Ao longo do meio século em que exerceu o
ofício da literatura, Carlos Drummond de Andrade ficou famoso
como homem tímido e reservado, avesso às entrevistas e
badalações de que tantos gostam. Essa imagem ele mesmo a
cultivava, como bom artifício para se defender dos repórteres e
jornalistas que o assediavam. Em janeiro de 1984, Drummond
recebeu-nos em seu apartamento para uma longa e substanciosa
entrevista, das maiores entre as poucas que já havia concedido.
Foram quase duas horas de gravação, quando o mineiro de Itabira,
loquaz e bem-humorado, falou de tudo: de literatura, de
democracia, de política, de poder, de universidade, de
erotismo... e dos muitos amigos que soube cultivar. Um deles,
Manuel Bandeira, declarou certa vez, a propósito de conhecidos
escritores ingleses que visitavam o Rio: “Dois poetas que,
somados e multiplicados por dois, não dão um Carlos Drummond de
Andrade”.
Para alguns teóricos, não há como
negar ser a literatura produzida pelas elites culturais
e apenas consumida por elas. Você concorda com isso?
— Eu poderei responder a
essa sua pergunta partindo da seguinte consideração: a
literatura pode ser considerada uma arte de elite porque há
falta de instrução, de cultura, nas massas populares. Isso não
quer dizer que a gente escreva deliberadamente para o nosso
semelhante culto: escrevemos para ele porque não temos condição
de escrever para o povo. E não temos porque o povo não foi
elevado a um nível de conhecimento cultural que lhe permitiria,
por exemplo, assimilar uma sinfonia, um quadro de Van Gogh, um
poema de Dante ou de Verlaine. Em suma: a produção que chega até
o povo é condicionada às suas limitações. E contra isso o que
haveria a fazer era um esforço nacional tremendo — que os nossos
governos não parecem inclinados a realizar — no sentido de
realmente democratizar o Brasil. E democracia não é apenas voto:
democracia é ilustração, é conhecimento, é escola.
Na
sua opinião, qual deve ser a função prioritária do poeta neste
final de século, marcado pela agressão à natureza e pela ameaça
nuclear?
— Eu acho que a missão do
poeta é fazer versos. Ele deve fazer versos sobre o que
entender: se passar uma pulga e ele achar que a pulga é
engraçada, ele faz um poema, uma ode à pulga. Agora, vendo um
rio poluído, uma árvore destruída inutilmente, se ele sentir uma
emoção correspondente, se se revoltar contra aquilo e sentir a
onda poética subir, é legítimo que escreva sobre isso. Num plano
maior, sobre a ameaça nuclear, sobre todas as outras ameaças
políticas e guerreiras que pairam sobre o mundo. Necessariamente
ele não tem a missão de corrigir o mundo, não creio seja essa a
missão do poeta. Será uma ilusão supor que a poesia pode
contribuir para o direcionamento do mundo num sentido mais
justo. Eu acho que a função do poeta é produzir emoção, é
despertar no próximo um sentimento de beleza, de alegria, de
tristeza — mas sobretudo um sentimento de comunhão com a vida. A
vida é múltipla, complexa, não se limita à restauração de
direitos democráticos ou a uma ordem em que todas as pessoas
respeitem a natureza. Viver é o ato mais importante da vida, e
viver envolve todos os compromissos, todas as liberdades
possíveis. Então eu acho que o poeta cumprirá melhor sua missão
se fizer versos e esses versos forem bons. Se os seus temas
coincidirem com os problemas do mundo de hoje, tanto melhor; mas
se ele contar apenas a sua dor-de-cotovelo, a sua emoção
particular, ainda assim estará fazendo um bem à humanidade.
Porque a pessoa que sentir aquela mesma emoção, o mesmo
sofrimento de amor, a mesma dor física ou de saudade lendo o
poeta — se ele realizou bem o seu poema —, essa pessoa se
sentirá confortada. Acho que esse é um dos grandes benefícios da
literatura: causar bem aos outros — não apenas politicamente,
socialmente, mas pelo simples fato de transmitir uma vivência,
uma emoção que é assimilada pelo próximo.
Passados mais de cinqüenta anos de carreira literária, qual a
crítica que você faz, hoje, aos seus primeiros poemas?
— Muita coisa do que eu
fiz, que data de 1930, eu acho hoje uma porcaria, não faria de
novo. São obras que não resistem. Mas, também, seria preciso
julgar com o espírito de então... Considero uma calamidade, uma
injúria alguém publicar as coisas iniciais, aqueles vagidos dos
escritores que se tornaram mais ou menos conhecidos. Saem coisas
incríveis... Uma ocasião, Afonso Arinos brigou comigo —
politicamente, não pessoalmente —, porque ele era da oposição e
eu do governo. Eu tive a triste sina de ser do governo, em Minas
Gerais. Era amigo do Capanema, então trabalhava com ele. Mas
Capanema fora meu colega de colégio, não um político que eu
procurasse pra subir, pra fazer carreira. Nós éramos de jornais
adversários, e o Afonso não gostou de umas coisas que eu tinha
feito. Então publicou no jornal dele, com uma chamada de
primeira página, coisas que eu havia escrito aos dezoito anos.
