”, para retomar a palavra no
que realmente implica, era o anti-épico por excelência, o
regionalista, o populista do homem comum, razão por que os seus
fervores religiosos sempre parecem mais “literários” do que
espontaneamente místicos. Sem herói e sem narrativa, faltam a
“Invenção de Orfeu” os dois requisitos essenciais e definidores da
epopéia. |