Carlos Felipe Moisés
PROUST,
UM POETA FIN-DE-SIÈCLE
A invulgar repercussão de À la
recherche du temps perdu, já a partir da publicação do primeiro
volume, Du côté de chez Swann, em 1913, condenou por longo tempo ao
esquecimento o livro de estréia de Marcel Proust, Les plaisirs et
les jours,1 volume em que o autor reunira, em 1896, aos 25 anos de
idade, uma série de textos esparsos. Não foi uma entrada triunfal,
apesar da edição bem cuidada: 1 500 exemplares, 50 dos quais fora do
comércio, capa dura, papel de luxo, ilustrações originais de
Madeleine Lemaire e quatro partituras de peças para piano,
especialmente compostas por Reynaldo Hahn. Edição não só bem
cuidada, mas bem respaldada pelo prefácio de Anatole France, figura
de grande prestígio na época, que chama a atenção para “o encanto
raro e a graça fina”, “o maravilhoso espírito de observação”, “a
inteligência ágil, penetrante e verdadeiramente sutil”, e outras
qualidades do jovem escritor. Mas isso não foi suficiente para
evitar que, durante anos, o editor, Calmann Lévy, se queixasse de
não saber o que fazer com as centenas de exemplares encalhados em
sua oficina.
A crítica, se não chegou a ser
inteiramente negativa, não concedeu ao estreante a acolhida
esperada. Paul Perret, por exemplo, escrevendo para o jornal La
Liberté, limitou-se a ironizar, a partir do título (que Proust tomou
de empréstimo a Hesíodo, Os trabalhos e os dias): “Os quadros tão
variados do senhor Marcel Proust desenham um mundo em que não se
trabalha nem se sofre. Nada senão prazeres, que devem ser
suficientes para realizar a travessia dos dias”. Léon Blum,
igualmente irônico e dúbio, numa resenha para La Révue Blanche, de
que Proust também era colaborador, dirige-se “afetuosamente mas não
sem severidade” ao colega, para destacar “a destreza de pensamento
que subjaz a esse livro gracioso e agradável” e conclui: “estréia
tão feliz, tão fácil” – os mesmos adjetivos utilizados por Charles
Maurras, com o acréscimo de “brilhante”, embora este outro crítico
prossiga com elogios sinceros.
Mas tudo isso são delicadezas,
comparadas ao azedume de Jean Lorrain, em artigo também de 1896,
para Le Journal: “Qualquer um, hoje, se considera escritor e vem
incomodar a imprensa e a opinião pública com sua pequena glória, a
golpe de jantares, influências mundanas, pequenas intrigas de
ventarolas.(...) Todos os esnobes querem ser autores.(...) Os
prazeres e os dias, do senhor Marcel Proust: melancolias graves,
frouxidões elegíacas, pequenos nadas de elegância e sutileza,
ternuras vãs, flertes inanes em estilo precioso e pretensioso”. O
impacto foi tal que Proust, ofendido, mandou desafiar o crítico para
um duelo. Testemunhas das duas partes determinaram que a arma fosse
a pistola, um tiro para cada contendor. Na data aprazada, pequena
platéia reunida nos arredores de Paris, dois tiros foram disparados,
nenhum acertou o alvo. Mas não devemos concluir daí que o jovem
escritor e seu crítico fossem indivíduos especialmente belicosos e
com tão má pontaria. O mais provável é que tenham apenas dado
cumprimento a um ritual.