Você não pode imaginar a chateação que me deu! Eu telefonei pra
ele e disse: “Olha, Afonso, você foi muito safado comigo, e eu
vou me vingar publicando coisas suas também...”. Mas a essa
altura o Capanema, que sabia da história e não queria brigar com
Virgílio de Melo Franco, irmão do Afonso e que era o chefe
político da oposição, me pediu: “Ô Carlos, deixa dessa bobagem,
considera isso acabado...”. Na realidade, nossa briga havia
resultado de atritos políticos, não pessoais. Mas até hoje o
Afonso se queixa de que eu o castigava muito, quando ele
trabalhava no jornal em que fui redator-chefe, de que eu o
mandava fazer muita coisa... Eu sempre achei que ele não tem a
menor razão. Até em livro ele andou publicando isso. Eu era
redator-chefe de um jornal da maior importância política, porque
era o órgão do Partido Republicano Mineiro. Mas o jornal em si
não tinha o menor valor, era um papelucho de quatro páginas mal
impressas, de composição manual, no tempo em que já havia
linotipo. Era uma porcaria. E tanto era uma porcaria que o
próprio Partido não ligava pra ele, e, não ligando, deixava que
nós fizéssemos lá a nossa campanha modernista com o maior
desembaraço possível. Então chega lá o Afonso, recomendado do
Palácio da Liberdade, para ocupar um lugar — ele havia se mudado
para Belo Horizonte a fim de tratar da saúde, ia ser promotor e
conseguira um gancho no jornal. Chegou aquele rapaz bonito —o
Afonso hoje é feio, naquele tempo era bonito —, inteligente,
culto, escrevendo muito bem. Eu tinha de utilizá-lo no que podia
haver de melhor, de mais difícil no jornal. Além do mais, os
outros companheiros eram João Alphonsus e Emílio Moura, meus
amigos, a quem eu mandava fazer coisas modestas, humildes, e
eles faziam. Então eu pensei comigo, “não posso dar ao Afonso um
tratamento especial, fazer com que ele fique dispensado de
trabalho, porque os outros vão reclamar de mim”. Então, quando
havia algo mais importante, 21 de abril, por exemplo, e eu
precisava de um perfil do Tiradentes, mas não queria aquela
coisa convencional, chamava o Afonso, qu tinha uma boa formação
histórica e política e fazia um negócio mais caprichado.
Encarreguei-o também de fazer crítica literária, que não havia
no jornal. Então ele ficava meio chateado da vida, até hoje se
queixa de que eu o oprimia... Eu não oprimia: apenas era o
chefe, e como chefe era obrigado a dar ordens.
Muitos críticos apontam Sentimento do mundo e A rosa do povo
como os seus melhores livros, pelo compromisso político-social
que os caracteriza. Como você vê esse compromisso, hoje?
— Eu acho que o compromisso
social é do homem. Ele não pode ficar indiferente diante da
injustiça: se você vê uma criança apanhando de um adulto, você
se revolta — se tiver força para impedir, você impede. Então,
numa escala universal, o homem deve sentir a crueldade das
relações políticas e sociais vigentes no mundo. Agora, isso não
tem nada a ver com o artista, com o escritor: é uma coisa
natural no ser humano, a menos que ele seja pervertido por
natureza ou incapaz de reação diante desses fenômenos. Não vejo
como a gente pudesse agir somente voltado pra essas coisas, como
se fosse uma espécie de obrigação pessoal do indivíduo. Alguns
acham que os meus livros politicamente engajados, digamos assim,
são os melhores; outros preferem os não-engajados, de tendência
mais abstrata, como Claro enigma. Eu não sei, não tenho
opinião. Fiz todos eles, assumo a responsabilidade por todos:
cada um goste daquilo que achar melhor. Ou não goste. A opinião
dos outros é muito relativa. Qual é o julgamento verdadeiro, o
dos que me julgam um poeta extraordinário ou o dos que não me
levam a sério? Antigamente quase ninguém me levava a sério, a
não ser meia dúzia de amigos que me sustentaram, que me ajudaram
a viver. Eu sentia que eram pessoas sérias, de visão crítica
regular — então aquilo que eu escrevia não devia ser realmente
uma grande besteira, podia ser uma coisa imperfeita mas não
absolutamente negativa. Fora disso o ridículo pairava sobre a
minha cabeça, envolvia a minha vida como se fosse uma roupa
natural. No Ministério da Educação as pessoas me procuravam
desconfiadas, achando que eu era um cretino, com base no
julgamento feito pelos críticos de então ou pelos professores de
português, que eram leigos, não diplomados, naquela época não
havia ainda faculdade de letras. Eram amadores — advogados,
juízes, médicos, que davam suas aulinhas pra pegar um biscate.
Esse pessoal tinha muitos preconceitos contra a poesia moderna,
e entre os poetas modernos eu era talvez o mais ridicularizado.
Muita
gente o critica porque você já não faz poesia social...
