Wilson
Martins
6.9.2003
Testamento de Orfeu
Nos
milhares de versos agora reunidos em perto de 700 páginas,
pode-se afirmar que a obra lírica de Alphonsus de Guimaraens
Filho (“Só a noite é que começa”. Poemas escolhidos e versos
esparsos. Rio: Record, 2003) está contida em dois poemas de
absoluta perfeição técnica e poética, assim como a de Manuel
Bandeira, dizia Otto Maria Carpeaux, resume-se num único
verso: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Feita em grande parte por esforço deliberado e facilidade de
composição, a poesia literária, em termos de qualidade,
define-se por essas fulgurações instintivas e inesperadas: são
elas que marcam o nível máximo no conjunto em que se
inscrevem.
Numa poética dominada pelo signo da viagem
— entre o passado e o presente, entre os mortos e os vivos,
entre os amigos e a família, entre o sentimento religioso e a
nostalgia do mundo — viagem que, por paradoxo, pode ser vista
como imóvel ou no interior de si mesma, Alphonsus de
Guimaraens Filho traduziu-a pela idéia complementar da
permanência no soneto desse título: De tanto me ir, de
estar sempre chegando, que sede em mim de alguma
permanência! Não sei se estive além e nem sei
quando voltarei, porque tudo é inexistência.
O sol nunca terá a mesma ardência mas sempre,
sempre me estará chamando. E eu não me irei porque
sem consistência é o chão de sonho que ora estou
pisando. Cidades vi que agora me aparecem
como nunca jamais nem terão sido. E as grandes
vozes que conturbam, crescem mas de tão longe que eu
direi somente que não me fui, que, se eu tivesse
ido, não estaria chegando eternamente.
É o
homo viator em busca da poesia, mas também em busca
da vida e do Graal que contém a resposta de tudo; é a
peregrinação dos espíritos religiosos e inquietos, sempre
insatisfeitos pelo que encontram, sempre em face do Deus
silencioso e enigmático, o silêncio eterno dos espaços
infinitos, a viagem que, por definição, não pode ter fim, que
jamais chega ao destino e que só nela mesma encontra
satisfação, a resposta que nada responde. Assim, tudo
permanece na própria transitoriedade, ou, se quisermos, tudo é
transitório na permanência, o poeta e o homem partem sempre à
procura deles mesmos, em busca do tempo perdido, em busca do
que só encontram por meio da arte, no mundo evanescente e das
ilusões sempre renovadas.
Os grandes conquistadores do
mundo real chegam e vencem com a rapidez do relâmpago, mas a
lição dos poetas é diferente: Vim, vi, venci.
Vim como cego. Vi como cego. Como cego,
venci. Só não sei dizer a que vim,
o que vi, em que venci. Afinal de
contas, o grande enigma sem resposta, nem nas religiões, nem
nas ciências, nem nas filosofias, é a vida em si mesma, nas
contradições que lhe dão coerência e sentido. “Que terrível
beleza” ensina o soneto emblemático de toda a obra: Que terrível beleza a desta vida! Terrível?
Luminosa, resplendente como a tristeza de a saber
perdida, perdida, e sempre nova, de inocente
pureza — ah que beleza surpreendente, que, quanto
mais intensa e dolorida, mais se desfaz
maravilhosamente no céu, no céu, longe de nós —
perdida! Que fremente beleza, essa que arde
em nós, e não é nossa, e quando a temos é como o
céu possui num sopro a tarde e mal a tem, por a saber
perdida... Que fremente beleza essa em que
ardemos, em que — brasa de estrela — esvai-se a
vida.
De 1935 (“Lume de estrelas”) a “Luz de agora”
(1987-1990), e aos “Versos esparsos” é sensível o
amadurecimento de Alphonsus de Guimaraens Filho, o processo de
gradativa emancipação do fantasma paterno, o que nada tem a
ver com os sentimentos filiais propriamente ditos, que, numa
espécie de remorso subliminal, multiplicam-se aqui em
numerosos poemas. É pelo parricídio contra os mestres
obstinados e imperiosos que se escreve a história das artes.
Nessas perspectivas, a crítica que durante muitos anos porfiou
em apontar no filho o continuador ou o reflexo do pai (maneira
fácil de criticá-lo negando-lhe autenticidade), pode ter tido
um inoportuno efeito inibidor sobre o seu espírito.
É
tão difícil ser filho de um grande homem quanto ser pai de um
grande homem, mas o primeiro dever é repudiar cruelmente a
herança asfixiante e descaracterizadora. Neste caso, já que é
preciso dizer tudo, a poesia do filho parece-me claramente
superior à do pai, tanto no volume quanto na variedade
temática e na riqueza de inspiração, tanto no vigor expressivo
quanto no domínio das técnicas. Por inesperada contradição, o
pai parece inibido, em face do filho expansivo... Lido nessas
perspectivas e apenas no que se refere à poesia enquanto obra
de arte literária, os lugares-comuns (e óbvios...) da história
literária parecem invertidos. Na verdade, a obra de Alphonsus
de Guimaraens Filho distingue-se, precisamente, por sua
indiferença às escolas literárias que se sucederam desde os
anos de 1930, nem por isso definindo-se como um sobrevivente
temporão do Simbolismo, ao contrário do que a crítica
superficial vem afirmando ao longo dos anos. Ele estará mais
perto dos “modernos” que superaram o “modernismo”, como Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, por exemplo, cujas
ressonâncias em muitos dos seus poemas são mais do que
evidentes, além dos intemporais ou supratemporais a que
dedicou a série dos “sonetos com dedicatória”: Alberto de
Oliveira, Álvares de Azevedo, Antônio Nobre, Cruz e Sousa,
Cláudio Manuel da Costa, Gonçalves Dias, Luís de Camões,
Junqueira Freire e outros muitos da ampla família
“espiritualista” em contraposição à dos “sociais”.
Acrescente-se que, apesar das aparências e das modas, é uma
família imensamente maior do que poderíamos imaginar,
incluindo Casimiro de Abreu, Cecília Meireles, Dante Milano,
Emília Moura, Henriqueta Lisboa, Machado de Assis, Murilo
Mendes, Olavo Bilac... Bilac? Sim, porque Alphonsus de
Guimaraens Filho, praticante exímio do esconjurado soneto,
sabe reconhecer a poesia onde a encontra, longe dos espíritos
simples que o expulsaram da literatura sem mesmo lê-lo.
É todo terreno abandonado, uma wasteland de
nossa literatura, entregue às urtigas pelos simplificadores
sumários. Dos sonetos aos poemas longos, Alphonsus de
Guimaraens Filho posta-se como testemunha silenciosa de uma
dimensão das nossas letras sacrificada ao embate das polêmicas
e das doutrinas antagônicas.
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