Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés

 

Meia Palavra Inteira
Carlos Felipe Moisés entrevista José Paulo Paes
 

 

Poeta, ensaísta e tradutor, José Paulo Paes goza de alto prestígio entre intelectuais e especialistas, mas não conta ainda com o reconhecimento que merece junto a um público mais amplo. Uma das razões é sua aversão à chamada "vida literária", aquela aura mundana, feita de vaidades exacerbadas, golpes de oportunismo e tráfico de influências, que cerca o objeto propriamente literário que é o livro impresso. Parte por temperamento, parte por princípio, José Paulo sempre se manteve à distância das confrarias do elogio mútuo, responsáveis por tanta glória efêmera, preferindo arcar com o ônus de uma atividade rigorosamente ética. Para ele, a recepção da obra literária deve prescindir da promoção publicitária, sobretudo a autopromoção; o livro deve oferecer-se ao leitor tal como é e não como o estrelismo do autor e as injunções do momento o imponham ao imediatismo do consumo. Tem sido assim ao longo de mais de quatro décadas de dedicação discreta, silenciosa e apaixonada à literatura.

Seus ensaios exibem a curiosidade eclética do leitor privilegiado, autodidata, que, sem metodologias artificiais nem preconceitos, mas munido de severo olhar perscrutador, notável erudição e proficiência, cumpre com a função primordial da crítica: informar, avaliar, sempre no sentido de esclarecer e enriquecer a obra analisada e não de promover o analista e suas idiossincrasias. Suas traduções, impecáveis, têm posto à disposição do leitor de língua portuguesa algumas das mais importantes obras da literatura universal, em textos que não ficam nada a dever aos originais: os Sonetos luxuriosos de Aretino, os Poemas de Kaváfis, o Tristam Shandy de Sterne e tantos outros. Sua poesia, desde O aluno (1947) até Prosas (1992), revela uma voz instigante e original, que a cada livro aprimora aquelas características que lhe são mais peculiares: a concisão epigramática, o horror ao derramamento e ao sentimentalismo, a tendência conceitual mas antidiscursiva e a engenhosidade verbal, que em vez de buscar o malabarismo exibicionista busca a síntese exemplar, o laconismo prenhe de insinuações. Uma das marcas registradas dessa voz poética é o humor, aprendido em parte com Drummond, um humor que trafega ágil entre o trocadilho e o deboche, a acidez ferina e a soltura da gozação lúdica, sempre funcionando como revelação aguda do ridículo e das misérias da condição humana — ceticamente, mas com afeto, à Machado de Assis. Esse conluio de lirismo contido e denúncia amarga está invariavelmente a serviço da consciência política, sem dogmas: a consciência do homem da Pólis, o homem solidário em sua relação com a comunidade.

José Paulo Paes, em suma, é um escritor a quem se aplica com justeza o epíteto homem de letras, em sua expressão mais digna e elevada. Não é o simples profissional nem o diletante, não é o burocrata e menos ainda o arrivista das letras. É o homem de letras no sentido do denso humanismo que lhe serve de fundamento à atividade literária, por ele exercida com admirável humildade mas com a convicção ainda mais admirável do poder humanizador da literatura. Para ele, a literatura é o último reduto onde ainda é possível ao menos formular, de frente e em regime da mais irrestrita autenticidade, a ingente interrogação pelo sentido da existência.

Desde o início da carreira, José Paulo vem formulando e reformulando essa interrogação, nos seus mais variados matizes, empenhado em encontrar uma resposta que ele talvez saiba impossível — uma resposta que será, quando muito, parcial e provisória. Mas desistir quem há de?

 


 

Quinta-feira, 14/5/1986, 2:05 horas da tarde. José Paulo disse que estaria à minha disposição a partir das 2:00 horas. Sei como é valioso o tempo para este incansável trabalhador intelectual. Sei do seu esforço, ao longo de tantos anos, para ir produzindo sua obra nas poucas horas livres, espremidas entre compromissos profissionais. Sei também do entusiasmo com que, depois de aposentado, ele passou a se dedicar ao trabalho literário em tempo integral. Sei ainda dos seus muitos e antigos planos, sempre miseravelmente adiados, por falta de tempo, e que só agora ele começa a realizar. Quanto desse tempo precioso seria justo roubar-lhe, para uma entrevista, solicitada por um periódico de São Paulo? Sobretudo a ele, avesso à publicidade... E o que eu tinha em mente não se limitava a uma ou duas horas, era coisa para a tarde toda, talvez varasse a noite.

