José Alcides Pinto
Augusto Frederico Schmidt
1
Para que este cofre, este cadastro enorme?
Esta poltrona disponível e fofa?
Meu retrato nesta sala de Conselheiros?
Para que estas estantes de aço, tudo muito particular.
Tudo tão pessoal e íntimo às minhas mãos inúteis e gordas.
Não obstante, eu amo o mar e as infantas mortas.
Os anjos tristes e genuflexos, de vestes cor de nuvem.
Sou a própria instituição; tenho vergonha de ser um objeto.
Um poeta: meus amigos me olham com reserva.
Como gostaria de ser anticapitalista.
Eu: Augusto Frederico Schmidt, apenas um simples assalariado.
2
sou um objeto que se conhece contraditório:
para que esse cofre de bronze à minha frente?
Augusto Frederico Schmidt, modelo de capitalista-milionário.
Para que tanta estatística à minha mesa?
Minha alma é leve e cheia de liberdade.
Ninguém compreende por que sou tão prático e capitalista.
3
A poesia eu queria, mas Deus só a deu ao Manuel Bandeira.
Mas Bandeira dividiu alguns versos comigo.
Esses se juntaram à minha melancolia —
Essa tristeza enorme que carrego por onde ando
ou sentado nessa poltrona as doze horas do dia.
4
Não quero o cofre de bronze, joguem fora todos os níqueis.
Toquem fogo, derretam, ou distribuam com a pobreza.
Não quero o cofre de bronze, nem o Banco, que minha alma repele.
Quero a poesia de Cruz e Sousa, a do Alphonsus, a do Bandeira.
5
Tudo se quebra dentro de mim, tenho todas as razões para ser poeta.
Todas as razões do mundo, e mais as que o Bandeira dita:
Você, meu caro Schmidt, não é outra cousa, senão um grande poeta.
Talvez, por isso, Bandeira tenha me emprestado alguns versos.
Por isso, todo o vocabulário de minha poesia é seu.
6
Tudo se quebra dentro de mim, se estilhaça,
como uma parede velha larga o seu reboco
aos golpes do vento, ou ao simples toque de dedos frágeis.
Tudo se quebra dentro de mim, se tento escrever um verso.-
Assim choram as pedras, quando o fogo arde em seu coração.
7
Matem. Assassinem o milionário, o capitalista-banqueiro.
E salvem o poeta-cidadão Augusto Frederico Schmidt.
Brasileiro, natural do Rio de janeiro, romântico, simbolista,
e modernista também; um poeta de gosto fino.
Uni poeta com a alma de António Nobre na pele.
8
As minhas tristezas não cabiam no elevador.
Ficaram imprensadas entre as páginas dos colecionadores.
Minhas tristezas já não cabiam dentro de mim:
apólices, seguros, estatísticas, escravizaram-me a essa poltrona
fofa as doze horas do dia e mais as noites de insônia.
E por causa disso engordei tanto.
Por isso, usava suspensórios, e me tomavam por europeu.
Por isso, usava camisas de linho branco, bastante largas,
e lenços de seda para enxugar o suor do rosto.
Mãe: palavra doce, símbolo claro, desenhado no céu da manhã.
Um verso, apenas um verso meu, trazia-me tua presença
ao ritmo isócrono dos astros, entre as flores pálidas de tuas mãos.
9
Meu coração, em louca disparada, atravessa o Aterro do Flamengo.
Chove em que País? Em que lugar do mundo?
De súbito a escuridão no meio do trânsito:
o poeta Augusto Frederico Schmidt acaba de morrer.
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