Adelto Gonçalves
‘Oeste’: haicai brasileiro
fiel às origens
orientais
I
Chegado ao Brasil
no início do século 20, o haicai (conhecido no Japão e na maioria
dos países como haiku) é um poema de origem japonesa, que
hoje conta com muitos praticantes e estudiosos brasileiros. Segundo
o norte-americano Harold G. Henderson (1880-1974), em Haiku in
English, o haicai clássico japonês sempre tem 17 sílabas
japonesas, divididas em três versos de cinco, sete e cinco sílabas,
contém alguma referência à natureza, refere-se a um acontecimento
particular e apresenta esse fato no presente.
Ao
passar para outros países, algumas das regras anteriores foram
seguidas com maior ou menor fidelidade, enquanto outras acabaram
mesmo ignoradas, dependendo de cada poeta ou da escola seguida, como
explica H. Masuda Goga (1911-2008), que foi o maior incentivador da
modalidade no Brasil. Entre os brasileiros hoje, o haicai ficou
reduzido a qualquer conjunto de três versos no qual haja uma
referência à natureza e um trocadilho ou uma observação mais arguta,
de que é melhor exemplo a modalidade praticada por Millôr Fernandes
(1923). Na maioria das vezes, não mantém a tradição quanto à métrica
e rimas.
Mas
nem todo conjunto de três versos rimados, que evoquem natureza e
tragam uma “sacada” espirituosa, pode ser considerado um haicai. É o
que diz o haijin ou haicaísta Paulo Franchetti (1954) na
introdução de seu livro Oeste (Nishi), edição bilíngue de
haicais compostos por ele nos últimos quinze anos e lançada pela
Ateliê Editorial em 2008. Para o autor, é preciso ir além: portar
uma estratégia própria de composição e recepção do poema que
demonstre com sensibilidade determinada atitude diante do mundo e da
linguagem poética.
Segundo o autor, o haicai é ainda a arte de anotar em linguagem
despojada as sensações fugazes (especialmente aquelas provocadas
pela passagem do tempo e pela sucessão das estações do ano), bem
como as suas ressonâncias nas várias cordas da sensibilidade. Ao
adotar essa postura, o autor mantém-se fiel às origens do haicai,
tal como o poeta Guilherme de Almeida (1890-1969), grande divulgador
do gênero no Brasil.
Para
Franchetti, reclamar a herança do haicai só faz sentido se isso
significar uma tentativa de obter algo radicalmente novo. “E a
novidade que o haicai oferece a um ocidental é o fato de ele ter por
objetivo não a beleza da imagem ou da combinação dos sons, mas o
registro de uma sensação”, explica, observando que esse é o núcleo
da forma do haicai. “E é o que julgo que vale a pena tentar
incorporar, por meio da leitura dos clássicos japoneses”.
II
Depois de refutar a idéia de que o haicai seja síntese, Franchetti
lembra que o haicai “é um texto que se limita voluntariamente a
apenas situar uma dada percepção sensória e traz para o leitor a
presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um
esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível
e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e
da memória”.
Em
outras palavras: o haicai seria a arte de anotar sensações fugazes,
de forma despojada e sensível, especialmente as provocadas pela
passagem do tempo, representadas, por exemplo, nas estações do ano,
como se vê logo no primeiro haicai preparado por Franchetti para
este livro:
Demorou este ano,
Mas de repente, em toda a parte –
Primavera!
Esse
é, portanto, um dos aspectos recorrentes de Oeste (Nishi), ao
lado do tema do deslocamento, que aparece sob a forma de viagens
(para Oeste, para a terra natal ou durante o Ano Novo). E que,
aliás, estão presentes também nos versos das Oito Elegias
Chinesas que traduziu para o português o poeta luso Camilo
Pessanha (1867-1926), autor profundamente estudado por Franchetti e
a quem recentemente homenageou com a publicação de O essencial
sobre Camilo Pessanha (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2008). Como exemplo, basta lembrar estes versos traduzidos por
Pessanha:
(...) E, na algarvia dos
grasnidos, oiço os gansos darem o alarme p´ra o regresso.