Paris já era, então, a capital da
moda, ou das modas, que logo se espalham por toda a Europa, e uma
delas é justamente o duelo.2 Era dessa forma que homens de bem, isto
é, bem-nascidos e/ou bem-formados, resolviam suas divergências. Não
se trata de belicosidade, mas de honra – atributo faltante à horda
de burgueses e proletários, e de camponeses recém-atraídos pela
metrópole, que por isso mesmo costumam recorrer à vulgaridade do
murro e da paulada para decidir, na primeira viela escura, suas
desavenças. O duelo público e legal é um dos expedientes invocados
pelo homem de bem, para distingui-lo da turba dos mal-nascidos e
mal-formados. Como pertencer a esta última condição não agrada a
ninguém, e como conseguir um padrinho e uma pistola, ou espada, não
é tão difícil assim, todos passam a duelar – muitas vezes pro forma,
simples encenação imposta pela elevada posição dos litigantes,
sobretudo quando essa posição não preexiste (nem sobrevive) ao
litígio: é só um trunfo a ser supostamente conquistado pelo recurso
à “nobreza” do expediente. Se um dia chegou a ser conseqüência, o
duelo foi também largamente utilizado como causa.
No que diz respeito à nascente
carreira do autor, esses dois tiros perdidos no ar foram só mais um
episódio, na seqüência do malogro da estréia, mas razão suficiente,
quem sabe, para que ele só voltasse a público dezessete anos depois,
com Du côté de chez Swann, que então lhe proporcionou a consagração
almejada desde o início. Compreensível, portanto, que Proust
adotasse, em relação ao primeiro livro, uma atitude oscilante. Em
carta datada de 1921, ao crítico Paul Souday, ele é taxativo: “Não
fale jamais, em seus artigos, de Os prazeres e os dias. Eu os
renego”. Por volta de 1906, porém, ele afirmara: “Tenho a impressão,
no geral, de não escrever tão bem como à época de Os prazeres e os
dias”. E o juízo será retomado em 1918: “Os prazeres são mais bem
escritos, ou menos mal, que Swann”. Tal oscilação fez que ele se
recusasse a reeditar a coletânea, apesar da insistência de amigos e
editores. Só aceitaria fazê-lo quando tivesse concluído À la
recherche, mas veio a falecer em 1922, antes mesmo da publicação
integral da obra, não chegando a ver a segunda edição de Os prazeres
e os dias, saída em 1924. E talvez não se surpreendesse com o fato
de que, três anos depois, o livro outrora repudiado, mas
secretamente amado, já tinha esgotado várias edições. A fortuna de
Os prazeres e os dias, enfim, acabou sendo bem mais auspiciosa do
que o fracasso da estréia permitiria imaginar.
Em 1912, André Gide havia cometido um
erro editorial clamoroso, eco tardio de reações intolerantes como a
de Jean Lorrain. Consultor da Gallimard, Gide recusou Du côté de
chez Swann, não chegando sequer a ler o manuscrito, sob a alegação,
como mais adiante confessou, de que o autor era “um esnobe, um
diletante e um mundano”. Mas teve várias oportunidades de se
penitenciar. Uma delas foi o número especial da Nouvelle Révue
Française, de janeiro de 1923, dedicado a Proust. Em sua colaboração
para o volume, na passagem em que se refere a Os prazeres e os dias,
o escritor se recrimina por não ter reconhecido, na altura, “as
qualidades desse livro delicado, aparecido em 1896. (...) Sim, tudo
o que admiramos em Swann ou em Guermantes já aí se encontra,
sutilmente e como que insidiosamente proposto”. O juízo confirma o
que vinha sendo ventilado desde 1913 e decreta que o destino de Os
prazeres e os dias é ser retroativamente venerado, como uma espécie
de À la recherche em embrião.
A edição de 1896 abre com o elogio
fúnebre de Willie Heath, amigo de Proust, que acabara de falecer, e
prossegue por dez seções, de extensão e intuitos variados: contos
breves, crônicas estilizadas, narrativas ou fragmentos de narrativas
mais desenvolvidas. É o Proust prosador, já muito próximo daquele
que conhecemos, a pesquisar incansavelmente umas variedades de
estilo, e a experimentar cenários e entrechos, temas e atmosferas,
tipos e situações – caminhos da obra futura. Mas uma dessas seções,
“Portraits de peintres et musiciens”, é surpreendente: trata-se de
oito poemas cuidadosamente metrificados e rimados. No entanto, como
fazem parte do período logo conhecido como o do “primeiro Proust”,
vale dizer, o do proto-romancista, nunca houve muito que dizer de
sua poesia, faceta virtualmente desconhecida, hoje, até mesmo de
seus leitores mais fiéis.