— Perdão, eu faço. Acho que
meu poema longo “O marginal Clorindo Gato” é um poema social. Os
poemas que faço sobre a poluição do Rio Tietê, sobre a
destruição das árvores, são poemas sociais, no sentido em que
clamam contra uma organização viciada do governo, contra uma
interpretação errada dos deveres da comunidade para com os bens
naturais. Isso eu faço movido por um impulso de homem que se
combina com o impulso do poeta. Além do mais, isso é feito com
um sentimento não digo de utilidade — porque sou cético a
respeito da utilidade da poesia, pelo menos da utilidade
imediata —, mas com o intuito de manifestar um protesto, de
fazer com que os outros saibam que alguém, pelo menos, não
gostou daquilo. Se eu for esperar um livro, que demora três,
quatro anos pra sair, o protesto será inócuo. Então faço isso no
jornal. Sem nenhuma pretensão, suponho estar fazendo uma poesia
engajada nesse sentido, restrito: estou dizendo, no jornal, as
coisas que me revoltam, em forma poética. Esse não é o objetivo
principal da poesia: é um objetivo imediato, como jornalista que
sou. Utilizando a técnica poética, penso que concilio as duas
coisas, fazendo um poema que possa repercutir no coração dos
outros. É o caso de “Sete Quedas”, que causou uma certa
impressão porque foi muito divulgado pelos jornais. Portanto eu
não mudei, propriamente: o que houve na minha vida foi um
desencanto com as formas políticas de reorganização social.
Sendo mais claro: foi um desencanto com o Partido Comunista.
Há
quem o acuse de politicamente indefinido, por ter dirigido uma
publicação comunista logo após servir o Governo Vargas. Qual
foi, exatamente, seu relacionamento com o comunismo?
— Nunca fiz parte do
Partido Comunista. mas fui um namorado muito próximo dele. Eu
cumpri tarefas que os comunistas cumprem. Apenas não me engajei
porque, conhecendo o meu individualismo talvez um pouco
exacerbado, achei melhor dar minha adesão aos ideais comunistas
na prática, sem me comprometer entrando para os quadros
partidários. A disciplina era muito férrea, e eu não teria
condições de obedecer a ela. Então achei melhor ajudar do lado
de cá. Mesmo assim fui co-diretor, em 1945, de um jornal
comunista, a Imprensa Popular. Era engraçado, nós éramos
cinco diretores. Cinco diretores para um jornal só, um jornal
pobre, dá a impressão de que havia mais diretores do que
leitores... Mas a coisa não funcionava como trabalho de direção
conjunta: nós escrevíamos um texto e não saía aquilo, o que saía
era algo assim gelatinoso, flácido, ditado por trás da porta
pelos dirigentes do Partido encarregados de controlar o jornal.
Curioso que, naquela ocasião, eles não se chamavam comunistas,
mas “progressistas”. São uns adjetivos engraçados, como se
alguém fosse contra o progresso. Quem não fosse comunista não
era progressista... Eu, vendo que não entendia nada de política,
muito menos de política comunista, resolvi fazer alguma coisa.
Lembrei-me de que seria possível editar uma página literária, em
que se publicassem poemas de índole revolucionária e textos de
crítica, de ficção, com essa mesma tendência. Num dos primeiros
números, fiz lá uma nota de apresentação de um livro que Eneida
havia traduzido. Ciente de que ela não gozava, naquele momento,
das boas graças do Partido, não a elogiei, como seria razoável.
Apenas escrevi, na última linha: “Eneida traduziu.” A nota saiu,
expondo o interesse do livro, mas cortaram a última linha. Aí eu
fiquei safado da vida, né? — e comecei a me decepcionar. Com
outras coisas que foram acontecendo lá, fiquei completamente
desiludido. Parece que isso chegou aos ouvidos do nosso querido
Capitão Prestes, que mandou me chamar. Eu tive duas conversas
com Prestes, a primeira foi emocionante, ele ainda estava na
prisão, na Lemos de Brito. Fui lá com dois amigos, Osvaldo
Alves, escritor, e Célia Neves. Ele falou durante uma hora, mal
deixava a gente perguntar alguma coisa, e eu tomei nota, febril,
daquilo tudo que ele havia falado. Tomei nota aqui em casa, à
noite. Publiquei isso agora, trinta ou quarenta anos depois.
Prestes me escreveu uma carta dizendo que aquilo tudo estava
errado, que ele não havia dito nada daquilo... Que se há de
fazer? Eu continuo admirando muito o Prestes, acho-o, realmente,
um sujeito de grandes qualidades humanas, embora um péssimo
político. Mas isso não vem ao caso, a verdade é que ficaram de
tomar providências para ajeitar o jornal e não tomaram
providência nenhuma. Em 1945 o Partido Comunista posicionou-se
contra a derrubada de Getúlio. Achei que era demais... Eu já
estava cheio de Getúlio, eu suportava Getúlio desde 1930! Era
demais pra mim, Getúlio chegava, me causava náusea. Então
escrevi uma carta pedindo demissão do jornal. Numa reunião da
diretoria eu falei: “Vocês desculpem mas eu vou sair mesmo. Não
vou romper publicamente com o Partido, não vou fazer campanha
contra, mas me considero dispensado de qualquer compromisso com
vocês.” No dia seguinte, como eu pedira pra tirar meu nome do
cabeçalho, aconteceu uma coisa curiosa que me faz lembrar o
Monsieur Bergeret, de Anatole France. Monsieur Bergeret era um
professor, muito simpático, que um dia encontrou sua mulher em
adultério com um sujeito qualquer, no sofá. Qual foi a
providência dele? Tirou o sofá. Eles tiraram o cabeçalho...
