|    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                    
                   Nazareno,                 
 meu                   filho mais velho, é pregador espírita. Uma
                  amiga dele, imaginando que
seria um livro devoto, deu-lhe o Evangelho segundo Jesus Cristo, de 
                  Saramago. Ele mo mostrou antes de ler. Foi assim que
o Evangelho                   me chegou.  
                  De                   Saramago,
lera eu apenas um conto, publicado pela revista Veja,            
      num fim de ano,
                  nem                   lembro qual.                   Ah, 
                 lembrei! É este aqui: O              
    conto da ilha desconhecida. Saramago não era  Nobel 
                  ainda. Seria ridículo dizer que profetizei algo,
àquele conto. Se profetizei, uma pena, não
escrevi. O certo era ter                   escrito e publicado. Teria rica
patente agora: profeta. Mas não                   sou espírita,
por favor. Entanto, sou dado a                   "profetizar", de ouvido, no vento, só isto.  
                  Por                   isto
mesmo, não                   me surpreendi, ainda que com base só
naquele conto, quando                   soube do prêmio a Saramago. Contudo,
ainda que premiado-mor, não o                   lera a mais
do que aquele conto, belíssimo conto, repito. Pois                   voltas
do destino, recente, me                   chegou a chance, via bons "espíritos".
Ah, meu Deus!, no dia em que                   eles, meu filho também, souberem que o Evangelho é pura
                  blasfêmia...  
                  O                   fato é
que li o  Evangelho na diagonal. Em seguida,                   li-o
do começo                   para o fim, caneta em punho, riscando, 
                  garatujando, que é assim que gosto de ler. E já
o reli umas                   17 vezes. Está ali, debaixo da rede,
o livro, todo riscado. Entre um                   telefonema e outro, mais
um balanço para lá e pra cá, o pé,          
        de impulso, na parede ou nas costelas da cama, comigo dentro, a rede, dou-lhe uma leiturada 
                  bem avulsa. Momentos há em que nem sei onde anda
a caneta, mas lhe prego, de                   olho na televisão e
nos sons da casa, um novo rabisco.  
                   É                 
 assim mesmo: sob a rede o Evangelho, mais um monte de outros            
      livros, mal me cabem as chinelas no chão coalhado de tantos livros, aflito a pisar em livros, quando,
                  madrugada, ainda no escuro, por conta de uma            
      próstata que já me aflige, levanto-me aos urinóis.
Umas cinco                   vezes. Ah, velhice! [Aqui para nós, no
início de 2004,                   ainda chego lá, meus primeiros sessenta.
E muito(s) mais, mas não tanto. Digamos, um terço está bom, não muito mais]. 
                  Então,             
     os poetas jovens vieram aqui em casa. São meus colegas      
            de faculdade — Diego Vinhas, Rafael do Carmo, Rodrigo       
           Magalhães e Rodrigo Marques. Se são bons? Não,
não são dos                   bons. Excelentes, isto sim!   
                  Pois                   bem,
chegaram. Era domingo, de manhã cedo. E                   só
saíram, depois de expulsos, quase ao anoitecer.      
                  Almoçaram
                  um belo baião-de-dois e tomaram refresco de frutas da terra. Bebi umas      
            quatro cervejas, eu, que nunca deixo adolescentes beber em  
                minha presença. É de lei: sovinei-lhes os álcoois.
E badalamos poesia, estética e poética até         
         dizer chega. A vida alheia também? Evidentemente! De
professores                   nossos a                   poetas do trecho. Ardei, orelhas!
                  É de lei que ardam. 
                  Rodrigo                   Marques
trazia debaixo do braço o Burrinho Pedrês, de Guimarães 
                  Rosa. Pediu para eu ler. A esmo, disse. Li            
      onde abri. Era uma passagem de um moleque chorão, um belo  
                texto. Botei                   ritmo, na clave, como
se fora (também) o autor.                   Acho que, de leitor,
                  ali também era: autor. Disse-lhes que aquilo tudo estava              
    perfeitamente metrificado.  
                  —                   Em decassílabos? 
                  Disse-lhes                
  que o ritmo verdadeiro não tem muito a ver com decassílabos. Comentaram                
  o ensaio de Augusto de Campos sobre a poética 
                  de Os Sertões, de Euclides da Cunha,
com                   destaque à contagem "deca" que ele faz.   
                   Falei-lhes de outras "contagens",
um outro ritmo, como                   se fora, digamos, um prego batido, ponta
                  virada. A palavra justa,                   disse.                
   Rodrigo Magalhães justificou que conhecia o texto metrificado,                   do Jabor. Garantiu
que seria da estirpe.  
                  Veio                   naturalmente
à tona a arte de ler. Isto                   de "ler", disse-lhes,
é assunto vasto. Repito                   agora: espero ter tempo para um
                  dia contar. Certa feita, um poeta foi lá em casa, Bahia, e eu abri
os poemas dele,                   na tela, coisa nova então, era a
