Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

O desajustado (II)


26.03.2005

Com a repentina popularidade editorial dos últimos tempos, a crônica foi transformada em quarto de despejo onde a recolhem por sua própria efemeridade (tanto no assunto quanto no interesse e, na maior parte dos casos, pela má qualidade), etiqueta agora cômoda para classificar o que não tem classificação ou a tem em categoria inteiramente diversa. Nos dias que correm, tudo é crônica, com o risco muito certo de nada mais ser crônica, inclusive em reedições comercialmente interessantes, como nos dois volumes e 1.183 páginas em que Beatriz Resende e Rachel Valença reuniram “Toda a crônica”, de Lima Barreto (Rio: Agir, 2004).

Aqui se encontra de tudo, desde as crônicas propriamente ditas (sobre a vida urbana, por exemplo) aos excertos memorialísticos, ajustes de contas e ressentidas reivindicações, desde a polêmica furibunda às críticas sociais e políticas e aos tópicos de ocasião, como, no primeiro volume, as “Considerações oportunas”, sobre o tema, para ele doloroso, dos preconceitos de raça, ou, no segundo, o paralelo que hoje seria impensável entre D’Annunzio e Lênin, no qual, aliás, só se refere a este último nas linhas finais: “Ele, D’Annunzio, era herdeiro do gênio guerreiro desses chefes de bandos que serviam, indiferentemente, este ou aquele duque (...) foi o monturo dos séculos mortos (...). O nosso anelo é outro: queremos paz e anarquia (sic). Lênin e Trotski repeliram nos quatro pontos cardeais os inimigos do seu regime político”.

Deixando de lado o programa de “paz e anarquia”, pode-se pensar que poucos dos leitores atuais serão capazes de compreender essas alusões de 1921, quando D’Annunzio era, de fato, o grande herói italiano do pós-guerra. À altura em que se chamava de “maximalismo” o que depois passou a ser referido como “comunismo” (com os mesmos mal-entendidos semânticos e políticos), Lima Barreto dizia-se maximalista, dedicando-lhe não uma “crônica”, mas um longo ensaio de 1919, comentando a conferência do “eminente sociólogo argentino. Senhor doutor José Ingenieros”, referências hoje tão arcaicas quanto o próprio maximalismo, além do que revelam sobre o quadro de valores da época: “os nossos sabichões não têm nem uma (sic) espécie de argumento para contrapor aos apresentados pelos que têm meditado sobre as questões sociais e vêem na revolução russa uma das mais originais e profundas que se têm verificado nas sociedades humanas”. Errando na nomenclatura e na superestimação de Ingenieros, ele via claro no extraordinário fenômeno que começava a se desenvolver aos seus olhos.

Na outra ponta da escala de grandezas estavam as suas pretensões ou ilusões acadêmicas, provando que, afinal de contas, não era tão grande quanto pretendia o seu desprezo pelas consagrações oficiais: “Vou escrever um artigo perfeitamente pessoal; e é preciso. Sou candidato à Academia de Letras, na vaga do senhor Paulo Barreto. Não há nada mais justo e justificável. Além de produções avulsas em jornais e revistas, sou autor de cinco volumes, muito bem-recebidos pelos maiores homens de inteligência de meu país. Nunca lhes solicitei semelhantes favores; nunca mendiguei elogios. Portanto, creio que a minha candidatura é perfeitamente legítima, não tem nada de indecente. (...) Se não disponho do ‘Correio da Manhã’ ou do ‘O Jornal’ para me estamparem o nome e o retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto com todas as armas ao meu alcance. Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura”.

A Academia, tanto a francesa quanto a brasileira, era, e continua sendo, um “salão transcendente”, como a definiu Sainte-Beuve, de quem Lima Barreto era leitor habitual, o que desde logo lhe barrava o acesso, apesar dos seus méritos literários. Claro, ele mesmo reconhecia a singularidade do seu espírito, “excêntrico” na sociedade dos homens: “Tenho, desde os nove anos, vivido no meio de loucos. Já mesmo passei três meses mergulhado no meio deles; mas nunca vi tão vulgares como aqueles. (...) Como todo médico que se compraz com tais estudos, o doutor Murilo tem muito interesse pela literatura e pelos literatos”, tema que, inesperadamente, leva-o de volta à obsessão maximalista, ou seja, à sua revolta contra a sociedade: “Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo; essa burguesia cruel e sem coragem (...) essa burguesia vulpina que apela para a violência pelos seus órgãos mais conspícuos, detestando o maximalismo moscovita, deseja implantar o ‘trepoffismo’, também moscovita, como razão de Estado (...)”.

Nesse caso, o misoneísmo sistemático aceitava a novidade política por suas implicações destrutivas, sendo coerente, em outro plano, com a sua hostilidade contra a máquina de escrever, recentemente introduzida no país. Era o tempo em que os jornalistas escreviam à mão, com tinteiros dispostos nas mesas de trabalho, o que, aliás, ia continuar por muito tempo. Vendo, provavelmente, na engenhoca mais uma das nefastas invenções americanas, Lima Barreto, de péssima letra, recusou-se, entretanto, a utilizá-la: “Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui aos senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever à pena e passar a limpo em máquina”. Havendo motivos para supor que escrevia habitualmente em estado de embriaguez, sua letra era o terror dos tipógrafos, fonte dos incontáveis erros de impressão, muitos dos quais passaram literalmente, se assim me posso exprimir, para estes volumes: “A minha letra é um bilhete de loteria. (...) Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque, sob a minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. (...) Aqui já saiu um folhetim meu (...) tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício”. Assim, “de manhã, quando recebo a ‘Gazeta’ (...) eu me encho de medo (...). Tenho vontade de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos meus olhos. Salto da cadeira, atiro o papel ao chão, rasgo-o; é um inferno”.

Não prestam nenhum serviço, prestam mesmo um mau serviço à memória de Lima Barreto, como escritor e como homem, os que o reduzem a uma pobre figura de mulato perseguido pelos preconceitos da sociedade branca, que, ao contrário, fez todo o possível para salvá-lo dele mesmo.

Link para Lima Barreto

 

 

 

 

23/01/2006