Bruno Tolentino
O Mito Presentificado
Poesia de "Invenção
do Mar", Melo Mourão,
oscila entre o elegíaco e o épico
A comunidade lusófona está em festa!
Com sua "Invenção do Mar" Gerardo Mello Mourão propõe à lira nativa
sua tão anelada epopéia. Entre as questões que coloca, o paradoxo do
lirismo a serviço de uma idéia de épica que os tempos modernos
teriam inapelavelmente revogado. Tendo a concordar com Gaëtan Picon:
para suster e legitimar uma epopéia seria preciso toda uma
civilização, não bastaria, por mais justa que fosse, uma exumação
idealizada do heróico a tornar vibrantes as linhas mestras de uma
projetada "nova fisionomia nacional". E simplesmente porque a épica
é o legado da fundação de sua mitopoética a uma coletividade ainda
culturalmente intacta, isto é, linguisticamente viva em todos os
seus pressupostos. Outro paradoxo, pois que a dicção de Mello Mourão
foi irredutivelmente pessoal, personalista mesmo, desde seus
primeiros esboços; o que não parece ter impedido seu triunfo neste
poema... Sem prejuízo do louvor que lhe devemos, perguntemo-nos,
pois, quais as questões que nos cabem rever e averiguar ante a
vitória evidente deste texto. Montale advertira a seus pares que
"nem tudo se pode dizer em poesia"; a lírica moderna teria fixado
seus módulos na noção mesma de uma fragmentação irreparável da
consciência ocidental, a qual seria, desde os declínios do ideal
renascentista, inescapavelmente crepuscular. E aos alvores deste
século tinha razão Ungaretti, como a tinha Eliot, a lírica moderna
tornara-se "une illumination fabuleuse" de cunho nostálgico: as
fulgurações do Verbo como vaga-lumes, senão ao acaso, certamente
ante um ocaso particularmente seu... Confere. Não por coincidência
nenhum poeta maior dos últimos três séculos europeus deixou-se
tentar pela épica.
A subjetividade da percepção confinava
a lírica a uma interioridade cada vez mais imanente. Com ou sem
dívida evidente ao Blake dos "Prophetic Books", os mais longos e bem
logrados poemas do "Fausto" em diante perscrutavam os abismos da
alma, não se propunham a cantar os triunfos coletivos, ainda quando
legítimos e reconhecidos. Restava aos grandes esboços da mente a voz
dramática da "poiesis", sim, mas em toda verificação de cimos e
profundezas evitou-se desde então os registros mais amplos da voz
celebratória. Chegamos assim às "Elegias de Duíno" e à "Waste Land"
: o elegíaco em busca de uma totalidade da visão, indisfarçavelmente
melancólica, das peripécias do ser-no-mundo...
Ou no Velho Mundo apenas? Porque
quer-me parecer que Mello Mourão circunvolteia todo esse típico
drama ocidental há já algum tempo, pelo menos desde "O País dos
Mourões", mediante a incorporação do elegíaco no assédio que sua
lira faz a uma particular historicidade viva que o guia, preocupa e
inspira. À minúcia medieval das tapeçarias, mosaicos e vitrais, aos
grandes afrescos renascentistas, em ambos os casos a um tempo
descritivo e narrativo, ele vem substituindo um painel de signos e
evocações cujo acento deve tanto ao lírico-elegíaco quanto aquele
tom maior evocatório e fundador. E tudo isso finamente combinado aos
panejamentos discursivos mais plenos e ousados. Suassuna, em toda
sua obra, mas especialmente em "A Pedra do Reino", não tem feito
outra coisa.
Ambos, sem perda de carga lírica,
voltam-se decididamente para a atualidade do mito vivificador como
esteio e fisionomia total da nacionalidade. Como o exemplar
paraibano, nosso mais original poeta maior (e aqui Drummond tinha
toda a razão) vem compondo seu monumental e intrincado painel
temporal à maneira de um bordado oblíquo, conduzido pela fina agulha
eminentemente elegíaca da melhor lírica moderna. A interioridade da
consciência é assim convidada a deixar seus casulos para tentar uma
teia sutil de referências exteriores, uma "abertura" ao extremo
oposto da "Weltinenraum" rilkeana. Destarte os ritmos mais próximos
à prosa constituíram sempre para este bardo o preço e o penhor de
uma difícil, se tanto mais necessária, unidade formal entre dois
mundos: o da percepção subjetiva e aquele outro, o do real
irredutível e desafiante.