                  Internet.
Li-lhos no "trom".                   Não, não foi só
no "tom", foi também no "trom".                   Ele            
      espantou-se e disse que não os sabia tão belos. Sim,
ler,                   parece, é quase tão difícil,
senão mais, do que... escrever.                   Minha saudade do
velho Maggiori.                   São
dele os textos lidos. Também dele a admiração a lê-los, 
                  eu, leitor. Que Deus o tenha em Sua glória. Também um dia,
                  no trom e tom, li o 
Palavras, de                   Dimas Macedo para ele ver e escutar. Indaguem-no,
por favor. Nunca                   havido lido antes, dele, nada. 
                  Voltemos                  
aos jovens. Falamos                   então do Saramago. Do Evangelho.
Os quatro já eram                   grandes evangelhistas,
ou melhor, juramentados                   saramaguistas. Haviam lido tudo,
ou quase tudo. 
                  Disse-lhes                
  que estava encantado com o Evangelho. Não como          
        história, nem como romance apenas, mas de pura poesia. Garanti-lhes
que seria                   capaz de pinçar-lhe 50 poemas, ou mais.
Bati na barriga do                   livro como quem bate numa bolsa cheia
de dinheiros, ou no bolso, às apostas, zombando: 
                  — Garanto                  
cinquenta! 
                  —                   Cinquenta,
poeta?!  
                  Riram,                   de
pura audácia, na minha cara. Falei-lhes que o Evangelho,  
                se posto em texto "normal", era apenas uma grande       
           blasfêmia e nada mais. Confirmaram-lhe o grande   
               valor poético, mas um deles, acho que o Rafael do Carmo, 
                  persignou-se quando comentamos que o  Pastor, alias,
o                   Demônio, no Evangelho, era melhor do que Deus. 
                  Gritei uma cerveja para mim e sanduíche para eles.
Olharam                   enviesados para a cerveja. Fiz que não vi e mantive o
                  interdito. Disse-lhes, por                
  conta do Pastor, que qualquer doidice se dita                  
poeticamente, tão só pelo                   poético,
passará a ter beleza e nexo, ainda que pura                   doidice.
                  Mesmo que só-blasfêmia, de pura blasfêmia, como no Evangelho
                  do nosso Nobel.  
                  Não!,              
    não me deixaram tirar o cochilo naquela tarde. Exigiram sorvete.
Aliás, antes que exigissem, foi-lhes        
          servido sorvete de maracujá com biscoitos quebrados, dentro 
                  da taça. Aqui em                   casa sempre tem
sorvete de maracujá ou de acerola. Os biscoitos a gente os quebra na
                  hora, por cima do sorvete. Minha                   mulher
também é craque no sorvete de manga. Tenho a receita do sorvete de
                  frutas de palmatória, o cacto, ditas figos da Índia,
                  extremamente delicioso, mas difíceis de encontrar. No meu
                  tempo de Bahia, os comprava, caríssimos, no Perini. Disse-lhes           
       que fossem embora. Mas fui com eles até o portão, aliás, 
                  fui-lhes até a calçada. Mais não fui
porque não me                   convidaram. Poucas festas se fizeram
tão belas.  
                  Garantiram que voltarão.
Pedirei licença,                   se vierem, para tirar meu     
             cochilo, na hora justa, mas lhes oferecerei a varanda com almofadas
para se                   espreguiçarem do almoço. São
jovens, eles. As almofadas e a tv lhes bastam.          
        Sou velho, eu. Coisa pouca, se com pimenta, do almoço, com cerveja e
                  caldo, já
peço rede. Com dois                   lençóis, um da
cabeça, outro do bucho. Sim, à sesta,                   despejo-lhe
dentro o corpo — rede. E o pé, nas costelas da cama ou na lateral do prédio,
                  parede com marca de pé, um balanço inicial, e, ligeiro, durmo, bem ligeiro.
                  Mas, por favor, não me desliguem a tv nem apaguem a luz. 
                  E                   os poemas
de Diego Vinhas, li-os — lemo-los — todos. Uma                   observação
daqui, mínima, outra dali. Muito bons, restamos                  
salvos, inteiros. Os poemas também, salvos, mas havia calor.     
             Foram-se. Ufa!  
                  E,                   na madrugada
                  — eu lhes havia dito                   que botaria
em estrofes os passarinhos de Saramago —, levantei-me por cima dos livros, com
o livro debaixo do braço. Onde os                   passarinhos? Lembrava-me
que havia riscado de lado o lugar onde os lera, em voo de duas voltas,
                  chilreando. Livros
meus são riscados de lado, setados,                   garatujados,
quebrados de orelha. Não sou bibliófilo. Gosto de livros para consumi-los. Para perdê-los emprestados. Um  
                dia me ofendi ao amigo que me tentava devolver um. Mas isto
é                   assunto para outro assunto. 
                  Bom,                   antes
de levar os passarinhos avante, melhor mostrar o texto                  
de Saramago donde os pincei. Na íntegra, as páginas          
        398 e 399 — 31ª edição da Companhia das Letras,
do Evangelho: 
                    