Parece que o Partido não aceitou muito bem a sua saída...
— É, os elementos mais
exaltados, que não faziam parte da direção do jornal mas eram
mais realistas do que o rei, começaram a me malhar pouco a
pouco. Um dia mandaram uma repórter me procurar no lugar onde eu
trabalhava. Havia caído a bomba de Hiroxima e ela me perguntou o
que é que eu pensava da bomba atômica. Eu disse assim: “Sou a
favor”. Falei aquilo de malandragem, e porque já não me
importava a opinião que eles tivessem sobre mim. No outro dia
saiu: DRUMMOND É A FAVOR DA BOMBA ATÔMICA!, como se eu fosse um
monstro, uma coisa assim...
E o
episódio com Neruda?
— Neruda veio ao Rio, por
assim dizer, aos cuidados do Vinicius de Moraes, de quem eu
gostava muito. Almoçamos os três juntos, nós rimos, conversamos
muito. Por sinal que o Neruda não falava: o Neruda cochilava.
Nesse calor do Rio ele ficava assim pesadão, gordo, a gente
falava, falava... Até então o jornal me havia poupado, tirara
fotografias minhas ao lado do Neruda e do Vinicius. Depois houve
o rompimento formal e começaram a me atacar, encheram a cabeça
do Neruda de coisas, dizendo que eu era um terrível. Foi então
que Neruda deu uma entrevista altamente honrosa para mim, porque
ele dizia que a América tinha dois traidores: González Videla e
Carlos Drummond de Andrade. González Videla era presidente do
Chile! Então eu fui elevado àquelas alturas, equiparado a ele,
era um traidor também... Outro caso foi o de um cidadão chamado
Osvaldo Peralva, que depois se arrependeu de ser comunista e
escreveu um livro chamado O retrato, contando a
intimidade do Partido. Esse homem publicou um artigo na revista
Para Todos dizendo que eu era um vendido à embaixada
americana. Fiquei com vontade de perguntar lá no caixa se tinha
algum dinheiro pra mim, porque não havia chegado às minhas
mãos... Ou esse dinheiro havia sido desviado por algum malandro,
comunista ou não, ou então o governo americano mentira, dizendo
que me havia dado dinheiro sem dinheiro algum... E assim
terminou meu namoro com o comunismo. Eu achava que o Partido
Comunista, que estava na ilegalidade, que era combatido das
maneiras mais torpes — até com perseguição e morte — trazia uma
mensagem, uma novidade. Quando tive contato direto com eles,
perdi completamente a ilusão. Mas eu já havia escrito a minha
obra social, a qual não repudio, como já disse. Apenas declaro
que não tenho mais as ilusões partidárias que tinha. Mas as
minhas idéias são as mesmas. Sou apenas um homem desencantado da
ação política.
Seus
versos já viraram letra de música, enredo de escola de samba e
tema de campanha eleitoral. Partindo-se do debate em torno do
que é nacional e do que é popular na cultura brasileira, você se
considera um poeta popular?
— Não, eu não me considero
um poeta popular, não tenho essa pretensão. Claro que eu
gostaria de ser, mas o conceito de poeta popular é muito ligado
aos meios de comunicação de massa. Eu não tenho acesso a eles, a
televisão jamais me contrataria pra fazer um programa semanal...
Ela me chama pra eu dar um depoimento quando faço oitenta anos,
ou quando acontece algo relevante. Fora disso eles não me dão a
menor importância, os critérios são outros. Agora, se eu fosse
um compositor de samba, poderia ser um poeta popular no sentido
de que a minha letra seria popular. Se eu fosse o Caetano
Veloso, numa noite na televisão eu teria trinta milhões de
telespectadores e venderia logo quinhentos mil discos. Essas são
as contradições da cultura brasileira — acho que não só da
brasileira, não. O escritor de papel perde longe para os
compositores e para os poetas chamados populares, que esses têm
uma boa divulgação. Acho até que o poeta popular de cordel tem
mais divulgação do que o poeta brasileiro dito de elite. Os
poetas populares têm agora uma feira em São Cristóvão, aos
domingos, onde os cantadores se apresentam e os autores vendem
seus cordéis. E qualquer acontecimento eles imediatamente
assimilam. Outro dia assisti na Casa de Rui Barbosa à
inauguração da exposição em homenagem ao Orígenes Lessa — ele é
muito badalado porque foi das primeiras pessoas a reconhecer
logo o valor da poesia de cordel. Então os poetas de cordel
foram lá e fizeram uma apoteose pra ele, recitaram, bateram
palmas, cantaram, foi um sucesso... Eu jamais teria uma coisa
dessas no lançamento de um livro meu. Vai a televisão me filmar
e o repórter pergunta: “Como é, poeta, está vendendo muito? Qual
é o nome do seu último livro?”Quer dizer, nem o título do livro
eles sabem...
O que
a crítica literária tem representado para você, ao longo desses
cinqüenta anos de atividade criadora?
— Em primeiro lugar: há
crítica literária no Brasil, atualmente? O que é que você acha?
Antigamente havia aqueles rodapés, era quase meia página de
jornal, o Álvaro Lins, o Sérgio Milliet, o Wilson Martins...
