Fabrício Carpinejar
O azarão afortunado
Prêmio
Portugal Telecom de Literatura destaca o poeta Paulo Henriques
Britto, autor carioca que traz como marca a obsessão pela disciplina
e pela clareza
Para evocar o território de
íntima estranheza da poesia brasileira, o poeta e professor Paulo
Henriques Britto deriva por outras paisagens: "A água é pura espera,
como um túmulo egípcio"
Sempre que a poesia
ganha um prêmio de expressão é vista como surpresa e azarão. Ainda
mais se está concorrendo com romances. O poeta carioca e professor
universitário Paulo Henriques Britto, ao ser anunciado no último dia
9 como vencedor do prêmio de R$ 100 mil da Portugal Telecom, não
deixou de ironizar que teria seus 15 minutos de fama e que seu livro
Macau (Companhia das Letras, 79 páginas) venderia um pouco
mais no Natal na forma de amigo-secreto e presente de namorados.
Tradutor da Companhia das Letras (aliás, uma de suas fortes
referências é o americano Wallace Stevens, um de seus traduzidos), o
autor não é de falar muito, mas de fazer calar no momento certo. Em
seus 20 anos de poesia, publicou apenas quatro livros: Liturgia
da Matéria (1982), Mínima Lírica (1989), Trovar Claro
(1997), além de Macau (2003), sempre com intervalo de seis a
sete anos entre uma produção e outra. A lentidão decorre de sua
exigência pela aquisição de um domínio do próprio processo criativo.
Utilizou a metáfora
do pequeno entreposto português na China, Macau, para mostrar o
quanto a poesia brasileira é um território de íntima estranheza,
rodeado de idiomas que não a levam a sério. Utiliza a desordem
externa do mundo, a negatividade, para arquitetar uma ordem interna
e positiva, de precisão e sutileza. Ele se distancia para depois
personalizar a visão. Sua poética tem como matriz o ludismo verbal e
a ironia. Seu charme vem de um ar desesperançado. O formalismo e a
afeição por formas fixas contrastam com o tema coloquial de seus
versos, munido de referências pop como Jim Morrison ou de cenários
como bangalôs, praias, hotéis baratos. Uma monotonia proposital e o
ímpeto prolixo e argumentativo são quebrados ao final com a inversão
de expectativas, transformando o conceito em uma imagem. Seus poemas
são falsos blagues, falsos exorcismos. Ele finge falar do mundo para
falar do seu jeito desconfortável no mundo. Define um mal-estar ou
um desvio com o apelo pessoal. "Se tudo correr bem, também a tua
derrota / vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo."
Circula no espaço da
trivialidade, das revelações a partir do mais grosseiro, do mais
visível, do mais tátil. É como uma consciência que evolui unicamente
do texto para o texto, em uma operação cabralina contínua de
investigação e observação sagaz. A dicção é híbrida, infiltrada de
neologismos e gírias, que dividem espaço com evocações do
dicionário. "Esse quarto minguante incompetente que mal / e
porcamente alumia, essa tosca / arandela de santo em quarto de
bordel, / coberta de cocôs de mosca... / Não abre a boca, não estufa
/ o peito, não. Nada que você diga / é teu. Nada é você. Você não é
Puf!". Não é de uma linhagem metafísica. Egresso da geração
mimeógrafo, marcada pela espontaneidade do sentido (nunca do
sentimento), tornou-se pouco a pouco um artesão da língua, um
alfaiate erudito, não abdicando da nobreza do desbotado e dos
trapos. Até porque não há realidade plena sem o escuro, muito menos
pôr-do-sol sem luz desmaiada.
Sua poesia é
construída, focada, refinada, crítica da leitura do poeta e do poeta
leitor, derrubando a noção de autocomplacência e comoção direta do
romantismo. Há, em seu trabalho, uma autonomia admirável, uma
obsessão de repertório. Em Trovar Claro, encontra-se referências ao
Egito: "A água é pura espera, como um túmulo egípcio", reiterada em
Macau: "Antes que fôssemos mumificados por completo, você descobriu
uma maneira de apodrecer tão depressa que fosse impossível até mesmo
para o mais hábil mumificador do Alto Egito".
Igual processo
funciona com sua fixação pelas mãos que vacilam e escrevem o que
pensam sentir, presentes em "Dez exercícios para os cinco dedos", de
Trovar Claro, e "Bagatela para a mão esquerda", de Macau. Tanto que
os dois livros apresentam sempre a figura das variações, dos
exercícios e dos estudos, contribuindo para a disciplina do
rascunho. A lógica de Paulo Henriques Britto é não chegar ao poema
perfeito, porém o mais perto possível dele, sem abdicar da
imperfeição que assegura a naturalidade dos versos. Produz erros
premeditados: "Mas a semente espera. É insistente / e acerta mesmo
sem saber que erra". Atuaria como um biólogo do ritmo, perfurando as
paredes culturais de sua formação (como ao refutar Drummond).
Percebe-se a importância da prosa (bem longe do prosaísmo) em sua
poesia, como uma necessidade orgânica de ser compreendido e de
seguir um raciocínio limpo e linear, de criar cumplicidade com o
leitor mesmo que seja pela hipocrisia, como ensinava Brás Cubas de
Machado de Assis.
De Vulgari eloquentia
por Paulo Henriques Britto
A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída - falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",
todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.
Acalanto
Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,
despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;
e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos
em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.
E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno.
Leia Paulo Henriques Britto
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