                   
                                                                        
                                                                        
       
                             
                                       
                  
                     
                      
                       |                          
                         que essas sois vós, se por vosso mal,       
                 ao amoroso abraço de Deus quereis escapar-vos. Passou 
                        um murmúrio pela multidão, rodando
sobre as cabeças                         como aquelas pequenas ondas
que no mar outra vez se                         vêem, em verdade, muitos
dos assistentes tinham ouvido                         valar de milagres obrados
em diversas partes por aquele                         que além está,
alguns havido sido, mesmo testemunhas e                         beneficiários
deles. Eu comi daquele pão e daquele                         peixe,
dizia um, Eu bebi daquele vinho, dizia outro, Eu                        
era vizinho daquela adúltera, dizia um terceiro, mas             
           entre tais circunstantes, por muito transcendentes ter       
                 sido ou o parecessem, e esse problema supremo prodígio 
                        de ser Filho de Deus e, portanto, Deus ele próprio,
a                         distância é como da terra ao céu,
e essa, que se                         saiba, ainda não foi, até
hoje, medida, Do meio da                         multidão veio então
uma voz, Dá-nos uma prova de que                         és
o Filho de Deus e eu seguir-te-ei, Tu seguir-me-ias                     
   sempre se o teu coração te trouxesse a mim, mas o teu  
                      coração está preso dentro de um
peito fechado, por                         isso pedes-me uma prova que os
teus sentidos possam                         compreender, pois bem, vou dar-te
agora uma prova que                         dará satisfação
aos teus sentidos, mas que tua                         cabeça recusará
e, no fim estando tu perplexo entre a                         cabeça
e os sentidos não terás outro remédio senão 
                       vir a mim pelo coração, Quem puder entender
que                         entenda, eu não entendo, disse o homem,
Como te chamas,                         Tomé, 
						  Vem aqui, Tomé, vem comigo até a borda
da                         água, vem ver-me fazer uns pássaros
com esta lama que                         colho às mãos-cheias,
                         repara como é tão
fácil,                         formo e modelo o corpo, afeiçôo
a forma da cabeça e                         do bico, engasto estas
pedrinhas que são os olhos,                         ajeito as penas
compridas da cauda,  equilibro-lhes                         as pernas
e os dedos, e, tendo feito este, faço onze,                      
  aqui os tens, um, dois, três, quatro, cinco, seis,              
          sete, oito, nove, dez, onze, doze pássaros de lama,    
                    imagina, até podemos, se quiseres, dar-lhes nomes,
este                         é Simão, este é Tiago,
este é  André, este é                         João,
este, se não importas, chamar-se-á Tomé,           
             quanto aos outros vamos esperar que os nomes apareçam, 
                        os nomes, muitas vezes, atrasam-se no caminho, chegam 
                        mais tarde, e agora como faço, lanço
esta rede por                         cima das avezinhas para que elas não
possam fugir, os                         pássaros, se não temos
cuidado, Queres dizer-me que se                         esta rede for levantada,
os pássaros fogem, Esta é                         prova com
que querias convencer-me, Sim e não, Como,                       
 sim e não, A melhor prova, mas essa não é de mim que 
                        depende, seria não levantares tu a rede e
acreditares                         que os pássaros fugiriam se a
levantasses, São de                         barro, não podem
fugir, Experimenta, também Adão,                         nosso
primeiro pai, foi de barro e tu descendes dele, A                       
 Adão deu-lhe a vida Deus, Não duvides mais,              
          Tomé,  e levanta a rede, eu sou o Filho de Deus,  
                      Assim o quiseste, assim o terás, estes pássaros
não                         voarão, com um movimento rápido
Tomé levantou a rede,                         e os pássaros,
livres, levantaram vôo, deram,                         chilreando,
duas voltas sobre a multidão maravilhada e                       
 desapareceram no espaço, Disse Jesus, Olha, Tomé, o      
                  teu pássaro foi-se embora, e Tome respondeu, Não, 
                        Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,
sou eu. 
                                        