Tudo isso acabou. Era uma função muito importante na literatura
brasileira, a da crítica. Eu não gosto de Sílvio Romero, mas que
diabo!, ele ocupou um espaço importante. Ele orientou, ou
desorientou, mas funcionou. Gosto mais do José Veríssimo, ele
tinha um ponto de vista um pouco mais estreito, talvez, mas deu
a Machado de Assis um espaço na literatura brasileira
correspondente ao seu verdadeiro valor. Acho que foi quem mais
enxergou isso. Ele cometeu alguns erros, como na apreciação do
Simbolismo, mas de qualquer maneira era um homem íntegro. Romero
era mais apaixonado, portanto mais sujeito a erros. Tivemos
também Ronald de Carvalho... Hoje praticamente não existe
crítica literária, de modo que não posso dizer seja a influência
dela sobre minha literatura poderosa ou não. Eu faço, de fato,
restrições ao papel da crítica em função da literatura, porque
acho que o verdadeiro criador tem dentro de si o instrumento da
sua criação. Ele tem alguma coisa a dizer, e isso não depende da
crítica. Ela pode orientá-lo no sentido do aprimoramento da
forma literária, apontando defeitos de construção. A função da
crítica é muito limitada, porque o crítico, antes de tudo, é
aquele que não faz ficção, não faz poesia. Se ele faz poesia não
é um crítico, é um poeta. A coisa hoje está muito
particularizada, departamentalizada. A crítica pode,
perfeitamente, cometer erros gravíssimos quanto à criação
literária. A crítica histórica me parece de maior importância,
porque dá a você a idéia — primeiro, do movimento literário;
segundo, da personalidade literária; terceiro, da obra
literária. Isso hoje em dia está completamente ultrapassado,
porque surgiu primeiro um tal criticismo, e depois a crítica
estruturalista, que são a meu ver a negação da crítica. Eu leio
um trabalho estruturalista e não entendo nada, não sei o que o
autor quer dizer a meu respeito: eles põem umas chaves, uns
sinais, e usam umas explicações que me parecem primárias, mas
envoltas numa teorização que acho pretensiosa e até mesmo
hermética. Essa função da crítica me parece hoje uma doença das
universidades no Brasil. Tenho recebido com muita pena livros,
volumes inteiros, calhamaços de trabalhos a meu respeito que me
honram muito, me penhoram porque as pessoas fizeram aquilo com a
maior boa-fé. Mas eu fico com pena porque aquilo não vale nada,
é realmente triste dizer uma coisa dessas.
Sua
geração foi fortemente marcada pela literatura européia — a
francesa, em particular —, hoje praticamente ignorada pelos mais
novos. Em que medida essa deficiência cultural, flagrante nos
escritores de hoje, pode prejudicar a obra literária?
— Em primeiro lugar, vamos
ser justos: esse privilégio dos escritores de antigamente, que
cultivavam a literatura francesa, implica, também, uma
deficiência da nossa geração. Se há hoje uma deficiência com
relação ao conhecimento do francês, havia no nosso tempo uma
supervalorização dessa língua, e uma ignorância do inglês, do
italiano... Eu mesmo sou prova disso, nós só líamos francês,
nada mais. Na minha geração quem lia autores ingleses e
norte-americanos era uma avis rara, o Abgar Renault, que
foi depois excelente professor de inglês. A meu ver opera-se,
agora, uma outra distorção: as pessoas são muito mais bem
informadas, têm mais canais de comunicação, têm cursos de
pós-graduação, ms o espírito universitário de hoje me parece
muito errado, no sentido de lucidez e de crítica mesmo. Se
adotarmos todos os princípios críticos desses Todorov, Gramsci,
Lacan etc. sem analisá-los, estaremos apenas copiando o que
outros já disseram, numa fase em que, parece, eles já não têm
grande audiência na Europa. Os benefícios que a universidade
poderia trazer, a meu ver ela não traz tão abundantemente, como
seria de desejar, porque a matéria que se ensina na
universidade, a pesquisa que se faz — se é que se faz pesquisa —
corresponde a um padrão que não é o mais indicado. Acredito que
seja um vício mais ou menos universal, ou pelo menos americano,
porque nos Estados Unidos eles costumam convidar escritores
brasileiros pra irem lá, durante um ou dois anos, dar
conferências. Esses escritores, no Brasil, não têm categoria
bastante pra fazer esse trabalho, pra dar ao americano uma
noção do que seja a literatura brasileira. Acho esse intercâmbio
um pouco vão, inútil. Eu não quero falar mal de ninguém, apenas
observo que isso não conduz a nada. A pessoa fica com esse
título e daí por diante usa, como aquele sujeito que foi uma vez
à Europa no transatlântico “Cap Arcona”, e ficou tão delirante
que mandou fazer um cartão assim: “Fulano de Tal, ex-passageiro
do ‘Cap Arcona’”. Então as pessoas dizem: “Eu estive nos Estados
Unidos, fiz lá um curso de dois anos...”. Não adianta nada,
porque o que ele produz não melhorou depois que veio dos Estados
Unidos.
Que
escritores você reconhece terem exercido maior influência na sua
formação literária?