Ele me recebeu afável e sorridente, no aconchego do escritório montado nos fundos da casa, sem demonstrar contrariedade por ter sido interrompido em meio à tradução de um poema de Eluard. Começamos imediatamente a tecer giros em torno de notícias recentes, amigos comuns, os últimos livros, projetos em andamento. Quase meia hora depois, lembrei-me de ligar o gravador e comecei a bombardeá-lo com minha curiosidade.

Ele falou da infância em Taquaritinga e em Araraquara, no interior de São Paulo, até o tempo do velho Ginásio, que dava ao adolescente uma respeitável formação humanística. Depois a iniciação literária, o primeiro livro, publicado enquanto freqüentava um curso de química, já em Curitiba. Em seguida, químico formado, o primeiro emprego em São Paulo, em 1949, a luta pela sobrevivência, os primeiros anos de carreira literária na cidade grande. Mais tarde, já na idade madura, a realização do sonho antigo: viajar, viajar muito, conhecer mundo. México, Estados Unidos, Inglaterra, França, Portugal, Espanha... E a Grécia, a fascinação pela Grécia, onde já esteve mais de uma vez.
 


— Você nunca pensou em aproveitar literariamente essa experiência de viajante?

— Eu tenho a impressão de que, no mundo de hoje, os livros de viagem perderam sua razão de ser. Hoje não há mais desconhecido geográfico, tudo se tornou conhecido. Jamais me passou pela cabeça fixar essa experiência em prosa, em livro de viagem propriamente dito. Mas isso começou lentamente a germinar em poesia. Atualmente estou trabalhando numa série de poemas a que chamei "Geográfica pessoal", aproveitando o nome dessa revista, a Geográfica universal. Aí eu procuro epigramar, condensar minhas experiências de turista cultural.
 

 

Insisto na questão, pela via transversa da experiência com idiomas estrangeiros. Quero saber especialmente da Grécia e do grego.
 


— Traduzir do inglês, do francês, do italiano é usual entre nós. Mas você traduziu Kaváfis e outros diretamente do grego. Como se deu isso? Como você chegou a dominar o idioma?

— Bem, antes de viajar à Grécia pela primeira vez, adquiri um desses cursos de grego por línguafone. Durante uns seis meses, todo dia de manhã, por duas horas, eu ficava lá ouvindo as fitas, lendo o manual, me enfronhando no neogrego. Desembarcando em Atenas, pedi a um carregador para me ajudar a levar as malas e ele me atendeu perfeitamente, pelo menos levou as malas. Mas depois me perdi, já não entendia mais nada. Passei em Atenas cerca de vinte dias e não entendi uma palavra do que me diziam. Voltei para casa frustrado, mas antes comprei vários livros em grego e fui aperfeiçoando aos poucos o meu conhecimento do idioma. Naquela altura eu pensava: o neogrego do meu curso de línguafone eu tinha aprendido; agora, a língua que aqueles caras falavam por lá eu não sabia nada. Mas na segunda vez já consegui entender melhor. Hoje, quando me falam, compreendo a maior parte das frases.

— Valeu a pena o esforço?

— E como! Isso que começou como cordialidade lingüística, de você chegar a uma terra estrangeira e falar alguma coisa na língua local, acabou se transformando em paixão. Depois que comecei a ler os poetas gregos no original, principiando por Kaváfis, descobri todo um mundo novo.
 


 

A conversa envereda então pelo tema da difícil mas gratificante tarefa da tradução. José Paulo fala da diferença entre traduzir por obrigação ou necessidade e traduzir por prazer. A segunda forma só se tornou possível depois da aposentadoria. Pergunto-lhe a propósito há quanto tempo está aposentado.
 


— Três... não, quatro anos.

— Quatro, não, Zé. Cinco!
 

 

A correção quem faz é Dora, esposa de José Paulo, musa de Cúmplices (1951) e companheira de toda a vida, que nesse exato instante entra para servir o cordial cafezinho. Mas ele não se dá por vencido:
 


— É, quase cinco.
 

 

Discretamente Dora se retira. Eu me esforço, hesitante entre as teclas do gravador, a alça da xícara e o microfone, para não perder o fio da meada. Volto à carga.
 


— Sua criação poética e a tradução de poesia são vasos comunicantes, não?

Sim, há uma espécie de feed-back nas duas direções. Principalmente quando você traduz poetas mais congeniais e começa a se exprimir através das traduções. Mas também pode existir um aspecto compensatório, você como que assume um heterônimo ao traduzir um poeta diferente de você. Por exemplo, eu sou naturalmente um poeta voltado para o conciso, para o epigramático, para o osso da linguagem. Entretanto, me sinto bem traduzindo poetas mais derramados, mais fluviais, mais metafóricos. Assumo o heterônimo de um poeta abundante, quantioso, e me compenso um pouco dessa minha limitação de epigramista.
 