               Da multidão adiantaram-se alguns homens, atrás
deles,                         porém não dependentes, umas
quantas mulheres,                         Aproximaram-se a disseram como
se chamavam, Eu sou                         Felipe, e Jesus viu nele as pedras
e a cruz, Eu sou                         Bartolomeu, e Jesus viu nele um
corpo esfolado, Eu sou                         Mateus, e Jesus viu-o morto
entre gente bárbara, Eu sou                         Simão,
e Jesus viu nele a serra que o cortava, Eu sou                         Tiago,
filho de Alfeu, e Jesus viu que o lapidavam, Eu                         sou
Judas Tadeu, e Jesus viu a massa que se levantava                       
 sobre a sua cabeça, Eu sou Judas de Iscariote, e Jesus          
              teve pena dele porque o viu enforcar-se por suas          
              próprias mãos na figueira. Então Jesus
chamou os                         outros e disse, Agora estamos todos, chegou
a hora. E                         para Simão, ir-  
                          
                        Notas: 
                        1.
                        Em ocre, o texto pinçado. Com exceção de  às mãos
                        cheias, uma vez que o esta lama que colho 
                        já me pareceu
                        suficiente, não há nenhuma outra supressão, nem acréscimo.  
                        2. No                    final, símile das duas páginas
do livro. Lá, por favor, repare nos riscos laterais, justamente no
"chilrearam", que seria a parte menos poética. Para mim, pelo contrário,
                        de máxima poeticidade.   
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                   Saramago                  
instala um ambiente perfeito para para introduzir a fala do incréu.
Jesus vem                   chegando, saindo das águas sob estupendos
testemunhos, quando                   alguém salta do meio da multidão
com a insolência: 
                  —      
            Dá-me uma prova!  
                  Preferi 
                 não começar por lá, optando por deixar
tudo em sub,                   quando Jesus o conclama o incrédulo a "ver": 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
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                         Vem aqui, Tomé,  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                            
                                 
                          
                         vem comigo até a borda da água, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                            
                                 
                          
                         vem ver-me fazer uns pássaros 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                            
                                 
                          
                         com esta lama que colho... 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
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                  Saramago
não se assume de                   nenhuma outra preocupação
a não ser com o                   "fácil", com o extremamente
factível. Arquetipo-me:                   menino, no barro de loiça,
                  lá, quando chovia, instaurando imensos                    coqueirais com os talos
de um micro-capim do pé da calçada. Não havia calçamento, era o chão de
                  terra. Também plantava açudes
                  no mesmo barro, ao mesmo chuvisco. [Seria razoável alguma
                  fronteira entre a fé e a infância?]. 
                                                                         
