Zemaria Pinto
Os signos da modernidade na
Suíte para os habitantes da noite *
Não, senhores, a Poesia não está em
crise: a Poesia é crise. Por consubstanciar-se na própria aventura
da linguagem, a Poesia é uma constante de questionamento, busca e
mutação, renovando-se a partir de si mesma e do contágio com as
outras artes e com o cotidiano. Entretanto, se analisarmos sua
história desde os antigos até o Romantismo, veremos uma distância
muito grande entre o comportamento e a consciência desse
comportamento. Os poetas que alicerçaram a Poesia enquanto arte
valeram-se de recursos técnicos que permitem sua sobrevida através
dos séculos. Mas é o poeta moderno que equaciona esse problema em
limites palpáveis: de Baudelaire aos Campos, de Laforgue a Bandeira,
o poeta moderno tem pensado sua poesia com o estofo da
intemporalidade e da universalidade. Muda a forma, mudam-se as
escolas, mas ela mantém-se fiel à sua tradição histórica, num
trabalho de resgate permanente do estabelecido, com o qual se
engendrará o novo.
E eis que se instala o paradoxo: o
novo criado a partir da tradição, e não como resultante de um
conflito entre esta e aquele. É aqui, então, que se instaura a
crise. João Alexandre Barbosa, no ensaio As Ilusões Da Modernidade,
afirma que, para o poeta moderno, "a tradição que interessa é aquela
que, traduzida, implica no desbravamento de novas possibilidades de
utilização da linguagem da Poesia". O poeta fundará, portanto, sua
modernidade no caráter intemporal e universal de seu trabalho, e
numa terceira ilusão: a da ubiqüidade, ou seja, ser de todas as
épocas e de todos os lugares, rompendo a linearidade tempo/espaço,
ou melhor, fragmentando-a a partir da leitura dos intertextos que
compõem o poema.
O poeta moderno é, pois, um criador de
enigmas. A distância entre o leitor e o poeta pode ser medida pela
tensão que este consegue ao ignorar os signos da linguagem
estabelecida, que resultariam num discurso lógico, multiplicando
significados, multifacetando a leitura. Aqui faz-se útil o exercício
da crítica, mais que em qualquer outra atividade artística. Um
romance pode prender seu leitor pela boa trama. Um quadro pode
encantar pela carga emocional que transmite. Uma sinfonia ou uma
simples canção serão agradáveis ao ouvido, prescindindo de um
socorro crítico. Mas a crítica do poema arquiteta uma ponte entre o
poeta e o leitor, fornecendo a este algumas possibilidades de
leituras, independentes do impacto causado pela musicalidade e pelas
imagens que o poema transmite numa leitura acrítica. T. S. Eliot, no
ensaio As Fronteiras da Crítica, afirma que "o crítico é um crítico
(de poesia) se o seu objetivo primordial, ao escrever crítica, for o
de ajudar seus leitores a compreender e a sentir prazer". A ele
cabe, portanto, desvendar o que Pound classificou como "a dança do
intelecto entre as palavras", ou a essência mesma da Poesia.
Essas reflexões vêm-me, um tanto
desencontradas, a propósito da leitura de Suíte Para Os Habitantes
Da Noite, de Anibal Beça, vencedor do 6° Prêmio Nestlé de Literatura
Brasileira, categoria Poesia, em 1994. Anibal é o poeta moderno por
excelência, a partir do momento em que elege a linguagem como o
referencial de seu fazer poético. Já fora assim em Filhos da Várzea,
também em Itinerário Poético, livros anteriores. Esta Suíte traz um
poeta mais amadurecido, não apenas pelo inevitável passar do tempo,
o que em alguns escritores traduz-se por repetição ou enfado, mas
por guardar no cerne da sua elaboração poética uma força renovada,
que transforma a linguagem, de objeto, em sujeito do poema.
O crítico situado nesta insípida
pós-modernidade, que não se submete às saturações impostas por
modismos acadêmicos, com suas vertentes que transitam da
antropologia à psicologia, passando por "gias" e "ismos"
inimagináveis, tem dificuldade de enquadrar o analisado em escolas,
o que facilitaria sobremaneira o esclarecimento didático. Como não
vivemos no centro de nenhuma revolução estética, e o estilo de nossa
época só será definido daqui a algumas décadas, vou arriscar nestes
comentários, apenas para efeito de melhor entendimento, classificar
o poeta Anibal Beça em uma escola ou estilo consagrado. É um risco
consciente, mas é uma tentativa de casar uma crítica que se pretende
atual com a tradição literária que embasa a própria criação do
autor.