E ler
este haicai de Franchetti:
Com que certeza
Voam todas para oeste,
Garças desta manhã!
Ou
este:
Patos selvagens.
Por que iriam dois para o norte
E dois para o sul?
Ou
mais este:
Bem junto à placa
De “É proibido nadar”
A algazarra dos gansos.
Como
se vê por estes exemplos, o haicai é um poema concentrado que capta
em poucas palavras a expressão de um momento, como numa fotografia.
Em outros termos: se a foto capta a imagem, o haicai registra o
abstrato, o segredo, o sentido ou haimi. Por isso, quem faz
haicai é haijin ou haicaísta.
Se o
haicai diz muito, afirma o haicaísta Franchetti, ele “o faz por meio
do vazio que fica entre os dois elementos justapostos ou entre o que
é dito concretamente e o que poderia ser dito, o que fica como pano
de fundo ou silêncio voluntário”. Ou seja, o bom texto do haicai “é
aquele que consegue, com o mínimo, obter apenas o suficiente”.
Professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Paulo Franchetti consegue com seu livro, de
maneira exemplar, unir a erudição teórica com uma prática de quem
muito bem se preparou para desenvolver uma modalidade que
“descobriu” há quase trinta anos, quando começou a estudar a língua
japonesa com o objetivo de traduzir alguns haicais clássicos que,
finalmente, foram publicados em 1990 em versão igualmente bilíngüe
com Elza Taeko Doi.
III
Diretor-presidente da Editora Unicamp, Franchetti é autor, entre
outros livros de ensaios, de Alguns Aspectos da Teoria da Poesia
Concreta (Campinas, Editora Unicamp, 1989) e Nostalgia,
Exílio e Melancolia – Leituras de Camilo Pessanha (São Paulo,
Edusp, 2001), das edições comentadas de Primo Basílio (1998)
e Iracema (2007), ambos publicados pela Ateliê Editorial, da
edição crítica de Clepsydra, de Camilo Pessanha (Lisboa,
Relógio D´Água, 1995), das antologias Haikai (Campinas,
Editora Unicamp, 1990) e As aves que Aqui Gorjeiam – a Poesia do
Romantismo ao Simbolismo (Lisboa, Cotovia, 2005) e da novela
O Sangue dos Dias Transparentes (Cotia, Ateliê Editorial, 2003),
além de Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (Cotia,
Ateliê Editorial, 2007).
Já
H.Masuda Goga, que fez a tradução para o japonês dos haicais de
Franchetti, foi artista plástico (pintor), poeta e jornalista.
Nasceu no Japão em 1911, tendo emigrado para o Brasil em 1929.
Haicaísta e estudioso do haicai, compôs tanto em português como em
japonês.
Foi
ainda seguidor de Nempuku Sato, mestre já falecido e responsável
pela divulgação do haicai entre os imigrantes japoneses no Brasil.
Publicou em 1987 O Haicai no Brasil, considerado um marco do
haicai brasileiro. Organizou as antologias 100 Haicaístas
Brasileiros (1990) e Antologia do Haicai Latino-americano
(1993). Em 2004, recebeu do Japão o Masaoka Shiki International
Haiku Grand Prize por sua contribuição à difusão internacional do
haicai. Faleceu a 28 de maio de 2008, às vésperas do lançamento de
Oeste (Nishi).
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OESTE (NISHI),
de Paulo Franchetti, edição bilíngue, tradução para o japonês de
H.Masuda Goga, caligrafia em shodô Kazuyo Morishita. Cotia-SP:
Ateliê Editorial, 160 págs., R$ 40,00. Site:
www.atelie.com.br E-mail: ateliê@atelie.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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