 

Faço-lhe mais ou menos a mesma pergunta em relação aos ensaios. Quero saber se, nele, o poeta e o ensaísta brigam entre si. Ele me assegura que não, são bons amigos.
 


— Para mim, escrever um ensaio é mais ou menos como escrever um poema, é um ato de criação intelectual, e de certo modo afetiva, tão válido quanto a criação poética. Se a poesia é sobretudo criação no domínio da palavra, arquitetura do verbal, o ensaio é uma arquitetura de idéias, arquitetura de visões críticas.
 

 

Percebo que estamos apertando o cerco em torno do fulcro mesmo da criação literária de José Paulo Paes, a sua própria poesia. Vou-me aproximando aos poucos. Lembro-lhe o apreço em que sua poesia é tida por críticos e outros poetas. Acrescento que ele só não é um poeta mais conhecido e admirado porque insiste em manter-se à distância da vida literária.
 


— Eu me refiro, Zé, à sua discrição, ao pouco ou nenhum empenho que você faz em aparecer. Nada de badalação, nenhum sinal, o mais leve que seja, de vedetismo.

— Essa discrição talvez seja um traço de personalidade. Sempre fui uma pessoa medianamente tímida, nunca quis me impor a ninguém. E através da literatura aprendi a ser humilde, não no sentido de me rebaixar mas de não me sobrevalorizar. Isso me levou a ter uma grande aversão àquilo que se pode chamar de soberba intelectual, a mais danosa e a menos justificada das soberbas. O pecado capital da vida intelectual é a soberba. O vedetismo, a autopromoção, essa ânsia, essa avidez de fazer carreira está ligada à soberba intelectual. A pessoa se julga tão importante que quer, por todos os meios, ver-se reconhecida urbi et orbi. Não é absolutamente o meu caso. Tenho perfeita consciência das minhas limitações e procuro trabalhar dentro delas, no sentido de transpô-las progressivamente, devagarzinho, na medida do possível.
 

 

A conversa caminha por aí: promoção, autopromoção, pequenas e grandes vaidades, bajulação, amor-próprio... Acabamos rindo muito com a lembrança da sua involuntária boutade de 1973, ano da publicação de Meia palavra, em cujas orelhas, entre algumas opiniões críticas a seu respeito, ele resolveu incluir duas que lhe são francamente desfavoráveis, quase esculhambativas.
 


— É que eu tenho verdadeiro horror à publicidade, que considero uma das grandes pragas da vida moderna, a indústria da mentira, a mentira institucionalizada e posta a render. No caso de Meia palavra achei que seria uma safadeza esconder a parte desfavorável da crítica. Acho que um autor pode e deve suscitar reações a favor e reações contra. Acho muito perigoso o autor só suscitar reações a favor...

— E só suscitar reações contra?

— Só contra tamb... Não, só contra talvez não. Porque ele pode ser um radical, pode estar assumindo posições que contrariem a ordem vigente... Mas voltando ao caso da orelha de Meia palavra, essa superposição de contras e a-favores acabou sugerindo um tom satírico, humorístico, que foi involuntário. Mas como o livro era irônico, epigramático, a orelha não discrepou do resto do corpus. Lembro que o Fausto Cunha, numa carta muito engraçada, disse que se escusava de opinar sobre o livro, para não correr o risco de aparecer na próxima orelha.
 


 

O episódio, afinal, revela um dos traços dominantes da personalidade literária e humana de José Paulo Paes: um espírito crítico finamente apurado e um entranhado amor da verdade. Digo-lhe então que, de um modo ou de outro, isso se traduz nos seus poemas, sob a forma de preocupação política, uma constante em sua poesia. Sugiro que ele não se incomodaria se algum historiador da literatura o situasse entre os "poetas da resistência". Pergunto-lhe como ele encara, no geral e no seu caso particular, essa questão da poesia engajada, a poesia de intervenção social.
 


— Meu caso se explica, em parte, pela época histórica em que nasci para a literatura. Pertenço àquela geração que adolesceu nos anos da segunda guerra mundial, anos em que se exacerbou, a um ponto até então inédito, aquilo que Drummond chamou, admiravelmente bem, de "sentimento do mundo". Nessa época circulava a expressão "mundo só", que era a utopia a que se aspirava, tão logo terminasse o conflito. Infelizmente, como todas as utopias, foi desmentida pela realidade. O que nem por isso infirma a utopia, ao contrário, torna-a ainda mais necessária. Essa minha geração viveu o Estado Novo, depois o movimento pró-anistia (essas anistias, aliás, estão-se tornando uma espécie de hábito nacional, o que é muito triste, ou uma necessidade nacional, o que é mais triste ainda), depois a queda do Estado Novo, a redemocratização do país, etc. De modo que foi uma época de renascimento cívico do Brasil. Foi um mundo de esperança que nós vivemos e que se marcou muito em mim.
 

