Oscar D'Ambrósio
Incomunicabilidade e
possessividade
(in Jornal da Tarde,
05.06.1999)
Lya Luft espreita o
desmoronamento familiar Incomunicabilidade e possessividade são
observados a partir do Ponto Cego
"Eu que invento e desinvento, eu que
manejo os cordéis, eu decidi parar de crescer." Assim começa O Ponto
Cego, novo romance da escritora gaúcha Lya Luft. Seu alvo são as
relações familiares, e ela se desvenda com acidez por uma
perspectiva universal. Há no livro uma lúcida mistura de realismo
fantástico com momentos de densa penetração psicológica.
Ao longo dos cinco capítulos, marcados
com epígrafes oriundas de outros livros da autora, travamos
conhecimento com personagens envolvidas numa trama que desnuda a
dificuldade de uma família manter um relacionamento saudável, sem
mentiras. À exceção do tio Nando, os integrantes da narrativa não
têm nome: são apenas Menino, Pai, Mãe e Avó. Ao não serem
particularizados, tornam-se arquetípicos.
O Pai, por exemplo, utiliza
constantemente os pronomes "eu", "meu" e "minha". Acredita que o
mundo gira todo em torno dele e não percebe que a família está
desmoronando, marcada pela solidão e pela falta de amor. De fato, se
há uma palavra que pode definir a obra é justamente a
incomunicabilidade. Assim, as personagens não conseguem dialogar e
revelar seus sentimentos.
O menino que decidiu não crescer narra
a sua história com extrema sensibilidade. Pelas frestas das portas,
observa a desagregação familiar com muita ironia. Verifica como as
pessoas que o cercam vão se encastelando e tenta controlar a vida de
todos, mas apenas consegue mergulhar num universo de progressivo
desespero.
Ao chamar de ponto cego "um fenômeno
da visão humana, segundo o qual, conforme convergência e refração,
pode-se ver o que habitualmente permanece oculto: a possibilidade
além da superfície, o concreto afirmado na miragem", o narrador
ganha uma característica essencial. Ele percebe o que os outros
ignoram.
O principal sofrimento é o da passagem
dos dias. Exatamente por isso, o Menino não quer crescer e ter a
vida "regrada, podada, abortada".
O narrador considera a vida adulta
como a limitação de todas as possibilidades. Ser criança para sempre
significaria ser tratado como um ser inocente e preservar a
liberdade de criar e de imaginar. Não crescer é sinônimo de manter
asas que permitem ver o que os adultos não enxergam e de buscar
respostas para as indagações da vida pelo simples livre fluir do
pensamento.
A verdade da família se multiplicaria
"nas fendas como cogumelos". Assim, o Menino conta que o Pai e a Mãe
tiveram uma filha que morreu. E nunca se recuperaram inteiramente
dessa perda. Sabemos ainda que o Pai e a Mãe, além disso, mal se
tocam e vivem uma luta pelo poder. A Mãe se apaixona por um Moço, o
namorado da Filha, e o Pai deseja qualquer mulher que se aproxima
dele, desde a empregada às amigas da Filha.
À certa altura, o narrador diz: "O
tempo rouba e oculta, e armazena: quando pensamos ter esquecido,
destila sua baba de seda sobre a nossa alma." Significativamente, o
Tio Nando dá ao Menino-narrador um presente original: uma caixa de
papelão com bichos-de-seda dentro. Sobre folhas de amoreira, eles
roem sem parar. Silenciosos "devoram folhas para delas fabricarem
seu rio de seda".
Os bichos-de-seda são a maior
esperança que o livro deixa. Se é verdade que vão corroendo tudo, ao
mesmo tempo, transformam a destruição em construção. Fabricam um dos
mais belos tecidos a partir do ato de devorar as folhas. Assim, a
narrativa de Lya Luft flui. Inicialmente, mexe com as estruturas
internas do leitor, que sente que está perdendo o controle das
próprias emoções. Depois, instaura um novo mundo em que a única
certeza é que estar vivo sempre deve ser uma afirmação.
Uma das funções da arte é incomodar o
receptor. Ler um livro, ver um quadro ou assistir a um filme ou peça
de teatro deve ser uma forma de revisitar o mundo. Nesse sentido, a
prosa de Lya Luft alcança resultados expressivos. Se, em O Rio do
Meio (1996), a autora já havia mostrado que as verdades absolutas
são o caminho para a destruição humana, em O Ponto Cego alerta para
as conseqüências terríveis do excesso de consciência.
O ser humano que tenta dirigir tudo
que o rodeia corre o risco de perder o controle sobre si mesmo e
mergulhar no desespero do existir. O Menino decide não crescer. Não
se salva, não ajuda a família e se agonia perante o tempo que o
devora. Para piorar, a maturidade intelectual o leva a ver como, sem
amor e companheirismo, os dias são apenas um simulacro de
felicidade.
O Ponto Cego evidencia que a vida é
feita de um "sim" atrás do outro. As personagens do romance vivem
imersas no "não", num mundo de negações sucessivas que esvazia o ser
humano daquilo que o torna único: seu amor à vida e sua luta
constante por uma utopia chamada felicidade. Quem desiste dessa
procura, como mostra a autora, só pode percorrer um caminho: o da
solidão e da miséria existencial.
O PONTO CEGO, de Lya Luft. Mandarim, 160 págs., R$ 16,00.
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