Zuleide Duarte
Na escrita de Lourdes Hortas o
exercício de ser
"Sou a minha linguagem
Nela venho e nela vem
Refletida esta paisagem
Que contenho e me contém".
(Maria de Lourdes Hortas)
Cultivar a poesia lírica é remontar às
origens da linguagem e do sentimento naquilo que apela para nossa
humanidade e resgata o sentimento pelas coisas simples, e talvez, o
que nos salva do anti-sentir. O cantar a grandeza da vida menor, do
cotidiano, do simples, do prosaico.
A poesia de Maria de Lourdes Hortas,
essencialmente lírica, vincula-se a uma tradição que vem de tão
longe como a rosa-raiz do seu poema "Rosa, Rosae" do seu penúltimo
livro Dança das Heras (1995): Não haveria rosa/se entre as rosas/não
existisse a rosa mais antiga.
Como a rosa mais antiga do poema
citado, Maria de Lourdes Hortas debutou na poesia com o livro Aromas
da Infância, 1963, quando recebeu o primeiro prêmio do Concurso de
Manuscritos, realizado pelo Secretariado Nacional de Informações de
Lisboa. Já nesse primeiro livro delineia-se a temática que permeia
seu discurso poético: a aldeia na distante península ibérica e o
Recife, pátria adotiva: o sonho da impossível ubiqüidade: estar aqui
e na aldeia ao mesmo tempo. Sonho alimentado de duas vidas
simultâneas, vividas pelo registro da realidade e do desejo. Entre
as visões da aldeia e o colorido do Recife está o mar, símbolo
ambivalente de corte e religação, de dor e esperança.
Sendo a ruptura um traço da
modernidade, seu efeito, em muitos aspectos bastante representativo,
não eliminou os moldes e temas que são a herança de uma tradição que
se confirma e conquista cada vez mais espaço.
Com a fragmentação, a bizarrice, a
ironia e a desarticulação aparentes da poesia contemporânea
coexistem os temas lírico-amorosos, barcarolas, odes, elegias,
cantigas, acalantos. Nessa perspectiva, a poesia de Maria de Lourdes
Hortas apresenta-se com a mescla da modernidade em poemas onde
trabalha significantes essencialmente nominais, estruturas frásicas
onde o estrato ótico completa a decodificação, entre outras técnicas
ditas modernas. Paralelamente, sua lírica está marcada pela
influência trovadoresca em que avultam a cantiga do amigo, lamento
feminino pela ausência amada, a vassalagem amorosa, em construções
onde o paralelismo é o recurso técnico privilegiado, ao lado de
anáforas e refrões. Nos poemas Ai quem me dera uma tristura antiga e
Ciranda, por exemplo, o esquema de repetição de versos próprios das
cantigas paralelísticas é utilizado: Em todas as casas te procuro,
"Casa onde /habitou a infância..."
Textos onde chama pelo amado em tom
plangente enriquecem a lira da poetisa: Ó AMADO que partes sem ter
vindo...
Ao lado de composições que definem a
filiação da escritora à lírica trovadoresca encontramos composições
onde a ruptura com essa tradição se efetiva: “DISPO a armadura/
cobre/ amarro o cavalo/ prata”.
Equilibrando-se entre as formas
consagradas pela tradição e o gosto iconoclástico da modernidade,
Maria de Lourdes Hortas vem cultivando, há três décadas, sua arte.
Do primeiro livro para o segundo,
catorze anos. Mas a poetisa não parou. Exerceu atividade
jornalística como colaboradora do Diário de Pernambuco, seguiu o
curso de Letras (já era advogada desde 1964), e incursionou pelo
magistério. Crescendo no mister que se tornou a sua vida, a
literatura, ganhou mais um prêmio, concedido pela Associação de
Cultura Luso-Brasileira de Juiz de Fora (MG) pelo texto poético Fio
de Lã que saiu em livro no mesmo ano, numa edição do Gabinete
Português de Leitura do Recife. Ano produtivo foi o de 1979: dois
livros publicados. Fio de Lã - poesias e Palavra de Mulher -
antologia de poesia feminina contemporânea, publicada pela Editora
Fontana (RJ).
O erotismo com que se tecem as imagens
desse poema estará presente na obra de Maria de Lourdes Hortas,
publicada a partir da década de oitenta. A "rosa desfolhada para e
pelo prazer", inspirará a velha dicotomia amor x dor. No livro
Flauta e Gesto (1983), a mágoa floresce também e escorre pelas
lágrimas da mulher/menina, da menina/mulher.
A escrita de Maria de Lourdes Hortas representa, como ela própria já
a afirmou, a sua linguagem, sua forma de estar no mundo, a via de
acesso ao exterior e ao outro. Sua luta incessante com a palavra, à
maneira Drummondiana, fê-la cúmplice e irremediavelmente dependente,
da palavra escrita: caminho que a conduz à autoexpressão e à
expressão do mundo. O poema Chave evidencia quão estreita é a
ligação entre a vida vivida e a vida recriada em imagens
transfiguradoras da realidade mas nem por isso menos vivas.
No universo lírico da poesia de Maria
de Lourdes Hortas o lugar para refletir sobre a condição da mulher,
seu papel na vida afetiva, sua representação diante dos mistérios do
ser está sempre em evidência.
No exercício da intertextualidade com
Os cantares de Salomão o sensualismo desabrocha ousado e maduro:
Contigo se deitaram/ setecentas rainhas/... Sou eu a trigueira,
porém formosa/filha de Jerusalém...
Com a vida dedicada à literatura,
Maria de Lourdes Hortas encontrou, na palavra, a resposta às suas
mais profundas inquietações e linimento para suas feridas. Recriar
pela palavra é o credo desta mulher simples, que ama as flores, a
chuva, a vida, e faz do seu mister um sacerdócio, cujo "Acto de Fé"
encerra estas breves considerações:
“Acto de Fé/ Creio na alquimia da
palavra/ onde de um rio/ raiz, seiva, resina favo de mel silvestre/
mina d'água/ êxtase da infâmia/ esperando-me na/ esquina./ Ao
terceiro verso/ ressuscito dos mortos/ enquanto lírios nascem/
sereníssimos/ varando a verde relva/ do silêncio que respira.”
Zuleide Duarte é doutora em Literatura
Brasileira pela UFPB e professora da Funeso, em Olinda.
Leia a obra de Maria de
Lourdes Hortas
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