Floriano Martins
Poetas em Fuga
Especial para o Sábado (in
Jornal O POVO 28-02-1998)
Sobre o último livro de Dora Ferreira da Silva, o vigor de sua
poesia, e a nossa tradição de subestimar e esquecer da
forma mais
mesquinha os nossos poetas.
Poemas em fuga - Dora Ferreira da Silva;
Massao Ohno Editor; 106 páginas.
De passagem
pelas páginas dos raros suplementos literários brasileiros, dá-nos a
impressão de uma debandada geral de nossos grandes poetas. Já não me
refiro à obra poética em si, pois há muito cultuamos as impressões
sobre o poema como algo mais essencial do que o poema em si. Também
não me refiro àqueles que já não estão entre nós - Jorge de Lima,
Murilo Mendes, Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo -, porque acabam
retornando em forma de recorrentes edições comemorativas ou em
pontuações injustas da pena atroz de algum crítico.
Penso então em
vozes expressivas e renovadoras, a exemplo de Gerardo Mello Mourão,
Ferreira Gullar, José Santiago Naud, Hilda Hilst, Francisco
Carvalho. Certamente ainda estão vivos às custas de um estoicismo a
toda prova, visto que raramente são mencionados na imprensa. E aqui
me refiro que a menção que saliento é de ordem estética, referência
indispensável em face dos arremedos de escândalo que tanto agradam à
nossa cultura ``Sétimo Céu''.
O cuidado de
enumerar nomes é algo imperativo em um país que tem o hábito de
generalizar para não se comprometer. Ao longo da precaríssima
história de nossa poesia, fomos deixando alguns nomes inteiramente à
margem, a exemplo de Pedro Kilkerry, Dante Milano, Emílio Moura,
Henriqueta Lisboa. Não importa que a posteridade tenha recuperado
alguns. Refiro-me ao pouco apreço que temos por nossa identidade
poética, pela falta de respeito próprio que expomos quando está em
discussão a salvaguarda de nosso patrimônio cultural.
Faço estas
anotações em face do recentíssimo lançamento de Poemas em fuga, de
Dora Ferreira da Silva (1918). Pela grandeza estética de sua poesia,
ainda renovada e pulsante a despeito de seus 80 anos de idade, este
livro requer uma recepção especial. Não que haja mérito na teimosia
estóica de uma lucidez estética tão avassaladora, mas sim pelo fato
como põe em xeque-mate uma tradição brasileira que torna esclerótico
qualquer autor sexagenário. Não há repetição ou diluição nos poemas
que lemos agora de Dora Ferreira da Silva. Ao contrário, latejam
ainda com uma vibração contagiante de seus postulados estéticos.
Não posso
deixar de pensar em um poeta contemporâneo seu, o chileno Gonzalo
Rojas (1917). Nos dois casos, há uma firmeza estética sendo lapidada
a cada resplendor do instante, uma tal convicção na vida como
renovação constante, que os impede de qualquer recurso acomodatício.
Na cena brasileira, podemos pensar em Manoel de Barros (1916) ou
Gerardo Mello Mourão (1917), igualmente seus contemporâneos, embora
no primeiro já se verifique um abusivo recurso retórico. Sobre os
dois casos destaca-se ainda a poesia de Dora Ferreira da Silva, por
seu apetite insaciável, pela inquietude contagiante com que seu
verbo conduz ao encantamento, à degustação essencial da poesia.
Antes deste
Poemas em fuga, tivemos Andanças (1970) Talhamar (1978) e Retratos
da origem (1988), entre outros. Entre os raros nomes da crítica que
escreveram a seu respeito, encontra-se José Paulo Paes, cuja
observação fundamental destaco: ``Na lírica órfica de Dora Ferreira
da Silva - um dos mais altos momentos da poesia brasileira de hoje
-, signo e coisa são consubstanciais e, como tal, intercambiáveis,
pelo que é dado às garças fazerem-se hieróglifos de ar, a conchas
convizinhar com Delfos, às pedras de Itatiaia voar com os pássaros e
florir com as flores, aos semáforos de rua acender as luzes do
destino, aos amigos mortos sentar-se conosco à mesa do almoço, e ao
prosaico virabrequim mudar-se numa máquina de espantos''.
Demoro-me na
citação por sua precisão sagaz, pelo que nos permite entender da
espontaneidade e da intenção da poesia de Dora Ferreira da Silva.
Quer dar sentido ao que toca, ao mesmo tempo em que busca ser tocada
pelo sentido das coisas. Frui uma fascinação estética, porém
fundamenta-se em uma expressão religiosa. Seu entendimento da
palavra poética como forma de preservar a sensibilidade humana já o
atesta.
A publicação de
Poemas em fuga, contudo, nos chama a atenção para um aspecto
mórbido: logo morrerá Dora Ferreira da Silva e a enterraremos no
velho cemitério dos poetas. Não há nada ali: carne morta, letra
morta. Não há ressurreição possível para a vala comum. Assim são
tratados os poetas no Brasil. Assim são tratados os poemas. Ser e
linguagem, alimento destinado ao mais completo esquecimento.
Agora que ainda
está viva, pediu ao poeta Donizete Galvão que cuidasse da edição de
sua Poesia Reunida. Como fazê-lo? Que espécie de respeito imprime a
obra de um poeta em um país que adia sistemática e
indisfarçavelmente qualquer negociação que envolva seu
comprometimento como nação? Somos uma cultura rendida pelo mercado.
Nenhuma editora no país publicará a poesia reunida de Dora Ferreira
da Silva. Nas redações de jornal diz-se assim: dá-me uma data e
cuidaremos dela. Da data, claro está, jamais da vítima. Dos poetas
cuidarão apenas os próprios poetas.
Leia a obra de Dora Ferreira
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