                    
                  Cá, em Saramago, tudo bem tão fácil,
                  porque sub-jaz, evidentemente,                   o milagre, os prenúncios
do milagre.  
                                                                         
                    
            Repare na beleza e na simetria da
                  contagem dos "pássaros". Sem esquecer naturalmente
                  os pedriscos dos olhos. Aos olhos: 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Repara como é tão fácil, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         formo e modelo o corpo 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         e as asas; 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         afeiçôo a forma da cabeça 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         e do bico; engasto estas pedrinhas 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         que são os olhos; 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         ajeito as penas compridas 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         da cauda; 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         equilibro-lhes as pernas e os dedos 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         e tendo feito  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         este, faço mais onze; 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         aqui os tens, um dois, três 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         quatro, cinco, seis, sete, oito, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         nove, dez, onze, doze pássaros 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         de lama... 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  Agora, a fundação dos nomes. O
                  prenúncio dos outros nomes. Vale recapitular a cena das honrarias fidalgas do final de
                  
A pedra do reino, de Ariano Suassuna, quando o advogado
distribui os                   títulos nobiliárquicos justamente
                  ao promotor que zombava de honrarias. Mas, verdadeiro Tomé,
Tomé                   resistirá à oferenda.  
                                                                         
                    
                  Atente para a cesura do
                  terceiro verso: e este... Este, quem, cará pálida?
                  Tu, Tomé!  
                                                                         
                    
                  Como resistir à homenagem de
                  ver o próprio nome ser
posto em algo muito alevantado?! Tomé está quase comprado: este, se não de importas, charmar-se-á     
             Tomé. Sim, um jogo de oferendas! 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Imagina, até, se quiseres, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         dar-lhes nomes: este é Simão, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         este é Tiago, este é André, 
este     é João, e este, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         se não te importas, chamar-se-á 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Tomé. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  Ainda os nomes. A magia dos
                  nomes, mais nomes, em aberto. Quem 
                  chegará? Meus amigos? Poderei indicar algum?, deve ter-se indagado, 
                 interior, Tomé. 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Quanto aos outros vamos esperar 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         que os nomes apareçam; 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         os nomes, muitas vezes, atrasam-se 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         no caminho, chegam 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         mais tarde... 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                                        
                                                                      
                  Uma rede? De onde saiu
                  essa rede? Dessas
de                   ráfia, poluentes, em qualquer beira-d'água,
atuais? Mas                   naquele tempo, não havia ráfia alguma. Saramago
não explica,                   aliás, só explica: o
tom natural do quase-milagre: a rede.  
                   
                   Li,
                  faz tempo, todos                   lemos, a história
                  (fábula?) de um quadro (ou seria um                   cesto?)
de frutas que as aves vinham bicar. O pintor ajuntou-lhe uma rede... por cima.
                  Uma arquetipia e tanto! 
                   
                               
                                                                        
         
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         E agora vê como faço — lanço 
esta     rede 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         por cima das avezinhas 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                               
                                                                        
         
                   
                               
                                                                        
         
                   
                               
                                                                        
         
                   
                  Finalizo
                  o primeiro verso com o  "se", de uma pontuação não usual.
Por isto                   mesmo, Diego Vinhas telefonou para os outros jovens
comentando                   que o texto estava a minha cara. Por certo, está,
                  acho que está:                   À vista de ti:            
                                                                        
         
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         para que elas não possam fugir, os pássaros...,
       se 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         não temos cuidado. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  Não posso
deixar de destacar a construção
do último verso:                                      
                          
                         A Adão deu-lhe vida Deus!  
                                                                         
                    
                                                        
