Com a repentina popularidade editorial
dos últimos tempos, a crônica foi transformada em quarto de despejo
onde a recolhem por sua própria efemeridade (tanto no assunto quanto
no interesse e, na maior parte dos casos, pela má qualidade),
etiqueta agora cômoda para classificar o que não tem classificação
ou a tem em categoria inteiramente diversa. Nos dias que correm,
tudo é crônica, com o risco muito certo de nada mais ser crônica,
inclusive em reedições comercialmente interessantes, como nos dois
volumes e 1.183 páginas em que Beatriz Resende e Rachel Valença
reuniram “Toda a crônica”, de Lima Barreto (Rio: Agir, 2004).
Aqui se encontra de tudo, desde as
crônicas propriamente ditas (sobre a vida urbana, por exemplo) aos
excertos memorialísticos, ajustes de contas e ressentidas
reivindicações, desde a polêmica furibunda às críticas sociais e
políticas e aos tópicos de ocasião, como, no primeiro volume, as
“Considerações oportunas”, sobre o tema, para ele doloroso, dos
preconceitos de raça, ou, no segundo, o paralelo que hoje seria
impensável entre D’Annunzio e Lênin, no qual, aliás, só se refere a
este último nas linhas finais: “Ele, D’Annunzio, era herdeiro do
gênio guerreiro desses chefes de bandos que serviam,
indiferentemente, este ou aquele duque (...) foi o monturo dos
séculos mortos (...). O nosso anelo é outro: queremos paz e anarquia
(sic). Lênin e Trotski repeliram nos quatro pontos cardeais os
inimigos do seu regime político”.
Deixando de lado o programa de “paz e
anarquia”, pode-se pensar que poucos dos leitores atuais serão
capazes de compreender essas alusões de 1921, quando D’Annunzio era,
de fato, o grande herói italiano do pós-guerra. À altura em que se
chamava de “maximalismo” o que depois passou a ser referido como
“comunismo” (com os mesmos mal-entendidos semânticos e políticos),
Lima Barreto dizia-se maximalista, dedicando-lhe não uma “crônica”,
mas um longo ensaio de 1919, comentando a conferência do “eminente
sociólogo argentino. Senhor doutor José Ingenieros”, referências
hoje tão arcaicas quanto o próprio maximalismo, além do que revelam
sobre o quadro de valores da época: “os nossos sabichões não têm nem
uma (sic) espécie de argumento para contrapor aos apresentados pelos
que têm meditado sobre as questões sociais e vêem na revolução russa
uma das mais originais e profundas que se têm verificado nas
sociedades humanas”. Errando na nomenclatura e na superestimação de
Ingenieros, ele via claro no extraordinário fenômeno que começava a
se desenvolver aos seus olhos.
Na outra ponta da escala de grandezas
estavam as suas pretensões ou ilusões acadêmicas, provando que,
afinal de contas, não era tão grande quanto pretendia o seu desprezo
pelas consagrações oficiais: “Vou escrever um artigo perfeitamente
pessoal; e é preciso. Sou candidato à Academia de Letras, na vaga do
senhor Paulo Barreto. Não há nada mais justo e justificável. Além de
produções avulsas em jornais e revistas, sou autor de cinco volumes,
muito bem-recebidos pelos maiores homens de inteligência de meu
país. Nunca lhes solicitei semelhantes favores; nunca mendiguei
elogios. Portanto, creio que a minha candidatura é perfeitamente
legítima, não tem nada de indecente. (...) Se não disponho do
‘Correio da Manhã’ ou do ‘O Jornal’ para me estamparem o nome e o
retrato, sou alguma coisa nas letras brasileiras e ocultarem o meu
nome ou o desmerecerem, é uma injustiça contra a qual eu me levanto
com todas as armas ao meu alcance. Eu sou escritor e, seja grande ou
pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos
que se distinguem na sua literatura”.
A Academia, tanto a francesa quanto a
brasileira, era, e continua sendo, um “salão transcendente”, como a
definiu Sainte-Beuve, de quem Lima Barreto era leitor habitual, o
que desde logo lhe barrava o acesso, apesar dos seus méritos
literários. Claro, ele mesmo reconhecia a singularidade do seu
espírito, “excêntrico” na sociedade dos homens: “Tenho, desde os
nove anos, vivido no meio de loucos. Já mesmo passei três meses
mergulhado no meio deles; mas nunca vi tão vulgares como aqueles.
(...) Como todo médico que se compraz com tais estudos, o doutor
Murilo tem muito interesse pela literatura e pelos literatos”, tema
que, inesperadamente, leva-o de volta à obsessão maximalista, ou
seja, à sua revolta contra a sociedade: “Esse ódio ao maximalismo
russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo;
essa burguesia cruel e sem coragem (...) essa burguesia vulpina que
apela para a violência pelos seus órgãos mais conspícuos, detestando
o maximalismo moscovita, deseja implantar o ‘trepoffismo’, também
moscovita, como razão de Estado (...)”.
Nesse caso, o misoneísmo sistemático
aceitava a novidade política por suas implicações destrutivas, sendo
coerente, em outro plano, com a sua hostilidade contra a máquina de
escrever, recentemente introduzida no país. Era o tempo em que os
jornalistas escreviam à mão, com tinteiros dispostos nas mesas de
trabalho, o que, aliás, ia continuar por muito tempo. Vendo,
provavelmente, na engenhoca mais uma das nefastas invenções
americanas, Lima Barreto, de péssima letra, recusou-se, entretanto,
a utilizá-la: “Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos
aparelhos, e lembro aqui aos senhores que aquilo é fatigante, cansa
muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas
vezes: escrever à pena e passar a limpo em máquina”. Havendo motivos
para supor que escrevia habitualmente em estado de embriaguez, sua
letra era o terror dos tipógrafos, fonte dos incontáveis erros de
impressão, muitos dos quais passaram literalmente, se assim me posso
exprimir, para estes volumes: “A minha letra é um bilhete de
loteria. (...) Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque,
sob a minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o
chapéu. (...) Aqui já saiu um folhetim meu (...) tão truncado, tão
doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito.
Tive medo de ser recolhido ao hospício”. Assim, “de manhã, quando
recebo a ‘Gazeta’ (...) eu me encho de medo (...). Tenho vontade de
matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas
as tragédias vejo diante dos meus olhos. Salto da cadeira, atiro o
papel ao chão, rasgo-o; é um inferno”.
Não prestam nenhum serviço, prestam
mesmo um mau serviço à memória de Lima Barreto, como escritor e como
homem, os que o reduzem a uma pobre figura de mulato perseguido
pelos preconceitos da sociedade branca, que, ao contrário, fez todo
o possível para salvá-lo dele mesmo. |