— Quem mais exerceu
influência na minha formação, no período de adolescência, foi um
escritor menor, mas muito agradável, chamado Álvaro Moreyra. Ele
era um autor de fragmentos, de muita sensibilidade, muito bom
gosto, mas não era um criador. Álvaro influenciou muito a minha
formação, porque eu era leitor de revistas, lia poucos livros,
que quase não chegavam à minha terra. Então eu absorvia o que
ele fazia nas revistas, ficava muito impressionado com a
velatura pós-simbolista, com aquela delicadeza de imagens, com a
ironia dele, sutil... E, finalmente, com uma coisa que para mim
era muito importante: as reticências. O Álvaro, geralmente, não
usava ponto final, ele usava reticências. E me parecia que havia
nisso uma espécie de continuação da ressonância das palavras,
aquilo abriu assim um caminho maior, um pouco nevoento, no qual
a gente podia vislumbrar coisas que não estavam no texto, mas
que o texto autorizava. Depois comecei a ler mais e verifiquei
que ele tinha uma importância secundária. Então me embebi todo
de Machado de Assis. Acho que devo minha formação a Machado.
Até hoje, quanto mais o leio, mais fico impressionado. Resolvo
mesmo não ler Machado de Assis, leio quando me dá uma tentação.
Mal eu começo a ler Machado e fico com a tendência de escrever o
que ele escreveu, de imitá-lo... Quantas vezes, na minha crônica
— que é esvoaçante, escrita sem nenhuma preparação, porque
aquilo tem de ser entregue duas horas depois —, me surpreendo
com tiques de linguagem, com jogos verbais de Machado... Ao lado
disso, tive influências variadas: li Flaubert, Fialho de
Almeida, Antônio Nobre, Cesário Verde... Gostei muito de Eça de
Queiroz, adoro Eça. Acho que, na língua portuguesa, são os dois
que mais me agradam, Machado e Eça. Outra influência minha foi
Anatole France. Anatole era considerado um deus naquela época;
depois passou de moda e agora ouço dizer que está sendo
redescoberto. Mas Mário de Andrade me proibiu de ler Anatole,
dizia nas cartas: “Deixa de ler esse sujeito, é um sacana!”.
Mário
de Andrade ou Oswald de Andrade: quem fez mais pela literatura
brasileira?
— Mário de Andrade, agora,
está sendo redescoberto. Houve uma fase em que era Oswald de
Andrade a figura mais importante do Modernismo. Eu achava muita
graça nisso, porque Oswald nunca foi o mais importante — se é
que podemos classificar as pessoas em mais e menos importantes.
Oswald era feroz no sarcasmo, um blagueur, um trocista,
capaz de sacrificar amizades por um trocadilho. Depois ele
esquecia aquilo e procurava a pessoa como se não tivesse havido
nada... Era um sujeito talentoso, interessante, mas a meu ver
não deixou obra literária ponderável. Já o Mário não, estão aí
seus livros de crítica literária, de folclore, de poesia, uma
obra da maior importância. E agora estão descobrindo com
assombro a importância das cartas de Mário de Andrade, talvez
sua obra mais significativa, do que ele próprio não se dava
conta. Gosto muito do Mário, mais como prosador do que como
poeta. Embora eu não assimilasse muito os seus poemas — achava
um pouco extravagantes —, devo a ele lições de poesia da maior
importância. A Bandeira não devo lições teóricas porque ele não
escrevia cartas, era um homem doente, e grande parte da vida
passei perto dele, não precisávamos nos corresponder. Mas o
Mário não, nós morávamos em cidades diferentes e ele escrevia
muito, daí sua influência maior sobre mim, no sentido crítico,
de corrigir as besteiras que eu fazia. A influência do Mário foi
mais crítica; a do Bandeira mais poética, eu me identificava
mais com a poesia dele. Acho a poesia de Libertinagem e
da Lira dos setent’anos da melhor qualidade técnica e
expressional.
Você
está ligado, historicamente, à chamada Geração de 30 do
Modernismo, ao lado de Cecília Meireles e Vinicius de Moraes. O
que de mais importante deixou essa geração para a poesia
brasileira?
— Eu não sou muito
partidário de classificar o escritor dentro do esquema de uma
geração. Por exemplo, Cecília Meireles: ela era uma pessoa
absolutamente independente de qualquer geração, vivia na sua
torre, era uma deusa, um mito. Custei a me aproximar de Cecília
Meireles, eu a admirava muito, desde antes de vir para o Rio.
Mas ela era fechada, um pouco desconfiada, era uma beleza assim
astral... Você já viu o retrato de Cecília Meireles? Era uma
beleza! Mas fora malsucedida na vida: teve um marido que se
suicidou, era um desenhista excelente, português. Parece que ela
sentia uma certa desconfiança dos homens, em geral, com relação
às mulheres e a ela em particular, porque tinha uma beleza
realmente esplêndida: beleza física, talento, sensibilidade...
Acho difícil classificar Cecília na Geração de 30, mesmo
porque ela publicou livros antes disso. Eu, sim, por acaso — eu,
o Schmidt e o Murilo Mendes estreamos em 1930. Mas a geração em
que de certa maneira me incluo é a dos jovens mineiros. Eram
Abgar Renault, João Alphonsus, Mílton Campos, Alberto Campos,
Emílio Moura, pessoas que conviveram conosco anos e anos na mesa
do café, tínhamos as mesmas experiências, as mesmas
preocupações... Essa gente foi a minha geração. Não considero a
Geração de 30 como um conjunto, nunca me aprofundei nessa
avaliação. O que é que eu tinha a ver com o Schmidt? Nada, nós
nos conhecemos muito tempo depois, e eu achava a sua poesia
muito empolada, muito derramada, gorda. O que nós fizemos foram
as nossas obras individuais, que podem ser julgadas bem ou mal.
