"Eu sou eu, íntegro e inviolável dentro de mim mesmo.
(...) O que está no limiar e afogado no abismo."
(José Alcides Pinto, 10/9/1923 - 3/6/2008)
Quando morre um poeta o mundo
fica lastimavelmente mais pobre. Terrivelmente mais triste.
Inevitavelmente mais feio.
Às 11h15min de um sábado, dia
31 de maio de 2008, um imenso dragão, disfarçado de
motocicleta, atacou impiedosamente o velho poeta, de 85
anos, José Alcides Pinto, em plena rua General Sampaio, bem
em frente ao palacete conhecido como Vila do Barão, de
ladinho da praça da Bandeira, nos arredores da Faculdade de
Direito do Ceará.
O rapaz da banca de revista
próxima disse que ele havia passado cedo com alguns
envelopes na mão, "dessa vez não vinha com a moça loura",
completou; no envelope iam os dois livros recém publicados,
mas ainda não lançados, que despacharia para alguns amigos
do Rio e São Paulo. Voltava devagarinho (talvez ainda não
recuperado do cobreiro que o maltratara meses atrás),
esperou debaixo de uma árvore o trânsito acalmar, apressou o
passo e... Parou no meio da pista ainda molhada pela garoa
de fins de maio, quando finalmente avistou o pássaro enorme
em vôo rasante, ainda deu pra notar o vermelho dos olhos da
fera, as teias de aranhas das asas e o barro seco das
garras, que era com certeza lá das coroas do rio Acaraú.
O poeta saiu quebrado numa
ambulância, o motoqueiro foi manquitolando atrás; a moto
esquecida na sarjeta. Quarenta minutos depois, sua filha
passa tranqüilamente na mesma calçada; o rapaz da banca
grita para avisar do acidente, ela apressa o passo fugindo
do enxerimento. Quem deve ter lhe contado a triste notícia?
No dia 2 de junho a alma,
também magérrima, do nosso saudoso poeta maldito foi, na
frente, esperar pelo corpo que já ia em cortejo rumo a São
Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Fazenda Terras do
Dragão, comboiado por Sérgio Braga, Lustosa da Costa,
Audifax, José Teles, Carlos Augusto Viana e outros amigos do
peito. Deu tempo ainda de pôr os últimos números em sua
lápide, que havia sido meticulosamente preparada por ele
anos antes. Não havia tido coragem de adivinhar o último
algarismo. Reencontrava enfim seu pai, sua terra, sua paz...
Sob o signo da polêmica
Na juventude freqüentava a
casa de Otacílio de Azevedo, convivendo com os filhos do
pintor e poeta, Rubens, Miguel Ângelo (Nirez) e Rafael
Sânzio; já tinha um jeito despojado e falaz.
Sua alcunha entre os
estudantes era "Alma de Gato", talvez pela magreza
exagerada.
Sua ida para o Rio, sua volta
à terrinha, sua saída do emprego na Universidade Federal do
Ceará, seu uso de um traje franciscano, sua adesão ao
nascente concretismo, seus amores e desamores, enfim, seu
comportamento de uma vida inteira foi marcado pela polêmica.
Enquanto os outros grandes
poetas de sua geração vestiram o paletó e(ou) a camisa da
oficialidade e(ou) o da reclusão, ele arriscou a jaqueta
surrada da marginalidade e da maldição; enquanto uns cavavam
prêmios e condecorações e outros se fechavam mais e mais em
seus casulos, ele corria calçadas, mexendo com as moças,
instigando jovens poetas sujos e cabeludos, espalhando
boatos difamatórios sobre si mesmo. Criou uma imagem tão
forte e polêmica sobre ele próprio, que às vezes ele mesmo
esquecia quem realmente era: um sujeito frágil e religioso,
bom pai, que ia à missa toda semana e rezava antes de
dormir. E tinha uma das gargalhadas mais sinceras que
conheci.
Sempre estava cercado (e
ajudado) por uma leva de boas almas, mas também por uma
corja de parasitas, cujas benesses (e elogios) ele sabia
manipular com maestria; todos admiradores de seus poemas e
de seu comportamento arrojado. Sobre os de boa-fé quase
sempre despejava injúrias, não raro alguns de seus melhores
amigos e colaboradores saíram magoados de seu convívio; em
cima dos oportunistas jogava iscas, elogios falsos e
prefácios não escritos. Sempre esteve acima do bem e,
principalmente, do mal; todos debitavam suas ações polêmicas
ao seu gênio literário. Os ofendidos perdoavam sempre; os
canalhas engordavam à sombra de suas asas negras.
Estava acima do bem e do mal:
tanto fazia engendrar um poema genial (e pendurá-lo no arame
do varal) como caluniar um amigo que tanto o ajudara. Todos
o perdoavam com um rizinho de escárnio.
Estava acima do bem e do mal.
Uns altos muito altos, uns baixos...
Ao amigo que me dizia que ele
tinha altos e baixos, eu retrucava: "- E qual o poeta que
não os têm!?". Depois lembrava que para cada poema fraco
dedicado a Lady Diana ou Chico Mendes (ou algumas rimas
escatológicas) ele tinha no mínimo uma dúzia de versos
endiabrados.
Precisaríamos de alguém com
muito talento, coragem e ética para fazer um inventário de
sua vida e obra; alguém com isenção estética e moral para
mapear suas forças e fraquezas.
Talvez com a devida distância do corpo físico.
A caverna do Dragão
Na minha Crônica da
Gentilândia, do livro Fortaleza Voadora, digo: "...e o velho
dragão Alcides Pinto sobrevoando as copas das árvores, com
suas asas negras - quando ele se cansa de resmungar sozinho
em sua caverna e sai para assustar os últimos bêbados da
Gentilândia".
À sua casa corriam as mais
diversas faunas literárias; escritores de várias idades,
ideologias e estéticas, principalmente os mais jovens, que
ficavam embevecidos com as atitudes despojadas, estridentes
e loquazes do velho poeta.
Sua residência mais famosa foi
a da rua Rodrigues Junior, casa grande, sempre muito
freqüentada; ainda hoje muitos contas histórias e causos nem
sempre verídicos, muitas fantasias e traquinagens ficaram no
anedotário boêmio-intelectual dessa nossa loirinha
desmiolada pelo sol, tão pródiga em tipos populares e bodes
YoYôs, literários ou não.
Já o conheci na Vila Cordeiro,
na avenida Tristão Gonçalves, bem próximo à vilinha em que
ainda hoje mora minha mãe. Habitava uma casa conjugada, numa
pobreza franciscana mas digna, com sua querida filha
Jamaica. Também conheci seu filho Antonin Artaud, um rapaz
magro como o pai, porém de temperamento calmo, com uma
timidez oposta à tagarelice do seu progenitor.
Convivi por um bom tempo com o
poeta (era meados dos anos 1990), através dele e de suas
muitas visitas fiquei sabendo dos subterrâneos de nossa
literatura, tão pródiga em fofocas e vaidades. Ali tive um
curso intensivo de como transitar, e sair sem arranhões
(embora eu não tenha tirado boas notas em algumas matérias)
da famigerada guerrilha literária e suas disputas por
farelos e migalhas.
Um dia me pediu para que
organizasse seus contos, que estavam dispersos em um livro,
Editor de Insônias (1965), e uma miscelânea, Reflexões,
terror, sobrenatural (1984), além de alguns inéditos
datilografados em folhas amarelecidas. Em 1997, o dr.
Martins Filho publica essa edição de seus contos completos,
Editor de Insônias e outros contos, pela Coleção Alagadiço
Novo.
Depois soube que ele andou
criticando umas palavras que inseri como "Nota do
Organizador", ou sugerindo que eu estava querendo aparecer
às suas custas. Nunca passei recibo nem tomei satisfação,
apenas me afastei um pouco de seu convívio. Depois disso ele
sempre repetia para mim ou para alguns amigos: "Se não fosse
você, o livro não teria saído", no que eu sempre respondia:
"Pois não é, poeta. Quem sabe se um dia a gente não tira uma
2ª edição, não é!?". No seu último livro tem um poema
dedicado a mim (quem sabe ainda resquício de uma consciência
pesada) e a Nilto Maciel, a quem levei, depois da volta
definitiva deste ao Ceará, à sua casa e anunciei alto da
porta:
"- Poeta, tô aqui com o maior
contista do Ceará!", no que ele perguntou lá de dentro: "-
Quem, poeta, o Airton Monte?", acabando de vestir as calças;
caímos na gargalhada.
A última vez que o vi ele
estava saindo da sua vilinha com a Jamaica, cumprimentei-o e
ele me perguntou onde era o Buraco da Gia, pois estava
querendo arranjar uma empregada e lhe deram um endereço,
falei que era na Princesa Isabel, vizinho à minha casa, e
fomos caminhando devagar. Quando chegou perto do beco ele
parou, receoso, e disse que só entraria lá se eu fosse com
eles, depois puxou uma pequena faca de mesa, dessas de
cortar bife, e disse que estava preparado (mas que era bom
eu entrar com ele, disse assombrado). Olhei para Jamaica,
que também estava rindo, e disse que não tivesse receio que
ali só morava gente de bem, e me despedi alegando ainda ir
pegar minha filhinha no colégio.
Não tive coragem de ir vê-lo
em seu velório na Academia Cearense de Letras. Queria ficar
com a lembrança dele vivo, alegre e brincalhão.
E parece que estou vendo
aquele sujeito magro ("tão magro que parecia estar sempre de
perfil", como bem disse, em seu A Guerra do Fim do Mundo,
Vargas Llosa), com sua gargalhada sempre sincera, dizendo -
e apontando pra si mesmo - para os muitos anjinhos (ou
demoninhos, tanto faz) que lhe cercam em algazarra: "- Agora
quem manda aqui é esse poeta 'Viadão Pós-Moderno'!"
"Eu sou aquele que come as flores do aniversário."
(José Alcides Pinto, 10/9/1923 - 3/6/2008)
Pedro Salgueiro tem dois filhos, dez irmãos e
derrubou algumas árvores para fazer diversos livros. Faz uns
continhos que, de tão curtos, estão quase desaparecendo. Tem
uma mãe que faz o melhor capote da cidade. Sente muita
saudade de um pai que era sapateiro de chinelos e idéias.