Procuro avaliar o ânimo com que Zé Paulo desfia essas lembranças antigas, mas com os olhos firmes no presente. Observo que ele fala com emoção, mas emoção contida, serena. O tom é o mesmo das respostas anteriores, pausado e uniforme; o improviso continua a fluir impecavelmente claro e direto, na escolha das palavras, na ordenação lógica do pensamento, na dicção límpida. Mas a emoção é mais forte.

Que emoção é essa? A explicação está lá, no conteúdo declarado de sua exposição: a utopia foi desmentida pela realidade, mas isso não a infirma, antes torna-a ainda mais necessária. O que não está lá, porém, é a forte impressão de que, nesse momento — mescla invulgar— , o cético e o idealista se dão as mãos. Há qualquer coisa de fatalismo nisso, mas nada a ver com conformismo. Só a aceitação resignada e superior, à Machado ou à Sterne, das limitações da criatura humana. Desistir, quem há de?

A pausa, mínima, é suficiente para que Zé Paulo contenha ainda mais a emoção e retome o ponto de partida, a sua própria poesia.
 


— Foi Baudelaire quem disse, se não me engano, que a poesia é a infância reencontrada. O poeta que eu sou começou a ser quando eu era jovem, e hoje vejo que há uma certa coerência no que fiz. Como você diz bem, a preocupação política subjaz a tudo isso. Talvez o termo política... Claro, no seu sentido etimológico funciona, mas se o tomarmos no sentido aviltado que hoje tem, não conviria a esse tipo de atitude. Aquela noção drummondiana de "sentimento do mundo" me parece mais adequada. Foi isso o que, em maior ou menor medida, eu sempre busquei na minha poesia. Houve fases em que, sob o acicate das circunstâncias históricas, ela se prendeu mais ao político propriamente dito, tornando-se "poesia de resistência", como é o caso de Anatomias e de Meia palavra, publicados em plena ditadura militar, da qual acabamos... mal acabamos de emergir. Afora isso, qualquer das vertentes do meu "sentimento do mundo" (a política, a existencial, a estética, a metafísica) é marcada por um sabor, como eu diria, um travo, uma acidez sempre irônica, satírica, metalingüística, que imagino faça parte do meu temperamento.
 

 

José Paulo fala então da luta por encontrar, a partir desse temperamento, uma voz própria, livre das marcas de vozes alheias, presentes sobretudo nas duas primeiras obras; livre dos seus "mentores intelectuais", como ele os chama — entre os quais, acima de todos, Carlos Drummond de Andrade.
 


— Drummond, para mim, foi o grande criador do humor na poesia brasileira. Não sei de nenhum poeta que tivesse ido tão longe quanto ele. E esse humor drummondiano é aquele de filiação inglesa, em que a visão crítica se volta não só para o mundo, mas para o próprio poeta. Já a visão de Oswald, por exemplo, era muito mais uma visão burlesca, porque se voltava principalmente para fora e não para ele próprio. Meu temperamento literário seria muito mais afim do de Drummond.

— Mesmo assim, fale mais do Oswald.

— Conheci Oswald quando vim para São Paulo, num momento em que ele estava em baixa na bolsa de valores literários. Nessa altura ainda se vivia o clima da geração de 45, que lutava contra o chamado "desmazelo" e o "piadismo" dos modernistas. Durante certo tempo, infelizmente, também cultuei essa balela, esse mito da nobreza de linguagem. Nesse sentido, meu contato pessoal com Oswald foi fecundo, porque eu achei, com ele, que era preciso retomar certas linhas do modernismo de 22. Uma delas era justamente esse humor meio esculhambativo, gozador. Foi o que tentei fazer num longo poema, Novas cartas chilenas, inicialmente publicado na revista Brasiliense, em 1954, e só mais tarde em livro, nos meus Poemas reunidos, de 1961. Aí eu tentava reabilitar o poema-piada modernista, partindo não só de Oswald mas de Murilo Mendes, o Murilo Mendes da História do Brasil, um livro esquecido, parece que renegado pelo próprio autor, mas que eu considero muito importante, um livro cheio de brilho, onde está em gérmen o Murilo surrealista. Essas Novas cartas chilenas constituem uma espécie de revisão da história do Brasil, desde a Descoberta até os tempos de então, início dos anos 50, quando ainda vivíamos os últimos resquícios do tenentismo. Uma tentativa de desmistificação da história, feita sob o signo da poesia. O que procuro é assinalar o ridículo das classes dominantes e tento trazer para primeiro plano a luta dos que buscam um lugar ao sol. Essa revisão, portanto, privilegia aqueles raros momentos revolucionários que me parecem o sal desta insossa história do Brasil oficial.
 