O fato é que, entre 1890 e 1910, o
futuro grande romancista versejou com alguma freqüência, tendo
criado boa quantidade de versos de circunstância: dedicatórias ou
agradecimentos; pastiches, galanteios e divertimentos; recados
íntimos ou comentários bem humorados, mais ou menos bem
metrificados, que acompanhavam algumas de suas cartas. (Proust, como
se sabe, foi um missivista obcecado.) Mas nunca voltou a publicar
poesia, dando a entender que, à exceção daqueles “Retratos de
pintores e músicos”, não chegou a pôr nenhum empenho literário nessa
produção, que se manteve praticamente inédita até 1982, quando foi
enfim extraída da volumosa correspondência do autor, e de arquivos
mantidos pelos herdeiros, e reunida sob o título Poèmes.3
O prefácio dessa edição é taxativo:
“Os poemas deste volume nos fazem adentrar a familiaridade do homem
e não do escritor”. Mas isso não se aplica às oito composições
primitivamente incluídas em Os prazeres e os dias, pois aí se
estampa, indefectível, não a familiaridade do homem, “em sua
espontaneidade”, como assevera o mesmo prefácio, mas a estudada
fisionomia do escritor. A poesia de circunstância, que caracteriza a
maior parte do volume, tem em si grande interesse, quando menos
porque nos levaria a surpreender o escritor em sua intimidade,
facultando o acesso ao rosto que ele exibiria quando não estivesse
posando para o voyeurismo dos leitores ou para a posteridade – desde
que “espontaneidade” não fosse, no caso, apenas outra espécie de
pose. Seria, de qualquer modo, uma investigação proveitosa, mas
preferi, neste artigo, concentrar a atenção na poesia
intencionalmente “literária” de Proust, esses preciosos retratos de
artistas, meio escondidos, e por várias décadas esquecidos, no livro
de estréia.
Digamos, de início, que os oito
poemas, ainda que trabalhados e tratados com especial carinho pelo
autor, não chegarão a entusiasmar o leitor mais exigente. Não que se
trate de má poesia, nem medíocre ou canhestra, mas Proust comparece,
aí, mais como versejador dedicado do que como poeta genuíno, embora
a tentativa não fique nada a dever à média da versejação
parnasiano-simbolista. O juízo severo decorre do fato inarredável:
trata-se do autor de uma obra-prima, um dos marcos da modernidade,
em matéria de prosa de ficção. Assim, não é fácil conceder-lhe que
incursionasse pela poesia sem a “obrigação” de realizar, em versos,
proeza semelhante. Desse ângulo, a conclusão é que o poeta está bem
aquém do ficcionista. Ao contrário do promissor e instigante
exercício empreendido nas demais seções de Os prazeres e os dias, os
poemas não tiveram desdobramento significativo nem permitem que se
veja neles nada além da aplicação bem comportada das lições e
receitas dominantes na poesia das últimas décadas do século xix: a
disciplina parnasiana entremeada, aqui e ali, da atmosfera
simbolista convencional, seja na musicalidade melodiosa, seja no
gosto brumoso e nevoento dos crepúsculos.
Os poemas giram em torno de figuras
(quatro pintores e quatro músicos) das quais Proust esboça os
retratos artísticos, isto é, retratos compostos a partir das
respectivas obras e não das biografias. Os modelos próximos são
conhecidos: Théophile Gauthier, um dos expoentes do parnasianismo, e
Charles Baudelaire, que já haviam lidado com a afinidade e a
cumplicidade entre poesia e música, poesia e pintura. A experiência
gira em torno de lugares comuns postos a circular pela estética
pós-romântica: a entronização do belo como valor supremo, o sonho da
fusão ou da correspondência de todas as artes. Mas vamos aos poemas,
começando por uma rápida incursão por seus aspectos formais. (No
final deixarei clara a razão de começar por aí.)
O metro utilizado regularmente nas
oito composições é o alexandrino, com seu andamento solene e
espraiado e sua elasticidade propícia aos longos períodos repletos
de orações intercaladas: estrutura versificatória e estrutura
sintática se casam, na direção do descritivismo sentencioso. Já a
organização em estrofes é irregular, com predomínio do quarteto, de
rimas cruzadas (abab) ou interpoladas (abba). É irregular, também, o
esquema de rimas, sempre presentes, mas empregadas com grande
liberdade: às vezes, rimam, em seqüência, três ou até quatro versos
– como o martelo malhando a bigorna, para usar um símile de gosto
bilaquiano. Mas, ao contrário dos parnasianos ortodoxos, o jovem
Proust não faz questão de rimas raras, satisfazendo-se, por vezes,
com sonoridades fáceis como couleur/fleur (cor/flor), incertain/lointain
(incerto/longínquo), flots/sanglots (ondas/queixumes), victoire/memoire
(vitória/memória) etc. O arsenal do poeta, de fato, no que se refere
a engenho e inventividade de expressão, não está à altura da
versatilidade do prosador. Mas o que pode nos interessar mais de
perto, nesses poemas, talvez não esteja na esfera poética,
explícita, e sim nos seus subjacentes liames estéticos: a escolha
dos pintores e músicos, o teor dos retratos aí esboçados e certo
temário recorrente, que o ficcionista-poeta extrai dos seus
artistas, ou antes, dos motivos com que estes trabalham, em
determinados quadros e peças musicais.
A escolha dos pintores já revela a
primeira surpresa: três holandeses (Antoine Van Dyck, 1599-1641;
Albert Cuyp, 1620-1691; Paulus Potter, 1625-1654) e só um francês
(Antoine Watteau, 1684-1721), delimitando um arco histórico que vai
do início do Barroco ao Rococó. Comum aos quatro, a paisagem natural
aparece, em Van Dyck, com uma dramaticidade que se intensifica em
Cuyp e Potter, mas desaparece em Watteau, substituída pelo idílio
campestre. O primeiro foi chamado “pintor de príncipes”, tal a
quantidade de nobres que retratou; os outros dois holandeses são
especialistas em paisagens com animais (Cuyp tem preferência por
touros e cavalos); Watteau é pintor de delicadas cenas pastoris – e
são essas, basicamente, as características destacadas nos poemas.
Os motivos pictóricos, enfim, parecem
distantes do gosto estético vigente na época. O leque era amplo:
Impressionismo, Pós-impressionismo, Expressionismo, Pontilhismo,
Fauvismo etc. A julgar pelas escolhas, Proust parece alheio à
pintura do seu tempo. Mas, se insistirmos por aí, estaremos
incorrendo na falácia retroativa, já mencionada, que nos levaria
desta vez a indagar, equivocadamente: se nosso autor foi tão moderno
e avançado em matéria literária, por que não haveria de fazer o
mesmo, em matéria de pintura? Aparentemente, não fez. Seu gosto,
nesse particular, é conservador; tais pintores talvez lhe interessem
por outras razões, que não as da afinidade estética. Além do quê,
Proust parece ter escolhido o que estava mais à mão.
Os quadros referidos nos poemas (“La
promenade” e “Départ pour la promenade”, de Cuyp; “Prairie avec
trois boeufs et trois moutons” e “Petite auberge ou Chevaux à la
porte d’une chaumière”, de Potter; “L’indifférent” e “L’embarquement
pour Cythère”, de Watteau; “Charles 1er d’Angleterre” e “L’homme
au pourpoint”, de Van Dyck) estavam quase todos expostos no Museu do
Louvre, freqüentado por Proust desde os tempos de estudante no Liceu
Condorcet e, depois, na Faculdade de Direito e na Escola Livre de
Ciências Políticas, entre 1888 e 1894. E na composição dos poemas
guiou-o também, com mão precisa, o pintor, romancista e crítico de
arte Eugène Fromentin (1820-1876), autor de uma alentada introdução
à arte, Maitres d’autrefois, leitura obrigatória de toda uma
geração, já que a maioria dos exemplos comentados no compêndio
integrava o acervo do Louvre.
O poema dedicado a Cuyp, por exemplo,
remete quer aos quadros aí referidos, quer ao comentário
correspondente de Fromentin, que fala do “todo banhado pelo sol e
envolvido nessas ondas douradas que são, por assim dizer, a cor
habitual de seu [de Cuyp] espírito”. Mais adiante, o crítico alude à
“atmosfera dourada de Cuyp e sua engenhosa tendência a colocar sob
esse banho de luz e de ouro barcos, vilarejos, cavalos e
cavaleiros”. Nos demais poemas, continuam visíveis os ensinamentos
de Fromentin.
Embora sejam retratos aparentemente
impessoais, delineados a partir de impressões sugeridas por formas e
cores, Proust parece estar à procura da “alma” dos artistas. Os
elementos pictóricos destacados são os temas e motivos, logo
associados a conteúdos. O resultado, em última instância, é uma
série de retratos psicológicos e morais – todos, curiosamente, muito
assemelhados, vibrando nos quatro o mesmo denominador comum: prazer
de viver, melancolia, resignação, altivez e orgulho, certo
distanciamento aristocrático.
O leitor não tem como escapar à
conclusão: o retratado não será nem Watteau nem Van Dyck, nem Potter
nem Cuyp, mas o próprio Proust. A não ser que estejamos, mais uma
vez, projetando sobre esses poemas de juventude o conhecimento que
temos da “alma” proustiana, tal como esta se nos oferece no romance.
Algo semelhante pode ocorrer com os
retratos dos músicos, cuja escolha, aliás, talvez seja menos
surpreendente: dois alemães (Christophe Willibold Gluck, 1714-1787;
Robert Schumann, 1810-1856), um austríaco (Wolfgang Amadeus Mozart,
1756-1849) e um polonês (Frédéric Chopin, 1810-1849). O arco
histórico se estende um pouco, chegando agora, com ênfase, ao apogeu
do Romantismo, na vertente lírico-sentimental de Schumann e Chopin,
tendo reforçado a presença clássica, com Mozart, e acrescentado a
retumbância dramática da ópera de Gluck. O repertório continua
conservador, e seria inútil insistir no mesmo ponto: a ausência de
contemporâneos de Proust, como Debussy, Franck ou Fauré. Mais
surpreendente seria a ausência de outras predileções proustianas,
como Wagner e Beethoven, mais de uma vez mencionados, com apreço, em
À la recherche, ao lado dos demais. Se o acervo do Louvre e as
lições de Fromentin guiaram a escolha dos pintores, a dos músicos
parece ter seguido rumos variados, incluindo-se aí a influência de
Reynaldo Hahn, um mozartiano apaixonado, grande amigo e confidente
de Proust, a quem, aliás, vários dos poemas de circunstância são
dedicados.
No caso da pintura, o figurativismo
faculta ao poeta o apego a motivos, paisagens e até personagens,
vale dizer: referências muito específicas (como os pombos, a água
que tremula, o charco ou os cavaleiros, do poema dedicado a Cuyp),
tomadas como estímulos para descrições que seguem no encalço daquele
conteúdo moral-psicológico, em função do qual o propriamente
pictórico é posto de lado. Mas, no caso da música, qual será o
procedimento adotado? A resposta imediata seria: o poeta deve
apegar-se às massas sonoras, aos timbres, ao andamento melódico, aos
compassos e harmonias. Tais ingredientes estariam, para estes
poemas, assim como formas e cores estão para os dedicados aos
pintores. Mas Proust só tentou esse caminho, e assim mesmo
parcialmente, no retrato do compositor polonês, “Chopin”.
A primeira parte do poema secciona os
ritmos largos do alexandrino, pela multiplicação de cesuras –
chegando ao seccionamento máximo no quarto verso, nervosa sucessão
de acordes breves: “Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou
berce” (literalmente: sonha, ama, sofre, grita, aquieta, encanta ou
embala). O efeito busca sugerir, no plano verbal, uma harmonização
entrecortada, irisada e vibrátil, afim da arte de Chopin. Aqui, ao
contrário do que ocorre nos poemas consagrados à pintura, estrutura
musical e estrutura poemática se consorciam, em busca de
correspondência e cumplicidade. Mas o procedimento é abandonado da
metade do poema em diante, que recorre à biografia do compositor (o
único caso, aliás, em que isso acontece). Já nos outros três
retratos de músicos, Proust lança mão de um expediente menos ousado:
o conteúdo, em vez da forma. O “conteúdo” da música? Bem, é que o
jovem poeta recorre a um pequeno truque.
O poema inspirado em Gluck (“Gluck”)
mescla alusões a personagens, cenários e entrechos de algumas
óperas, como Alceste, Armida, Ifigênia em Aulide e Orfeu e Eurídice,
e passa ao largo da música propriamente dita. Para retratar Schumann,
no poema assim nomeado, Proust cita explicitamente os títulos de
várias peças: Noite sobre o Reno, O soldado, Meu jardim, Carnaval,
Devaneio, e isso é tudo o que temos, aí, de schumanniano. E, no caso
de Mozart, Proust recorre aos entrechos e personagens (mas não às
estruturas musicais) de óperas como As núpcias de Fígaro, D. Juan e
A flauta mágica, para extrair daí as referências nas quais os versos
de “Mozart” se apóiam.
O leitor familiarizado com essas
obras identificaria, a cada passo, ainda que os poemas não tivessem
título, o retrato do seu compositor preferido. Mas não chegaria a
ter, na construção do poema, o contraponto literário da composição
musical, ou seja, a tentativa de fusão ou correspondência
poesia-música, que o retrato de Chopin, pelo menos em parte, busca
realizar.
Isso permite retomar a questão da
“qualidade” bem como a do “enquadramento” estético desses poemas. No
conjunto ressalta, aqui e ali, a impressão de artifício: depois de
pronta a casa, os andaimes continuam à mostra. A impressão é mais
forte nos retratos de músicos, menos persuasivos que os dos
pintores, talvez porque, para Proust, o casamento entre significado
e imagem visual seja mais viável que o consórcio som-significado. A
julgar pelo conjunto dos oito retratos, a figuração pictórica é mais
favorável à exposição ou sugestão de significados do que a estrutura
musical. Por essa razão, quem sabe, é que a correspondência
som-significado só tenha sido tentada em um dos retratos de músicos;
nos outros três, a correspondência se dá entre poesia e
“literatura”, isto é, entre os poemas e os títulos ou os libretos
das obras musicais.
Por outro lado, ainda no capítulo da
“qualidade”, se o leitor exigente, como lembrei antes, pode ficar
decepcionado com a performance poética do grande romancista, esse
mesmo leitor, no outro extremo, pode ficar maravilhado, bastando
para isso que alinhe entre os admiradores incondicionais da arte
proustiana, para os quais seria inconcebível ter saído da pena do
escritor qualquer coisa menos que genial. Exageros à parte, quem
sabe podemos chegar a um acordo, admitindo que os oito poemas,
independentemente da análise que estou propondo, são admiráveis, em
vários níveis.
Um dos motivos da admiração diz
respeito a seu “enquadramento” estético. O arco histórico
Barroco–Rococó–Romantismo na verdade não passa de referência
extrínseca, pouco relevante. A identidade estética desses textos,
enquanto realização poemática, é uma só, invariável, quer Proust
esteja lidando com o barroquismo de Van Dyck, o neoclassicismo de
Watteau ou o romantismo de Schumann. Esses poemas, na verdade, não
têm nem almejam ter nada de barroco, nada de clássico, neoclássico
ou romântico – a não ser que se entenda o peculiar ecletismo
estético da virada do século xix para o xx como mescla de todos
esses estilos, mais alguns, não contemplados pelas escolhas de
Proust, como o Realismo e o Naturalismo, além dos estilos
propriamente “modernos”, como o Decadentismo, o Simbolismo, o Art
nouveau e outros.
A constatação, óbvia, já foi feita: o
jovem poeta, interessado em músicos e pintores, parece inteiramente
alheio a seu tempo. Enquanto uma rumorosa revolução, artística e
social, grassa em seu redor, Proust ou se refugia nas salas do
Louvre e nas páginas de Fromentin, para tranqüilamente contemplar
telas barrocas; ou nos recolhidos saraus de Madeleine Lemaire, e
outros, para se dedicar à fruição de música romântica. Mas, nos oito
exercícios poéticos resultantes, deixa entrever o seu
auto-retrato... Talvez a relação entre esses poemas e seu tempo não
seja tão óbvia quanto parece. Não há como resistir à tentação de
observá-la mais de perto.
O período compreendido pela produção
poética proustiana se estende de 1890 a 1910, quando um século morre
e outro desponta: fin-de-siècle.4 De um lado, a avalanche de
novidades que rapidamente vão definindo o perfil da vida “moderna”:
o trem, o bonde, o ônibus, o metrô, os elevadores, o velocípede e o
aeroplano (locomover-se a grandes distâncias, em fantásticas
velocidades, passa a ser uma possibilidade para qualquer um, embora
uma realidade só para poucos); o telégrafo, o telefone, o teatrofone,
o gramofone, o fonógrafo, o celulóide, a fotografia e o
cinematógrafo (ninguém mais está confinado à sua casa ou à sua vila:
todos podem comunicar-se com o mundo); a eletricidade, a lâmpada
elétrica (por fim, o banimento das trevas) e, claro, os relógios (a
hora comum, a mesma hora à disposição de todos: o mundo
sincronizado) – tudo isso apoteoticamente exibido na grande
Exposição de 1900, de Paris.
De outro lado, no plano estético,
outra avalanche, a das várias correntes contemporâneas, que se
misturam e se precipitam, na mesma velocidade em que o mundo se
transforma: Expressionismo, Pontilhismo, Fauvismo, Cubismo, música
atonal, Dodecafonismo, Futurismo, Dadaísmo; e de mistura com outras,
vindas de longe, mas surpreendentemente ainda atuantes: Barroco,
Classicismo, Rococó, Romantismo, Realismo, Naturalismo.
Fin-de-siècle, em suma, é sinônimo de pressa, heterogeneidade e
promiscuidade, sugerindo que o período é qualquer coisa como uma
enorme e desgovernada estação ferroviária aonde vão chegando várias
composições que não deveriam estar ali, que já deveriam ter cumprido
seu itinerário décadas ou séculos atrás, mas insistem em seguir
adiante, misturando-se a outras, apenas prontas para zarpar. Os
passageiros, atônitos, não sabem em que composição embarcar: se nas
que estão partindo para o futuro, se nas que estão chegando do
passado. Não sabem também, ao certo, se aquelas não poderão levar de
volta a este, nem que rumo seguirão, para frente ou para trás, as
locomotivas do passado. Não sabem tampouco se algumas ou todas não
conduzirão a lugar nenhum. A sensação é de que o grande comboio da
História perdeu o rumo pausado que conhecera até então, os caminhos
se multiplicaram e todas as viagens se tornaram possíveis,
simultaneamente, em aceleração vertiginosa: uma convincente e
perturbadora imagem do desconcerto do mundo, em suma, já impregnada
da euforia semi-alucinatória que caracterizará as grandes conquistas
da vida “moderna” – em relação à qual, aliás, como afiança Marshall
Berman, “dizer que está caindo aos pedaços é dizer que está viva e
em boa forma”.
Vertigem será, com efeito, a palavra
adequada para definir o espírito finissecular: vertiginosa é a
euforia diante do feérico espetáculo do novo que anuncia o radiante
esplendor do nosso futuro; igualmente vertiginoso é o desespero
diante da melancólica evanescência de tudo: qualquer conquista,
qualquer avanço será imediatamente tragado, para ceder lugar a mais
avanços e conquistas. E nada deixará rasto.
