Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Wilson Martins


 

Contos surrealistas, Campos de Carvalho

Jornal do Brasil
24.10.2008

 

A reedição de Campos de Carvalho (1916-1998) repõe nas livrarias uma obra tão singular quanto a respectiva biografia literária. De fato, foi autor de produção "colorida e intensa" no período 1941-1964, depois do que, "como se o autor, com um golpe de mão, tivesse simplesmente fechado uma torneira, parou. E tudo à volta cessou, e daquela fonte não saiu mais nada, e daquela estranha água nenhum dos poucos leitores que àquela altura já se tinham viciado conseguiu um só gole. Campos de Carvalho parou de escrever, em seguida parou de falar e, bem depois, em 1998, morreu". Palavras de Juva Batella na orelha da 4ª edição de Vaca de nariz sutil (1961), que reaparece com a quarta de A lua vem da Ásia (1956), com a segunda de A chuva imóvel (1963) e com O púcaro búlgaro (1964), todos na editora José Olympio (2008).

Seus leitores sabem, graças à exegese cada vez mais indispensável das orelhas, escrevi em 1957, que "ele luta com as armas do espírito contra os seus demônios subjetivos, e deles sai vitorioso". Seus livros são o resultado dessa luta, misto de humor negro e sarcasmo, em que o herói, no caso de A lua vem da Ásia, relata seus encontros e aventuras como hóspede de uma casa muito esquisita, entre hotel e campo de concentração, e que, afinal, vem a saber tratar-se de um asilo de alienados. Na verdade, escrevi então algo desalentado, a vitória contra os seus demônios subjetivos não corresponde a uma vitória contra o demônio da literatura e, como Tribo (seu romance de 1954 posteriormente renegado), A lua vem da Ásia está mais próximo da imaginação infantil que da imaginação estética.

Na verdade, a inteligência normal não dispõe de nenhum elemento para conhecer o que se passa num cérebro doente e, como a enfermidade do espírito humano chama-se ridículo, a obra de arte que toma por tema a coisa dramática por excelência que é a loucura, despenha-se, quase sempre, pelos caminhos desprezíveis (no caso) da caricatura. É que toda concepção puramente exterior caracteriza-se, antes de mais nada, pela gratuidade, inconsistência e mecanicidade, uma vez que o espírito são acredita ser suficiente "fazer o contrário" do habitual para mimar o alienado. Ora, há razões para supor que a loucura não é "o contrário" da saúde mental, mas qualquer coisa de diferente. O herói de Campos de Carvalho é o louco das anedotas, de imaginação um pouco coprolática e sem a "coerência interna" que caracteriza os estados de loucura.

É uma construção no vazio a que faltam os fatores indispensáveis para classificá-la entre as obras de arte literária: não é o estudo de um "caso", nem se distingue excepcionalmente pelo estilo. Como "tema" literário, a obra de arte produzida por um louco está um pouco ultrapassada: pode-se afirmar de modo geral que tudo o que nesse gênero se podia fazer já foi feito. Está claro que o autor tentou renová-lo; sem a densidade de um "documento humano" e sem a impetuosa força sarcástica de um Jarry, é livro que desaparece com a primeira leitura – e as sucessivas "primeiras" propostas pelas reedições.

Têm-se multiplicado ultimamente as obras que apostam no absurdo para garantir-se legitimidade literária, o que resulta, na maioria dos casos, em apostas perdidas. Campos de Carvalho é antecessor dessa numerosa família, o pai excêntrico, o "original" nos dois sentidos da palavra. Literariamente, representou um surrealismo histórico e anacrônico, escrevendo o que deveria ter sido escrito na década de 1920. Seus livros, já agora, têm um pouco o sabor de pão dormido, são vidros de água de rosas com rótulo de veneno, as tíbias entrecruzadas servindo mais para atrair do que para afastar os incautos.

Realmente, se a literatura do desafio provocou, inicialmente, a revolta e o escândalo, já agora não passa de uma convenção admitida entre outras: há um esnobismo de literatura "avançada" e desafiadora, repleta de palavrões e cenas picantes – aquelas cenas e palavrões, dizia há muitos anos Andrade Muricy, que os moleques escrevem nos muros. Diga-se, em favor de Campos de Carvalho, que ele não desce a tais vulgaridades ao mesmo tempo grosseiras e ingênuas, seu "estilo" é de outra natureza: "Faz sete anos, poderia fazer sete séculos ou sete minutos: eu deitado, no pré-albor de um domingo igual a tantos, o umbigo voltado para o teto, aquele corpo morto ao lado, o mesmo de sempre (...)" (A chuva imóvel).

Curioso: é escritor que se lê com prazer, terminando a leitura com o sorriso pálido das decepções amenas e verificando, afinal de contas, que Campos de Carvalho é um dos nossos menores indispensáveis.

 

   
 
 

 

 

 

 

 

6.12.2008