 

A partir daí enveredamos pelo tema do conflito de gerações: o que leva cada uma delas a parar, a ir adiante ou a retroceder? Falo-lhe do crítico norte-americano Harold Bloom, que propõe, em The anxiety of influence, uma interpretação freudiana para o caso. Segundo Bloom, todo jovem escritor é um parricida em potencial, quer destruir sua origem, a fonte onde bebeu e onde aprendeu a beber. Zé Paulo vai além, jocoso, curtindo a blague: o jovem poeta quer matar o pai para ficar só com a mãe, de novo solteira...

Conflito de gerações, matar ou morrer... Lembro a José Paulo — e acho que foi só uma associação meio arbitrária— que os jovens poetas da minha geração, aquela que surgiu no início dos anos 60, adotavam o lema rilkeano, segundo o qual você não deve continuar a fazer poesia caso não sinta que morrerá se for impedido de escrever. Antes que ele se manifeste, vou fazendo eu mesmo os comentários: negócio mais adolescente, exagerado, patético... Em todo caso, pergunto-lhe:
 


— Você, Zé, você morreria se fosse impedido de escrever?

— Não, claro que não. Eu só morreria se não me deixassem comer. Agora, a verdade é que se eu não pudesse escrever meus poemas, meus ensaios, minha vida perderia talvez aquilo que possa justificá-la, não aos olhos dos outros, mas aos meus próprios. Há um poeta que aprecio muito, Paul Eluard, que gostava de usar a expressão "razão de viver". É freqüente na sua poesia isso que me parece bem francês, bem do cartesianismo francês, de procurar a razão das coisas. "Raison de vivre"... Eu hoje tenho na literatura, no exercício da criação literária, a minha razão de viver. Minha geração, que é coetânea da voga existencialista, sempre se preocupou muito com a questão do absurdo da existência e sempre achou que a empresa do homem era tentar achar uma justificativa, uma razão de ser, para contrapor a esse absurdo. Aquela coisa do mito de Sísifo, de arrastar o rochedo lá para cima, e ele vindo para baixo... A literatura, para mim, é uma das formas mais elevadas de dar sentido à vida, de lutar contra o absurdo existencial.
 

 

Digo a José Paulo que para os da minha geração, no tocante a isso, o quadro não mudou. Observo que a sua colocação responde implicitamente à pergunta "Por que escrever?", mas como fica a outra pergunta, paralela, "Para quem escrever?".
 


— No caso brasileiro, especificamente, existe uma espécie de autofagia: os poetas mais jovens lêem os poetas mais velhos, que por sua vez vêem naqueles o seu público de eleição. Acho isso um caso de patologia literária. Qualquer poeta que se preze sempre aspirará a ter como leitor o não-poeta, alguém que ele possa trazer para o mundo da poesia, integrando esse mundo no espaço da vida cotidiana.
 

 

Em seguida, ele confessa não ser um leitor entusiasmado de poesia, prefere ler prosa de ficção, gênero em que reconhece uma função pedagógica, de educação sentimental, que não é cumprida pela poesia.
 


— O que a poesia faz, isto sim, é exercer uma pedagogia da linguagem, para mostrar o que fica depois que a linguagem é depurada de todos os excessos, todas as traições. Aquela concepção do Eliot, de que o peta deve zelar pela preservação da língua, para curá-la dos males que a enfermam, sobretudo, nos tempos modernos, a propaganda, tem uma função pedagógica exemplar, porque ensina às pessoas o que é essencial na linguagem, o que é a sua essencialidade. A poesia é a linguagem ultrapurificada, aquela tonelada de minério que, depois de processada, dá uma quantidade mínima, mas extremamente poderosa, de radium. A poesia visa à obtenção desse radium.
 

 

Insisto na questão da poesia que se alimenta de poesia, que está longe de ser um fenômeno brasileiro, mas universal, e proponho focalizá-la do ângulo do criador, não do consumidor. Explico-lhe meu ponto de vista.
 


— Parece que o poeta moderno está condenado a produzir a partir de estímulos fornecidos por outros poemas ou obras de arte em geral. Daí a tendência a se fechar no espaço rarefeito da própria arte. A sua poesia em particular, Zé, me parece livre desse perigo, pois nela é muito forte a presença do cotidiano, como fonte de temas e estímulos. De um lado, você tem a possível atemporalidade da arte; de outro, a banalidade do dia-a-dia, historicamente marcada — o "eterno" e o "efêmero". Na sua poesia, como se dá o diálogo entre um e outro?

— No que você diz há muita coisa bem observada. Isso se pode notar na poesia mais recente, em que a preocupação metalingüística é uma constante: poesia falando de poesia. Tenho a impressão de que isso advém do isolamento do poeta em relação a um público mais amplo. O poeta moderno não tem público, então sua tendência é se refugiar, não na torre de marfim, mas na sua oficina de relojoeiro, e o perigo é se preocupar só com as molas do relógio e não com as horas que ele marque, esquecendo-se de que o relógio existe para marcar horas e não para fazer tique-taque.

— E na sua poesia, Zé, como é que você vê essa coisa na sua própria poesia?

— Na minha poesia, é claro, aparecem essas notas metapoéticas, mas, como você diz, ela se volta para o exterior, as mais das vezes para o cotidiano. Isto porque sempre achei que o isolamento do poeta é patológico, é danoso à sua arte, tão ou mais danoso que a glorificação despropositada. No primeiro caso, ele se transforma numa espécie de lobisomem, a fugir das pessoas; no outro, numa espécie de vedete, que aceita fazer os rebolados mais ridículos para obter aplausos. Mas tenho a impressão de que, no íntimo de cada poeta, existe a nostalgia do leitor. Aí está Baudelaire, que não me deixa mentir: "hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère", e todos nós queremos esse leitor "hipócrita". De modo que eu sempre tive em mente o leitor e procurei, na medida do possível, chegar a um grau, não digo de clareza, mas de acessibilidade que pudesse atrair para a poesia o leitor não-poeta.
 

 

Sinto que, movido pela modéstia, José Paulo está desconversando. Digo-lhe aquilo que julgo estar implícito no seu pensamento, que ele deseja, sim, comunicar-se com o leitor, mas não o bajula, não faz qualquer concessão a respeito. Além disso, sua poesia lança mão de certos expedientes (a extrema concisão, às vezes próxima do hermetismo, a objetividade, a impessoalidade, a aparente frieza racional) que podem dificultar o acesso do leitor. E, a propósito desses expedientes, pergunto-lhe se eles não guardam alguma afinidade com a sua anterior ocupação de químico.
 


— Creio que não. A química representou apenas uma fase na minha vida. Na infância eu gostava muito de ler ficção científica, lembro-me ainda do Suplemento juvenil, de que cheguei a ter o primeiro número: Flash Gordon, Buck Rogers... De modo que esse mundo da ciência química, para mim, se ligava ao mundo da feitiçaria, da magia, era um mundo que sempre me fascinou. E no fundo da casa eu tinha lá um laboratório com meus vidrinhos, meus reagentes, uma verdadeira paixão pela química.

— Talvez sua vocação não fosse a química, mas a alquimia. Daí para a poesia...

— É, pode ser... A verdade é que aquela fase como químico de profissão foi uma época muito feliz da minha vida. Eu estava fazendo alguma coisa que não tinha nada a ver com literatura. Eu continuava a fazer poesia, já tinha publicado, mas o mundo da química era uma coisa e o da poesia, outra. Eu tinha despoetizado a química, que era uma atividade prática, de sobrevivência, enquanto a poesia era a minha cachacinha, minha pintura de domingo, minha mania. Eu já tinha chegado à idade da razão e não misturava as coisas.

— Será que na alquimia dos poemas essas coisas não acabaram por se misturar?

— Bem, talvez a química tenha deixado algum sinal, neste meu gosto da objetividade, do impessoalismo. Mas isso também tem que ver com o temperamento. Sempre fui um pouco avesso à sentimentalidade, à exteriorização excessiva dos sentimentos, sempre fui mais pela discrição, pela autocrítica, a compostura. Tudo isso levado pelo respeito aos outros, para você não colocar os outros a reboque dos seus interesses. Talvez tenha sido isso e está ligado à timidez meridiana da minha personalidade.
 


 

Olho o relógio e fico preocupado. Estamos conversando há quase três horas... Mas vejo um Zé Paulo à vontade, sinceramente empenhado na conversa, que flui sem obstáculos, e parece que indiferente ao tempo que passa. Enquanto procuro esquecer o relógio a conversa muda de rumo. Digo-lhe que os futuros leitores da entrevista, tendo chegado a este ponto, estarão pensando que ele é um superintelectual, que vive e respira literatura vinte e quatro horas por dia, alheio ao que se passa em outras esferas. Ele então fala do seu cotidiano, da casa, das andanças não-intelectuais. Diz que é um grande consumidor de filmes, pela televisão. Como não sai de casa ("Não gosto de sair, sou um animal doméstico, um pequeno-burguês convicto e caseiro"), recebeu de muito bom grado o advento do videocassete.
 


— Adoro filme de terror. Acho o Vincent Price o Vicente Celestino do filme de terror, o que, para mim, é um alto elogio. Gosto muitíssimo de filme policial, mas já não gosto de filme de cowboy, jamais gostei. Acho filme de espionagem muito besta, muito ideológico, maniqueísta. Mas filme de aventura... Capa e espada, por exemplo, filme de pirata... Sou vidrado em filme de pirata.
 

 

Daí ele emendou para a literatura de consumo, dizendo-se fã irrestrito das velhas coleções "Terramarear" e "Paratodos". E foi desfiando o que considera o seu "gosto literário irremediavelmente pervertido": Ponson du Terrail, Alexandre Dumas e tantos outros autores "menores", lidos na infância e na adolescência.
 


— Foi neles que fiz minha iniciação literária e jamais se me apagou da lembrança e da sensibilidade a marca deixada por essas leituras. Hoje, essas reminiscências juvenis começam a aparecer até na minha poesia. Outro dia, por exemplo, fazendo um poema sobre Paris, não pude deixar de me lembrar do Corcunda de Notre-Dâme — do filme com o Charles Laughton e do romanção do Victor Hugo.

— Se entendo bem, Zé, você está sugerindo que uma literatura não pode ser constituída somente de gênios e de obras-primas, não é mesmo?

— Sem dúvida! Acho inclusive que uma das provas da fraqueza da nossa literatura, enquanto sistema, está na falta, entre nós, desse tipo de literatura despretensiosa, de mero entretenimento. Nossos autores só aspiram à imortalidade, só escrevem com os olhos voltados para a Academia ou a posteridade. Eu me lembro de uma das cartas de Monteiro Lobato, em que ele, falando da sua estréia, dizia: "Ou eu arrebento ou nada!". Já nos países onde há um grande público leitor, há também espaço para o escritor mediano, que produz esse tipo de literatura como recreação, sem compromisso, extremamente importante, no sentido de criar um público que depois pode chegar à grande literatura. Uma de nossas falhas é não dispormos, em larga escala, desse tipo de produção literária, o que parece corresponder, simetricamente, à inexistência entre nós, até há pouco tempo, de uma classe média digna do nome.
 


 

Literatura como entretenimento ou como investigação do sentido último da existência; o tempo desfrutado e perdido (perdido?) com passatempos banais ou avidamente aproveitado no esforço de criar — José Paulo fala da alegria com que vem-se empenhando em múltiplas tarefas literárias, desde que se aposentou. O sonho antigo, da literatura em tempo integral, vai-se realizando aos poucos.
 


— Acho que a gente precisa ser fiel, de algum modo, à infância e à juventude. Se você teve algum sonho, na infância ou na juventude, por que não lutar a vida inteira para chegar a realizá-lo, no todo ou em parte? E nós, poetas e escritores, temos um privilégio enorme que é, mesmo depois de aposentados, podermos seguir levando a cabo nossa atividade, sem sair de casa.
 

 

Enquanto saboreamos o segundo cafezinho, trazido por Dora, Zé Paulo continua a falar do tempo de expectativa que antecedeu a aposentadoria. "Hoje, finalmente estou cuidando do meu jardim, como Voltaire recomendava no final de Candide." Digo-lhe que sua poesia, com a idade, vai-se tornando cada vez mais jovem, quer dizer, mais vibrátil, mais enérgica, mais ágil. Pergunto-lhe se ele concorda.
 


— Embora a modéstia me impeça de concordar entusiasticamente, eu discretamente concordo. A poesia, vamos dizer assim, está tão dentro da gente que faz parte dos nossos músculos, do nosso sangue, com uma vantagem: os músculos, com a idade, vão-se tornando mais flácidos, de modo que a poesia, nesse momento, pode até exercer uma ação compensatória. Principalmente se você cuidou, durante a vida, de manter um pouquinho do menino e do jovem, que você foi, vivos dentro de você. Isso nos dá o privilégio de envelhecer menos na obra do que na vida, provando mais uma vez o acerto da frase final do Tristam Shandy, em que o narrador dizia ser muito feliz porque podia viver duas vidas: a do personagem e a dele próprio, narrador.
 

