A reedição de Campos de
Carvalho (1916-1998) repõe nas livrarias uma obra
tão singular quanto a respectiva biografia
literária. De fato, foi autor de produção "colorida
e intensa" no período 1941-1964, depois do que,
"como se o autor, com um golpe de mão, tivesse
simplesmente fechado uma torneira, parou. E tudo à
volta cessou, e daquela fonte não saiu mais nada, e
daquela estranha água nenhum dos poucos leitores que
àquela altura já se tinham viciado conseguiu um só
gole. Campos de Carvalho parou de escrever, em
seguida parou de falar e, bem depois, em 1998,
morreu". Palavras de Juva Batella na orelha da 4ª
edição de Vaca de nariz sutil (1961), que reaparece
com a quarta de A lua vem da Ásia (1956), com a
segunda de A chuva imóvel (1963) e com O púcaro
búlgaro (1964), todos na editora José Olympio
(2008).
Seus leitores sabem,
graças à exegese cada vez mais indispensável das
orelhas, escrevi em 1957, que "ele luta com as armas
do espírito contra os seus demônios subjetivos, e
deles sai vitorioso". Seus livros são o resultado
dessa luta, misto de humor negro e sarcasmo, em que
o herói, no caso de A lua vem da Ásia, relata seus
encontros e aventuras como hóspede de uma casa muito
esquisita, entre hotel e campo de concentração, e
que, afinal, vem a saber tratar-se de um asilo de
alienados. Na verdade, escrevi então algo
desalentado, a vitória contra os seus demônios
subjetivos não corresponde a uma vitória contra o
demônio da literatura e, como Tribo (seu romance de
1954 posteriormente renegado), A lua vem da Ásia
está mais próximo da imaginação infantil que da
imaginação estética.
Na verdade, a
inteligência normal não dispõe de nenhum elemento
para conhecer o que se passa num cérebro doente e,
como a enfermidade do espírito humano chama-se
ridículo, a obra de arte que toma por tema a coisa
dramática por excelência que é a loucura,
despenha-se, quase sempre, pelos caminhos
desprezíveis (no caso) da caricatura. É que toda
concepção puramente exterior caracteriza-se, antes
de mais nada, pela gratuidade, inconsistência e
mecanicidade, uma vez que o espírito são acredita
ser suficiente "fazer o contrário" do habitual para
mimar o alienado. Ora, há razões para supor que a
loucura não é "o contrário" da saúde mental, mas
qualquer coisa de diferente. O herói de Campos de
Carvalho é o louco das anedotas, de imaginação um
pouco coprolática e sem a "coerência interna" que
caracteriza os estados de loucura.
É uma construção no
vazio a que faltam os fatores indispensáveis para
classificá-la entre as obras de arte literária: não
é o estudo de um "caso", nem se distingue
excepcionalmente pelo estilo. Como "tema" literário,
a obra de arte produzida por um louco está um pouco
ultrapassada: pode-se afirmar de modo geral que tudo
o que nesse gênero se podia fazer já foi feito. Está
claro que o autor tentou renová-lo; sem a densidade
de um "documento humano" e sem a impetuosa força
sarcástica de um Jarry, é livro que desaparece com a
primeira leitura – e as sucessivas "primeiras"
propostas pelas reedições.
Têm-se multiplicado
ultimamente as obras que apostam no absurdo para
garantir-se legitimidade literária, o que resulta,
na maioria dos casos, em apostas perdidas. Campos de
Carvalho é antecessor dessa numerosa família, o pai
excêntrico, o "original" nos dois sentidos da
palavra. Literariamente, representou um surrealismo
histórico e anacrônico, escrevendo o que deveria ter
sido escrito na década de 1920. Seus livros, já
agora, têm um pouco o sabor de pão dormido, são
vidros de água de rosas com rótulo de veneno, as
tíbias entrecruzadas servindo mais para atrair do
que para afastar os incautos.
Realmente, se a
literatura do desafio provocou, inicialmente, a
revolta e o escândalo, já agora não passa de uma
convenção admitida entre outras: há um esnobismo de
literatura "avançada" e desafiadora, repleta de
palavrões e cenas picantes – aquelas cenas e
palavrões, dizia há muitos anos Andrade Muricy, que
os moleques escrevem nos muros. Diga-se, em favor de
Campos de Carvalho, que ele não desce a tais
vulgaridades ao mesmo tempo grosseiras e ingênuas,
seu "estilo" é de outra natureza: "Faz sete anos,
poderia fazer sete séculos ou sete minutos: eu
deitado, no pré-albor de um domingo igual a tantos,
o umbigo voltado para o teto, aquele corpo morto ao
lado, o mesmo de sempre (...)" (A chuva imóvel).
Curioso: é escritor que
se lê com prazer, terminando a leitura com o sorriso
pálido das decepções amenas e verificando, afinal de
contas, que Campos de Carvalho é um dos nossos
menores indispensáveis.