 Sim, os insultos
do                          barro, o nosso barro. Veja
                  que Jesus não conjuga o descendes  na terceira pessoa do
                  plural: descendemos. Tu, Tomé, é que descendes dele... 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Queres dizer-me que se esta rede  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         for levantada os pássaros fogem? 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Esta é a prova com que querias  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         convencer-me? 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Sim e não! 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Como, sim e não? 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         A melhor prova, mas essa  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         não é de mim que depende, seria 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         não levantares tu a rede e acreditares 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         que os pássaros fugiriam se a levantasses. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         São de barro, não podem fugir. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Experimenta! Também Adão,  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         nosso primeiro pai, foi de barro e tu 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         descendes dele. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  A expressão  Eu
                  sou é, para
os judeus, o                   Nome, o Nome de Deus. Por isto mesmo, com ela termino
o primeiro verso: 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede,
     eu sou 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         o Filho de Deus. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
             
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Assim o quiseste, assim o terás,  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         estes pássaros não voarão! 
                  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  Disse-me um amigo que o
                  levantar da rede e o vôo dos pássaros seria a parte prosaica, 
                  inferior. Para mim, a parte mais bela do poema, com
todo                   respeito ao meu amigo: os
pássaros, 
                         livres, levantam-se em vôo, chilreando. Se isto
é                          bonito? Claro que é! 
                                                                         
                    
                  Atente 
                  que Saramago não dá apenas uma volta com
os pássaros de barro. Nem                   volta e meia, nem três voltas,
nem "muitas voltas" ou "várias voltas". A palavra                   justa —
                  Prego batido,
ponta virada: duas voltas! A primeira volta
para dizer que sim. A segunda, a                   confirmar. Duas,
exatas, perfeitas, justas.   
                                                                         
                    
                  No final da segunda
volta, ao espaço...  Multidão? Sim, é claro! Que graça teria um
                  milagre senão visto por todos?! Urge, pois, haja-lhe uma
                  multidão a maravilhar. 
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Com um movimento 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         rápido, Tomé levantou 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         a rede, e os pássaros, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         livres, levantaram vôo, chilreando, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         duas voltas 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         sobre a multidão maravilhada 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         e desapareceram no espaço. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
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                  Não podia deixar de dar a cesura em "teu        
          pássaro", de modo a reforçar a "posse" — o
                  nome, o Pássaro-Tomé. O  foi-se embora é a pós-notícia,
                  o prejuízo. A estrofe como está posta
                  um é desmentido
veemente ao monge Jorge, de O nome da rosa, de Umberto Eco.                   Jesus ria!
                  Um grande presepeiro, com todo o respeito, aquele Jesus! Só um emérito
gozador pregaria tamanha peça.                   Ainda que não
tenha gargalhado. E, mais grave, "mentiu". Assim o exige o desfecho.  
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         Disse Jesus:  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Olha, Tomé, o teu pássaro 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         foi-se embora. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                           | 
                                      
                                   
                    
                   
                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                  Este final, de joelhos, com a colocação   
               do "sou eu" para último verso, atende, parece, o requisito de final            
      majestoso ao convencimento. De comover. Definitivo. De joelhos, eu também.
                  Qualquer um. Mais uma vez, prego        
          batido, ponta virada:  o não seco do início do segundo
                  verso.  
                                                                         
                    
                    
                                                                         
                    
                                                     
                  
                                     
                      
                                       |                 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                         
                 
                       
                                 
                          
                         E Tomé respondeu: 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                 
                          
                         Não. Senhor, está aqui ajoelhado a 
teus     pés, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
      
                      
                                                                      
                          
                         sou eu. 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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                  O pior de tudo é que o
                  heresiarca, ateu convicto e comunista impenitente — ele
                  mesmo quem se diz assim —, Saramago,
                  dá de dez a zero no evangelista,  o único dos quatro
                  que nos conta da incredulidade de Tomé: João, 20, 24-29.  
                                                                         
                    
                   Ah,
                  o título, ia-me esquecendo o título! Pesquei-o inteiro do
                  texto: Olha, Tomé, o teu
                  pássaro foi-se embora! 
                                                                         
                    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                    
                                                                         
                    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                  Soares Feitosa 
                                                                         
                   
                                                                         
                    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                  Fortaleza, bem de noite,
                  24.5.2003 
                                                                         
                   
                                                                         
                    
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
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