Jornal de Poesia


Emílio de Menezes


O Corvo, de Edgar Allan Poe

Tradução em 18 sonetos. Final. Voltar para o início



 
 
 


A ave hedionda, entretanto, erma, a encimar o busto, 
Sobre cuja brancura as asas distendia, 
Como se essa palavra o sentido mais justo 
Tivesse e contivesse a suprema harmonia; 

Fosse do pensamento um invólucro augusto 
Cheio de precisão e cheio de energia, 
Nada mais pronunciou, nem ao menos, a custo, 
Uma pluma moveu da plumagem macia. 

Eu que continha mal toda a minha saudade, 
Apenas murmurei: Amigos de outra idade 
Tive, partiram; certo, assim também te vais! 

Assim também te irás, mal rompa em luz a aurora! 
Esperanças que tive assim fostes embora! 
E o corvo repetiu a frase: Nunca mais!... 
 

XI 
Todo o assombro em meu ser por tremor se anuncia, 
Ouvindo a ave augural sem o menor estorvo, 
Tal resposta me dar, com tanta analogia 
Que inda agora, a lembrá-la, eco por eco a sorvo. 

Certo a frase aprendeu na triste companhia 
De algum mestre infeliz cujo destino torvo 
Da dor o escravizou à fera tirania, 
E a sabe assim de cor, o foragido corvo! 

Tantas vezes a ouviu, tão repetidamente 
O seu mestre infeliz lha fez vibrar na mente, 
Que hoje a profere a rir, como a profere em ais! 

"De profundis" cruel de uma morta esperança, 
Tão tristonhas canções deixaram na lembrança 
Do corvo este estribilho, este só: Nunca mais!...

XII 
Como apesar de tudo a calma conseguia 
Fazer-me d'alma vir, do lábio, um riso, à tona, 
Chegando-me ao portal, do corvo hospedaria, 
Sentei-me e recostei-me a uma antiga poltrona. 

Frente à frente do corvo, a alma já me sorria 
E toda entregue a mim, como quem se abandona, 
Busco ansioso indagar que novas me traria 
O fúnebre viajor que inda hoje me emociona! 

Procuro compreender qual o escondido gozo 
Desse vil e sinistro arauto tenebroso 
Que em dois termos resume os seus vis cabedais; 

Que os seus vis cabedais de ciência e de linguagem 
Resume ao exibir-me a tétrica plumagem 
Crocitando e grasnando a frase: Nunca mais!... 

XIII 
Deixo-me após ficar como quem se extasia 
Entre alucinação e funda conjetura, 
Ante a luz da razão e a névoa da utopia, 
Sem nada a me apoiar a mente mal segura. 

Nada mais pronunciei, nem um som se me ouvia 
E como a um ferro em brasa, a uma horrível tortura, 
Da ave ao olhar hostil e à pérfida ironia 
N'alma entrou-me o terror que as almas transfigura. 

Mas a um torpor de quem vagamente ressona, 
Recosto-me ao espaldar dessa velha poltrona 
Que eu para ali trouxera em ânsias infernais, 

E vejo a luz brilhar sobre o roxo veludo 
Em que por tanta vez d'Ela o semblante mudo 
Brilhou, mas nunca mais brilhará! Nunca mais! 

XIV 
Sinto assim a envolver-me uma nuvem de incenso, 
Solta de um incensório oculto que pendia 
Das invisíveis mãos de anjos que em coro extenso 
Revoavam roçagando a ampla tapeçaria. 

Haurindo o ar aromado e, de bálsamo, denso, 
De mim para mim mesmo exclamo em gritaria: 
Infeliz! Infeliz! Um Deus piedoso e imenso 
Pelos anjos te manda o repouso e a alegria! 

Do nepentes é o sumo! Ei-lo, bebe-o! Ei-lo, esquece! 
Ele é a seara do bem, do esquecimento a messe! 
Nele ouvirás a voz dos gozos celestiais! 

É o nepentes ideal que Deus te manda agora! 
Bebe-o! Bebe-o olvidando a tua morta Eleonora! 
E o corvo crocitou de novo: — Nunca mais! 

XV 
Pássaro ou Satanás, ave de profecia, 
Sejas ave ou Satã, sempre hás de ser profeta! 
Venhas do teu inferno ou da brava invernia 
Que náufrago te fez, acalma esta alma inquieta. 

Já que a noite exigiu, no vôo que te guia, 
Que caísses aqui, onde a angústia secreta, 
Onde o secreto horror sem teto ou moradia, 
Do pouco que disseste o sentido completa! 

Dize-me, por quem és, se neste mundo triste, 
Existe algum repouso, algum consolo existe 
Para estes meus cruéis sofrimentos mortais! 

Existe esse mendaz bálsamo da Judéia 
Que, da saudade, a dor nos arranca da idéia? 
E o corvo, inda outra vez, repetiu: Nunca mais! 

XVI 
Profeta ou Satanás, negro ser da desgraça! 
Profeta sempre atroz de negra profecia, 
Pelo azul deste céu que sobre nós se espaça, 
Pelo Deus, todo luz, que em ambos nós radia, 

Dize a esta alma sem luz e de dúvidas baça, 
Baça de incertidão e de melancolia: 
Ser-lhe-á dado abraçar o anjo que entre anjos passa, 
E de cujo esplendor hoje o céu se atavia? 

Ser-lhe-á dado abraçar a virgem pura e santa, 
Virgem casta e piedosa e que os anjos encanta 
Com seus gestos de encanto e encantos virginais? 

Ser-lhe-á dado abraçar, oh! dize-o sem demora, 
A rútila, a radiosa, a radiante Eleonora? 
E o corvo rouquejou, roufenho: Nunca mais! 

XVII 
Que esta palavra, enfim! de negra profecia 
Do teu regresso o início ambicionado seja! 
Regressa ao reino teu, à noite que te envia, 
À noite plutoniana, essa que em ti negreja! 

Volve! Cala essa voz que me fere e angustia! 
Reentra no temporal, volve à tua peleja 
De lá fora e não fique uma só pluma esguia 
Neste chão, de tua vil plumagem malfazeja!

Não quero que de ti uma reminiscência 
Fique nesta de dor, sagrada residência, 
Sobre a qual distendeste as asas funerais! 

Vai-te! Deixa da deusa a face casta e branca! 
Arranca-me do seio as garras vis, arranca! 
E o corvo crocitou de novo: Nunca mais! 

XVIII 
E o corvo permanece em perpétua estadia, 
Sinistro a repousar, do mármore, à brancura. 
Quem o contempla assim pela verdade jura 
Que algum sonho feroz seu aspecto anuncia. 

É um demônio a sonhar sonhos que o inferno cria 
E que lhe enrijam mais a rija catadura, 
Tal o fulgor do olhar que os olhos lhe alumia 
E com que a própria sombra ele sondar procura. 

Essa sombra que a luz da lâmpada suspensa 
Faz refletir no chão, qual atra nuvem densa, 
No mesmo chão negreja em linhas sepulcrais: 

E desse âmbito negro, esse âmbito de sombra, 
Minha alma que da dor da saudade se assombra, 
Nunca mais sairá! Nunca mais! Nunca mais! 

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