Não sei se à vitalidade de sua visão
corresponderiam de fato os dados brutos, tardiamente virginais, de
uma civilização ostensivamente ainda em busca da fixação plena de
uma sua mitopoética fundadora. Sei que nunca tive a impressão de
entrar e sair de um texto seu que ao cabo falhasse a esse precário,
fulgurante equilíbrio entre o lírico e o épico. Como sei que tudo
isso anunciava-se já desde seu mais belo poema, em "Os Peães", a
elegia ao irmão morto na infância.
A partir dali em sua obra os tempos se
cotejam e se fundem ao seu mais sensível, os planos temporais se
entrelaçam e a perspectiva mostra-se cambiante a serviço de uma
restituição menos do "passado" do que de uma emoção permanente,
particularizada e celebrada "sub species aeternitatis". Vale dizer
que em seus melhores momentos até agora o poeta vinha afirmando,
senão mesmo fundando, uma proposição histórica sobre o frágil tecido
não tanto de uma nostalgia quanto de uma incompletude, possivelmente
ontológica esta última. Dito isto, qualquer pertinente ressalva não
subtraía nada à impressão final; quando afirmativo e celebratório, o
texto tendia a perder em tensão o que ganhava em escopo, talvez, mas
não aqui nesta "Invenção do Mar". E por quê? Talvez porque aqui o
mito, esse "nada que é tudo" -sustento daquela concisa gema de
epopéia interiorizante (se em nada "subjetiva") que é cada dia mais
a "Mensagem" do maior português de nossos tempos -o mítico desta vez
vê-se traduzido em realidade temporal concreta e imediata, despida
de idealizações e abstrações mediante uma deslocação da matéria
poética de um "passado" a um "presente perpetuo" (O. Paz), ambos
menos a inquirir que a coisificar. Daí o declarado pendor de Mello
Mourão para o etos, o nome como elemento substantivo fundador.
É fato sabido que, à distância, a
dimensão heróica ascende a uma legitimidade que se entretece
igualmente bem do mítico e do telúrico -mas, neste seu caleidoscópio
de enumerações, como o logra nosso poeta? Sem negar-se aos
particularismos evocatórios que o caracterizam ao seu melhor, a
pujança e a pungência desta moderna epopéia lírica parece-me
sustentar-se de uma acronicidade que é sobretudo um convite aos
saltos da imaginação sobre o fosso do conceito, ou antes, do
conceitual discursivo. Uma dança -sobre o arco dos tempos!- do
imaginário substantivado não me parece pouco, e este poeta insiste
em preferir as sugestões de atemporalidade do palimpsesto ao método
"compositivo" do vitral poundiano, este sim perigosamente nostálgico
em sua esplêndida retórica feita de obscuridades e oscilações entre
o medieval e o contemporâneo. Talvez fosse que Pound falava de uma
pujança perdida a uma civilização exausta, dirigia-se a uma
confraria de "cadáveres no banquete" impossível, "dispiciente" diria
o Drummond de "A Máquina do Mundo". Talvez. Mas no caso de Mello
Mourão é possível que estejamos enfim diante do perfil reconstituído
de uma civilização ainda muito longe de qualquer exaustão
nostálgica, uma angélica visitação revista sob as espécies de um
novíssimo cubismo tão retroativo quanto vibrante, porque ainda
vital, ou, se o preferirmos, "incompleto". Ora, como assim, após
meio milênio de instaurações?! Aqui bastaria lembrar aos céticos a
surpresa instauradora que foram os dois "Teoremas da Incompletude"
de Kurt Gödel, aquele judeu vienense redentor sem nostalgias da
moderna lógica modal em plenos anos 30...
Em todo caso, ante esta proposta de um
novo "Carmen Saeculare", parece-me impossível não responder à sua
particularíssima orquestração dos fragmentos do imaginário coletivo
senão por uma jubilosa adesão voluntária ao celebratório, àquele
clima de festa a que aludi no início destas poucas linhas. Serão
precisas muitas mais, e bem mais particularizadas, a medir o impacto
deste todo feito de entalhes e obliquidades: o inventário dos
processos e resultados desta máscula alquimia intelectual do
espírito é tarefa para a gaia ciência de gerações. Mas a esperamos
desde já, a análise estilística que nossa crítica continua a dever
ao mais desafiador de nossos "miglori fabbri"...
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Mello Mourão
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