Qual,
na sua opinião, a grande figura da poesia brasileira neste
século?
— Para o meu gosto, Manuel
Bandeira. Hoje ele é um tanto subestimado — ele se dizia poeta
menor e as pessoas pegaram isso, o estão chamando de poeta
menor. É a maior injustiça. Em primeiro lugar, acho Bandeira
importante porque ele pegou as fases parnasiana, pós-simbolista,
modernista e concretista, deu exemplos de poemas em todas essas
vertentes. E também por sua capacidade de cativar pela poesia.
Quantas pessoas se apaixonaram pela poesia de Bandeira, quantas
pessoas recitavam aquilo com ternura, com amor, com carinho
especial por ele! Esse carinho era realmente extraordinário,
Manuel era mimado... Essa coisa passa, o sujeito morrendo é
esquecido, abandonado, surgem novos valores. Mas quem conviveu
com Manuel tem por ele, até hoje, uma ternura muito grande. E
Manuel era severo, ele não era blandicioso, quantas vezes me
corrigiu coisas que eu havia feito errado... Uma vez escrevi que
a barba do cadáver de Mário de Andrade crescia — e ele reparou:
“Você está errado, barba de cadáver não cresce”. Ele era severo
e carinhoso ao mesmo tempo, e era íntegro.
Passado o experimentalismo concretista, a poesia práxis, o
poema-processo, em que sentido você vê a poesia brasileira
evoluindo hoje?
— Eu acho que a coisa não
passou de todo, não... Você vê o Suplemento do Minas Gerais:
está delirante, com as vanguardas nacional e estrangeira, todos
aqueles tiques do vanguardismo, composições estrambóticas,
gráficas, aquelas palavras estranhas, citações de Pound — Pound
está muito em voga, ainda... Cortázar, na prosa... Tudo isso
está muito em voga, tanto lá como aqui no Rio, tenho visto em
suplementos e livros. Esses cadáveres ainda estão vivos, sabe?
Os irmãos Campos estão aí, para ressuscitar os mortos...
Confesso a você — pode ser preconceito de velho — essas coisas
não me causam espanto, não creio que elas exerçam uma influência
real na poesia. Eu vejo a poesia brasileira, atualmente, num
período de crise, uma crise esterilizante. O pessoal está fraco.
Quando aparece um caso assim melhor a gente bate palmas, mas na
realidade eu acho que falta uma certa motivação pra esses
poetas. Eles estão ébrios, tomaram um pileque de liberdade, o
Modernismo teve esse mal. O grande defeito do Modernismo foi o
verso livre descontrolado, sem nenhuma regra. Até hoje sentimos
falta de uma poética modernista, que estude as variações do
verso livre. O Murilo Araújo tem um pequeno livro que eu
aconselho muito aos jovens poetas que querem estudar alguma
coisa — porque há rapazes conscientes, insatisfeitos, que querem
saber: “Como é que se faz verso?” Não é como fazer pipi, abrir a
torneira e deixar a água correr. É uma coisa mais séria. Então
eu recomendo esse livro, que é pequeno, resumido, mas elucida as
diferentes correntes literárias e chega até ao verso livre. Mas
é uma coisa ainda precária. Ele foi editado pela Editora São
José, só teve uma ou duas edições e não saiu mais, é difícil
encontrar. Não há, em língua portuguesa, nada sobre técnica
poética moderna. E mesmo sobre técnica acadêmica — o tratado de
Bilac com Guimarães Passos é insuficiente, a gente ainda usa o
velho Castilho, por incrível que pareça. Tem o Said Ali, que faz
também algumas observações curiosas, mas não há nada de novo.
Quem poderia ter feito isso era Manuel Bandeira, o Itinerário
de Pasárgada tem observações muito boas. Quando ele diz que
“vésper” rima com “cadáver” é uma coisa que assusta, depois é
que você vai ver... Hélcio Martins, que escreveu um livro sobre
a rima na minha poesia, também fez observações muito boas, a
propósito do conceito atual de rima. Mas isso não está
sistematizado, então os rapazes e as moças abusam. Moças de
quinze, dezesseis anos escrevem as maiores besteiras, sem
gramática, sem nexo. Eu acho muita graça que são todas
pornográficas, a pornografia poética feminina é uma coisa
alarmante... O Minas Gerais publica poemas de mulheres
que são assim assustadores — se bem que hoje nada assusta
ninguém, há uma poesia pornográfica generalizada. Essas pessoas
não sabem o que é verso, e isso é um mal. Não dos concretistas
nem dos praxistas, é um mal do Modernismo, que gerou essas
correntes todas.
Algumas revistas de circulação nacional têm trazido poemas
eróticos seus da melhor qualidade literária. Fala-se que você já
escreveu algumas dezenas deles, mas que não pretende publicá-los
em vida. É verdade isso?
— De fato, algumas revistas
me pediram poemas eróticos e eu publiquei. Essas revistas têm
entrevistado Teotônio Vilela, Antônio Gallotti — pessoas da
esquerda e da direita, personalidades brasileiras que jamais
poderão ser acusadas de pornógrafas. Então eu acho que o nível
dessas publicações não deve ser avaliado pelas fotografias de
mulheres peladas, mas pela variedade de assuntos que comportam,
inclusive a literatura e as entrevistas sobre temas políticos,
sociais etc. O fato de esses poemas terem obtido boa
receptividade de certo modo me anima a cogitar de uma possível
edição da totalidade deles, que são três dezenas. Mas isso é
ainda um projeto em fase de estudo... Tenho seis livros para
publicar, que agora sairão pela Record: um de crônicas — aliás
dois, mas não vou inundar o mercado com a minha croniquice; um
de pensamentos e frases, O avesso das coisas, que estou
completando; um outro chamado Confissões no rádio; um de
páginas de diário; um de poemas e outro de circunstâncias. É um
material muito grande, em que estou trabalhando na organização
do índice, revisão de provas etc.
Você
acaba de se recusar, mais uma vez, a entrar para a Academia
Brasileira de Letras, agora na vaga deixada por Alceu Amoroso
Lima. Em que consiste, exatamente, esse seu antiacademicismo?
— Eu diria que se trata
mais de um antigregarismo. Não tenho absolutamente nada
contra a Academia — lá estão, inclusive, alguns dos meus grandes
amigos, como Afonso Arinos e Abgar Renault. Acontece que eu não
me sentiria bem lá, no formalismo daquelas reuniões. E a
Academia tem cometido erros graves na escolha dos seus membros.
Antenor Nascentes, por exemplo, foi convidado para organizar o
dicionário da Academia, mas perdeu quando se candidatou para
ocupar uma vaga. Quer dizer, ele servia apenas para organizar o
dicionário, mas não pra ser acadêmico... Outro caso foi o do
filólogo Sousa da Silveira, também derrotado. E olhe que ele era
o candidato de Manuel Bandeira! São coisas que, a meu ver, têm
desgastado muito o prestígio da Academia.
Eduardo Portella acaba de lançar um livro em que questiona as
complexas relações de convivência entre o intelectual e o poder.
Como oficial-de-gabinete do Ministro Capanema, durante o Governo
Vargas, você acredita que essa convivência possa processar-se
sem que implique um inevitável desgaste para o intelectual?
— Em primeiro lugar eu
gostaria de dizer que não me considero um intelectual que esteve
no poder. Como já disse, apenas servi um grande amigo que foi
Gustavo Capanema, atendendo a um convite dele. Nossa relação de
confiança era total, cheguei a falsificar — agora posso contar
isso — a assinatura do ministro em atos de menor importância,
como demissão de funcionários etc. E ele sabia disso. Mas o
trabalho era muito incômodo, difícil, eu era obrigado a fazer
coisas de que não gostava. Além do mais, as pessoas achavam que
eu poderia conseguir tudo que quisesse, o que não era verdade.
Fui um funcionário público sem nenhum privilégio, sem nenhuma
regalia: apenas ocupei a chefia de gabinete de um amigo meu, só
isso.
Sua
experiência de ficcionista, com os Contos de aprendiz e os
Contos plausíveis, nunca o estimulou a tentar o romance?
— Não. Devo dizer até que
nunca me senti estimulado a tentar o conto. Porque os meus
Contos de aprendiz são episódicos, circunstanciais. Eu tinha
de preencher um espaço no suplemento do Correio da Manhã
duas vezes por mês, ora com poemas, ora com prosa. Mas a prosa
não era crônica, eram divagações maiores do que uma crônica, e
meio cacetes. Então me lembrei de que tinha anotadas algumas
idéias para contos, e acabei escrevendo. Os Contos plausíveis
são minicontos, minimíssimos — nem são contos. A rigor, o
seu caráter lírico está até mais para a poesia.
Segundo os manuais escolares, é você, com Rubem Braga, Paulo
Mendes Campos e Fernando Sabino, um dos quatro grandes cronistas
da literatura brasileira contemporânea. O que mais o realiza
como escritor, o poema ou a crônica?
— A crônica eu faço
profissionalmente, porque preciso ganhar dinheiro. O jornal me
paga, então eu debulho aquilo como uma coisa até meio mecânica.
Uma vez ou outra é que me sinto assim com mais prazer; fora
disso, faço aquilo por obrigação. Não é uma obrigação tediosa
porque procuro fazer corretamente, para não chatear demais o
leitor. Mas sinto que às vezes chateia, porque aparecem reações.
Um sujeito me escreveu de São Paulo, sem se identificar,
dizendo: “Pára de escrever ‘O avesso das coisas’, você está
muito chato!”. Eu recebo isso com humildade, é um direito do
leitor, que comprou o jornal e não gostou daquilo. Já o
professor Idel Becker, que é autor de um dicionário
espanhol–português, ficou entusiasmado, mandou os recortes pra
um amigo latino-americano, ele achou as máximas formidáveis,
melhores que as de Ramón Gómez de la Serna. Só que Ramón Gómez
de la Serna não tem boas máximas, ser melhor do que ele não é
grande coisa, não... Mas eu escrevo prosa por obrigação. Meu
tesão, mesmo, é a poesia.
In
Drummond: a lição do poeta.
Teresina, Corisco, 2002:
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