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Um esboço de Da Vinci

 

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

 

 

 

José Saramago, Nobel

 

 

Wilson Martins

6.9.2003


Testamento de Orfeu

 

Nos milhares de versos agora reunidos em perto de 700 páginas, pode-se afirmar que a obra lírica de Alphonsus de Guimaraens Filho (“Só a noite é que começa”. Poemas escolhidos e versos esparsos. Rio: Record, 2003) está contida em dois poemas de absoluta perfeição técnica e poética, assim como a de Manuel Wilson Martins Bandeira, dizia Otto Maria Carpeaux, resume-se num único verso: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Feita em grande parte por esforço deliberado e facilidade de composição, a poesia literária, em termos de qualidade, define-se por essas fulgurações instintivas e inesperadas: são elas que marcam o nível máximo no conjunto em que se inscrevem.

Numa poética dominada pelo signo da viagem — entre o passado e o presente, entre os mortos e os vivos, entre os amigos e a família, entre o sentimento religioso e a nostalgia do mundo — viagem que, por paradoxo, pode ser vista como imóvel ou no interior de si mesma, Alphonsus de Guimaraens Filho traduziu-a pela idéia complementar da permanência no soneto desse título: De tanto me ir, de estar sempre chegando, que sede em mim de alguma permanência! Não sei se estive além e nem sei quando voltarei, porque tudo é inexistência. O sol nunca terá a mesma ardência mas sempre, sempre me estará chamando. E eu não me irei porque sem consistência é o chão de sonho que ora estou pisando. Cidades vi que agora me aparecem como nunca jamais nem terão sido. E as grandes vozes que conturbam, crescem mas de tão longe que eu direi somente que não me fui, que, se eu tivesse ido, não estaria chegando eternamente.

É o homo viator em busca da poesia, mas também em busca da vida e do Graal que contém a resposta de tudo; é a peregrinação dos espíritos religiosos e inquietos, sempre insatisfeitos pelo que encontram, sempre em face do Deus silencioso e enigmático, o silêncio eterno dos espaços infinitos, a viagem que, por definição, não pode ter fim, que jamais chega ao destino e que só nela mesma encontra satisfação, a resposta que nada responde. Assim, tudo permanece na própria transitoriedade, ou, se quisermos, tudo é transitório na permanência, o poeta e o homem partem sempre à procura deles mesmos, em busca do tempo perdido, em busca do que só encontram por meio da arte, no mundo evanescente e das ilusões sempre renovadas.

Os grandes conquistadores do mundo real chegam e vencem com a rapidez do relâmpago, mas a lição dos poetas é diferente:
Vim, vi, venci. Vim como cego. Vi como cego. Como cego, venci. Só não sei dizer a que vim, o que vi, em que venci. Afinal de contas, o grande enigma sem resposta, nem nas religiões, nem nas ciências, nem nas filosofias, é a vida em si mesma, nas contradições que lhe dão coerência e sentido. “Que terrível beleza” ensina o soneto emblemático de toda a obra: Que terrível beleza a desta vida! Terrível? Luminosa, resplendente como a tristeza de a saber perdida, perdida, e sempre nova, de inocente pureza — ah que beleza surpreendente, que, quanto mais intensa e dolorida, mais se desfaz maravilhosamente no céu, no céu, longe de nós — perdida! Que fremente beleza, essa que arde em nós, e não é nossa, e quando a temos é como o céu possui num sopro a tarde e mal a tem, por a saber perdida... Que fremente beleza essa em que ardemos, em que — brasa de estrela — esvai-se a vida.

De 1935 (“Lume de estrelas”) a “Luz de agora” (1987-1990), e aos “Versos esparsos” é sensível o amadurecimento de Alphonsus de Guimaraens Filho, o processo de gradativa emancipação do fantasma paterno, o que nada tem a ver com os sentimentos filiais propriamente ditos, que, numa espécie de remorso subliminal, multiplicam-se aqui em numerosos poemas. É pelo parricídio contra os mestres obstinados e imperiosos que se escreve a história das artes. Nessas perspectivas, a crítica que durante muitos anos porfiou em apontar no filho o continuador ou o reflexo do pai (maneira fácil de criticá-lo negando-lhe autenticidade), pode ter tido um inoportuno efeito inibidor sobre o seu espírito.

É tão difícil ser filho de um grande homem quanto ser pai de um grande homem, mas o primeiro dever é repudiar cruelmente a herança asfixiante e descaracterizadora. Neste caso, já que é preciso dizer tudo, a poesia do filho parece-me claramente superior à do pai, tanto no volume quanto na variedade temática e na riqueza de inspiração, tanto no vigor expressivo quanto no domínio das técnicas. Por inesperada contradição, o pai parece inibido, em face do filho expansivo... Lido nessas perspectivas e apenas no que se refere à poesia enquanto obra de arte literária, os lugares-comuns (e óbvios...) da história literária parecem invertidos. Na verdade, a obra de Alphonsus de Guimaraens Filho distingue-se, precisamente, por sua indiferença às escolas literárias que se sucederam desde os anos de 1930, nem por isso definindo-se como um sobrevivente temporão do Simbolismo, ao contrário do que a crítica superficial vem afirmando ao longo dos anos. Ele estará mais perto dos “modernos” que superaram o “modernismo”, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, por exemplo, cujas ressonâncias em muitos dos seus poemas são mais do que evidentes, além dos intemporais ou supratemporais a que dedicou a série dos “sonetos com dedicatória”: Alberto de Oliveira, Álvares de Azevedo, Antônio Nobre, Cruz e Sousa, Cláudio Manuel da Costa, Gonçalves Dias, Luís de Camões, Junqueira Freire e outros muitos da ampla família “espiritualista” em contraposição à dos “sociais”. Acrescente-se que, apesar das aparências e das modas, é uma família imensamente maior do que poderíamos imaginar, incluindo Casimiro de Abreu, Cecília Meireles, Dante Milano, Emília Moura, Henriqueta Lisboa, Machado de Assis, Murilo Mendes, Olavo Bilac... Bilac? Sim, porque Alphonsus de Guimaraens Filho, praticante exímio do esconjurado soneto, sabe reconhecer a poesia onde a encontra, longe dos espíritos simples que o expulsaram da literatura sem mesmo lê-lo.

É todo terreno abandonado, uma wasteland de nossa literatura, entregue às urtigas pelos simplificadores sumários. Dos sonetos aos poemas longos, Alphonsus de Guimaraens Filho posta-se como testemunha silenciosa de uma dimensão das nossas letras sacrificada ao embate das polêmicas e das doutrinas antagônicas.

alphonsus Guimaranes Filho

Alphonsus Guimaraens Filho

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels