Aleilton Fonseca
Inventário de perdas
[in Jornal do Brasil,
18.06.2005]
Romance denuncia o silêncio de uma geração
O silêncio do
delator, romance de José Nêumanne Pinto, retoma a linha ficcional do
inventário político-ideológico da geração 60, no Brasil, que
enfrentou a ditadura militar (1964-1985), respirou a arte pop e o
cinema, embalou-se no rock-and-roll e na MPB, aplaudiu as barricadas
estudantis parisienses e adotou os comportamentos da contracultura.
Coube à turma mais intelectualizada dessa geração - jornalistas,
escritores, artistas, professores, militantes políticos - escrever,
discutir e viver a memória daquela época ao mesmo tempo rica,
confusa e conturbada. Na década de 80, com a abertura política, as
livrarias foram inundadas por dezenas de livros de depoimentos,
poesia e ficção, escritos por autores oriundos dos grupos que
sofreram as agruras dos anos de chumbo da ditadura. Mas nenhum deles
tornou-se o livro definitivo daquela geração.
O silêncio do delator conta a
trajetória de João Miguel, um morto que fala sem peias durante todo
o seu velório. Só o narrador tem acesso à consciência do defunto e
inscreve sua fala no tecido ficcional. Nesta condição, João Miguel
promete esclarecer a sua história e revelar os segredos de seus
companheiros: ''Agora, sim, posso falar de nosso malogro''.
Nêumanne diferencia-se da maioria dos
autores dessa temática. Ele adota uma estratégia francamente
ficcional, ao dar o poder de fala a um morto, em pleno velório,
fazendo-o dialogar com o narrador principal, espécie de moderador
dos diversos discursos que contracenam ao longo do enredo. Ora, essa
aplicação contemporânea do célebre procedimento machadiano, em
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), surte um excelente efeito
operatório, abrindo espaço para discursos desabusados, versões e
contradições, reflexões político-sociológicas e, sobretudo,
observações metanarrativas. São divertidas e pertinentes as
intromissões do morto na escrita do romance, ao fazer reparos e
comentários jocosos e analisar detalhes, criticando a técnica do
narrador principal.
A ironia e a auto-ironia dão tempero
ao relato, pois permitem a relativização das verdades, dos ideais,
das crenças e das ações individuais e coletivas. Os pretensos heróis
da resistência político-cultural dos anos 60-70 riem de si e de suas
fraquezas e limitações. Um riso angustiado, com uma ironia
tragicômica, mas que compõe um quadro realista, sem idealizações
anacrônicas.
Em certo sentido, João Miguel
simboliza o alter-ego coletivo. Nele e com ele, estão mortos os
ideais de sua geração. Já o narrador principal é a outra face desse
alter-ego. Se o narrador-vivo ainda contemporiza com algumas idéias
e situações, ao morto, despido de qualquer chance de ação, cabe as
avaliações mais ferinas. Sua fala é o antídoto da má-consciência
que, inadvertidamente, pode persistir nos discursos e atitudes dos
demais, ainda comprometidos com as etiquetas e os interesses da
vida.
Em O silêncio do delator, a
alternância do foco narrativo é fundamental, pois cadencia a trama e
equilibra o pêndulo entre a realidade e a ficção. O diálogo tenso,
irônico e arrevesado dos narradores, o vivo e o morto, proporciona
um debate duro e esclarecedor, traça o perfil ideológico e
existencial das personagens, entremostra seus acertos e equívocos,
perdas e ganhos, inconseqüências, veleidades e contradições.
Este romance é, sobretudo, um
inventário de perdas: da inocência, da crença, do ideal, da certeza.
As personagens persignam-se sobre o morto - símbolo do malogro. A
morte expõe sua trajetória ao lado dos companheiros - e o seu
silêncio delata o grande teatro vivido coletivamente por uma geração
paradoxalmente vitoriosa na derrota.
José
Nêumanne Pinto conduz bem a sua escrita, pois adota, com acerto, os
procedimentos ficcionais que dão relevo aos fatos da realidade,
elevando-os a um nível de complexidade e de significação para além
dos registros documentais e jornalísticos. Trata-se de uma narrativa
amarga e pessimista, mas escrita com ironia e humor desabusado, para
desnudar a alma de uma geração que viveu intensamente seus ideais e
suas frustrações, deixando marcas na história social e na cultura do
século 20.
O silêncio do delator
- José Nêumanne Pinto
A Girafa. 542 páginas. R$ 51 |
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