 

Não sei que associação me leva, neste instante, a lhe perguntar se algum de seus livros é o seu predileto. Ele diz que não, nenhum. Predileto é o próximo, o que está por nascer. Observo que seu livro mais recente, Calendário perplexo (1983), mostra uma vontade de organização, de arranjo sistemático, aquilo que João Cabral chama de "livro vertebrado", que não se nota nos demais. Pergunto se este é o rumo que vem tomando sua poesia.
 


— É, minha tendência, hoje, é mais para o livro vertebrado. Estou trabalhando agora no próximo livro, que já está adiantado (já tem nome: A poesia está morta mas juro que não fui eu) e vai-se compor de quatro séries básicas de poemas. A primeira — a gente tem que pagar o tributo à moda— será de poemas sobre poesia, um deles aliás, que se chama "Acima de qualquer suspeita", tem esse verso que dá título ao livro; há uma outra série, "Geográfica pessoal", onde estão minhas impressões de viagem, destiladas alquimicamente em pequenos epigramas; há uma outra série que se chama "Des-histórias", flagrantes históricos vistos sempre de um ângulo crítico, irônico; e finalmente uma série já praticamente pronta, o "Livro dos provérbios", brincadeiras poéticas modificando provérbios já existentes ou criando outros.
 


 

Não consigo evitar o relógio: quase seis horas da tarde. Digo a Zé Paulo que fazer entrevistas assim, graças a ele, é muito mais fácil do que eu pensava. Conto-lhe das minhas indecisões de entrevistador de primeira viagem e ele me consola dizendo-se marinheiro de primeira entrevista — pelo menos nunca tinha concedido alguma que fosse além de vinte ou trinta minutos. Concluímos então que é preciso colocar um fecho nisso. E não me ocorre nada melhor do que forçar um pouco José Paulo Paes a se dirigir expressamente aos mais jovens, ainda que à custa de uma pergunta banal:
 


— Se algum jovem candidato a escritor o procurasse, em busca de conselhos, você lhe diria o quê?

— Diria que ninguém precisa de conselho, que todo mundo sabe errar sozinho... em princípio. Depois diria que ele precisa assumir a poesia como um risco, fazer o melhor que possa e sair a campo sozinho, sem muletas de gente que ele suponha mais experiente. Porque essas muletas são, as mais das vezes, desfiguradoras e desestimulantes, o sujeito acaba perdendo a capacidade de andar sozinho. A prática da literatura é um risco que o sujeito tem que assumir como único responsável. A única forma de conselho e aprendizagem a que ele deve recorrer é a dos livros. Todo jovem tem certos poetas a quem admire; ele que procure comparar o que faz ao que esses poetas fizeram. Numa primeira fase, não vejo saída senão a imitação; no começo, você tem que procurar os poetas mais afins do seu temperamento e tomá-los como horizonte de referência para o seu aperfeiçoamento, seu trabalho de limpeza do texto. E há uma segunda fase em que você deve livrar-se da sombra, da tutela esmagadora desses mestres. E deve, tanto quanto possível, evitar as influências pessoais, diretas, de amizade... De amizade não, a amizade é muito fecunda, é muito bom você poder discutir com pessoas do mesmo ofício, da mesma geração, suas perplexidades, sonhos, ambições. Mas não deve se deixar esmagar nem se deixar atrelar pela personalidade de algum amigo talvez mais experiente ou mais sábio. Se você precisar de mestres, vá procurá-los nos livros: são mestres mudos e não chateiam a gente.
 

 

Gravador desligado, missão cumprida. Vou recolhendo a parafernália que havia espalhado pelo escritório e me preparo para sair, mas José Paulo insiste e seguimos proseando. Meia hora depois, por fim me despeço. O relógio marca 6:45 horas. Roubei quase cinco horas do tempo de José Paulo Paes. Não fosse minha intromissão e ele já teria concluído a tradução do poema de Eluard; ou encontrado a palavra exata para aquele seu poema ainda em estado de oficina; ou anotado uma intuição sibilina sobre a poesia goliárdica... Resta o consolo de que o tempo subtraído ao escritor acabou por se transformar neste depoimento, agora entregue a seus leitores habituais — e muitos, muitos outros que José Paulo merece conquistar.

 


Uma versão resumida desta entrevista foi publicada no Jornal da Tarde, São Paulo, 19/7/1986, com o título "A poesia e a vida na obra de José Paulo Paes". A versão integral, com o título definitivo "Meia Palavra Inteira", foi inserida no livro de ensaios de Carlos Felipe Moisés Literatura para quê? (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996, págs. 125-140)
 


Leia obra poética de José Paulo Paes

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

Início desta página

Maria da Conceição Paranhos