Temos na Suíte as mais diversas formas
poéticas: da ode ao soneto, da balada ao auto, resgatados da
tradição, até ousadias formais historicamente recentes, como o poema
concreto e o poema-práxis, além do poema livre das amarras rítmicas,
cuja musicalidade se constrói a partir da interação entre autor e
leitor. Ao lado da elaboração formal múltipla e inquieta, nota-se a
preocupação com o enriquecimento da linguagem, a partir do uso de
palavras exiladas do coloquial, bem como a criação de inúmeros
neologismos. Leitor de Dante, Camões e Pessoa, fato evidenciado no
texto, Anibal sabe que o poeta é o guardião da língua. Outra
característica facilmente observável na Suíte é a dicotomia em que
ela se alicerça: noite-dia, loucura-razão, sem que se estabeleça uma
predominância de valor, antes, procurando o equilíbrio. Esse embate
constante se trava também, sem que o poeta tome partido, na tensão
entre fé mística e erotismo, urbano e bucólico, paixão e humor,
apolíneo e dionisíaco, onde os contrários não se negam: se
completam, se complementam como parte de uma estética una. Por fim,
a definição de Dámaso Alonso, acerca da poética de Góngora -
"intensa no pormenor, densa no conjunto" -, enquadra-se à perfeição
na poesia de Anibal Beça. Despido dos vícios que distinguem o
Barroco, o poeta toma para si o que há de positivo naquela escola,
reinventando a tradição e inserindo-se em seu tempo, num movimento
circular de intemporalidade,
Uma outra evidência do caráter
intencionalmente neobarroco da Suíte Para Os Habitantes Da Noite é o
empréstimo que ela faz à música para intitular seus "movimentos".
Enquanto forma musical, a suíte foi estabelecida no século XVII,
reunindo os ritmos de dança então em voga (sarabanda, giga, alemanda,
entre outros), caracterizando-se como uma sucessão de peças de
caráter contrastante, porém escritas numa mesma tonalidade. Tendo o
barroco Johann Sebastian Bach, na primeira metade do século XVIII,
como seu mais notável criador, a suíte, com o passar do tempo,
perdeu sua característica dançante, passando a designar trechos
sinfônicos representativos de óperas, balés ou música incidental
para teatro. É, pois, com o sentido original que Anibal Beça designa
a Suíte.
A tradição lírica brasileira não
guarda muita afinidade com os poemas de longo fôlego, tanto que
classifica Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, como poema épico,
querendo livrar-se, talvez, do estigma de não termos um "poema
nacional". A nossa lírica dá preferência à poesia confessional, à
Bandeira, ou questionadora do mundo, das invenções de Drummond, mas
(quase) sempre de maneira fragmentada, sem um fio condutor. Anibal
não fugiu à regra, negando-a: a Suíte é composta de poemas que podem
ser lidos, e entendidos, independentes entre si, porém há uma guia,
a mão do poeta-condutor, que atravessa todo o poema, desde o
"Prólogo" - e assim me assino esse uno e esse outro Majnun - até a
"Balada Como/Vida", com sua coda em pianíssimo, figurando o
transitório da vida, até então cantada em outros tons - altos e
bons.
Tendo como ponto de partida a tradição
persa, através da desventura do poeta Majnun, que enlouqueceu por
amor a Laila, despojando-se de suas riquezas para viver no deserto,
a Suíte traça um movimento sinuoso até um provável presente
amazônico e aqui se universaliza:
Um rio negro lava minha aldeia
leva meu silêncio
Os elementos do poema, entretanto, são
refratários a qualquer análise de cunho sociológico. Não espere o
leitor encontrar em Anibal Beça, e em especial nesta Suíte, uma
atitude linear e franca: somos conduzidos por labirintos habitados
por animais tão domésticos, como o gato, o galo, ou mesmo éguas
mouras, para, num repente, confrontarmo-nos com um tigre de basalto
ou com
Os lobos sempre esses lobos
assaltantes da memória
recorrências de mim mesmo
ou de um outro que me habita
Mas o poeta que nos conduz (Majnun?
Anibal?) não esquece das musas reclusas musas ou da mulher de um
sonho distante, a própria Noite-Laila, o inconsciente, a desrazão, a
fúria criadora do Louco-Majnun, que, enquanto poeta, representa o
limite da palavra, palavra que se multiplica em lua (luaura,
lualcoólica, lualém, luasente, luamante) ou noite (noitensa,
noitelúrica, noitestelar, noitemporal, noiterminal). Onde a Poesia?,
o poeta se pergunta: num auto-novena, no verbo em desconstrução, na
contramão do silêncio, ou na solidão do Poema?
A trajetória que a Suíte percorre, do
extremo Oriente às barrancas do Amazonas, enveredando por esse tempo
milenar e atual, é uma clarividência de seu caráter de obra
permanente, não fosse pelo rigor estético de sua elaboração a partir
de sutis intertextos, que o leitor descobrirá ao sabor da
leitura-viagem (via linguagem), e que funcionam como fachos a
alumiar a caminhada na noite escura do poemenigma.
*Posfácio do livro Suíte Para Os Habitantes
da Noite, de Anibal Beça, editado pela Paz e Terra, em 1995, com
prefácio de Marcus Accioly.
Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e
Fragmentos de Silêncio.
Leia Aníbal Beça
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