Não é tentador imaginar que esses
oito retratos de pintores e músicos, com sua métrica refinada e seus
motivos aristocráticos, representam uma sutil reação diante desse
quadro desconcertante? Aparentemente alheio à vertigem, Proust
estaria esboçando, nesses poemas, a postura de que não abrirá mão
daí por diante: a melhor maneira de estar atento ao presente é
transformá-lo em puro olhar e mergulhar, com ele, no passado –
talvez por sentir, como o fará Drummond, anos mais tarde, que “o
passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os olhos
ainda cheios de presente. As linhas, cores e volumes de outrora, tão
brutalmente distintos dos de hoje, ofendem, machucam a nossa
sensibilidade. (...) Enfim, depois de algum tempo o espanto, o
susto, a dor se confundem e o espírito da gente se dissolve no
passado”.5 Esse voltar-se para o passado com os olhos carregados de
presente não se deixa impressionar pelos avanços, em si, mas se
concentra naquilo que fica ou pode ficar, depois que estes tiverem
cumprido sua função: aquele quase-nada de permanente, que pode ser
entrevisto no efêmero.
Para Proust, é tudo uma questão de
olhar (“A verdadeira viagem não consiste em chegar a novas terras,
mas em ver com outros olhos”), e de estilo. Para ele, a vertigem do
presente se resolve no acentuado predomínio do ornamental e na
voluptuosidade dos sentidos, com seu tanto de barroquismo art
nouveau, do qual ele fixa a novidade da atração pela assimetria. Do
ponto de vista estético, este item, o da assimetria, é decisivo, e
está patente na estruturação estrófica dos oito poemas e, em
particular, nas relações que aí guardam, entre si, a estrutura
estrófica, o esquema de rimas e a estrutura sintática. Mas, chegados
aqui, talvez seja o momento de desistir desse largo e ilusório vôo
rasante aos tempos de Marcel Proust fin-de-siècle, e retornar aos
detalhes dos seus poemas. Para ser preciso, um só detalhe, o da
assimetria, detectável nos seus expedientes versificatórios.
O retrato de Paulus Potter, por
exemplo, é constituído de um só bloco de doze versos, assim como o
retrato de Cuyp. Se houvesse simetria, poderíamos pensar numa
sucessão de três quartetos, digamos, ou dois sextetos, ou outras
combinações, não na dependência de espaçamento maior entre
determinados versos, mas latentes no esquema de rimas. Este, no
entanto (nos dois poemas), não conduz a nenhuma das “partições”
possíveis e nem sempre coincide com a estrutura sintática. Jogo
semelhante se reproduz nos demais poemas, reafirmando a assimetria
como o timbre forte das composições – exceto no retrato de Gluck,
regular e uniforme, do início ao fim.
A sutileza está em que é uma
assimetria discreta, sabiamente disfarçada pela regularidade do
metro alexandrino. Fosse mais ostensiva, Proust talvez chegasse ao
verso livre, mais afim do gosto art-nouveau que, conforme sugeri,
rege o seu “enquadramento” estético.6 Ou então, caso ele tivesse
optado por regularidade estrófica e isomorfismo entre esquema de
rimas e estrutura sintática (simetria, em suma), aí sim poderíamos
afirmar que esses poemas são inteiramente alheios ao seu tempo. O
fato de o escritor cultivar seus pintores barrocos ou seus músicos
românticos, no mesmo momento em que os mais destacados de seus
contemporâneos, como Marinetti, preparam-se para derrubar, a golpes
de picareta, todos os museus do mundo, não quer necessariamente
dizer que, em matéria de música ou pintura (ou literatura), Proust
estivesse “desatualizado”. Seus poemas, de ar sereno e um tudo-nada
irônico, parecem segredar: a vertigem aí fora?7 Modismos, nada além
de modismos (“Moda é o que sai de moda”, como dirá Jean Cocteau),
precioso tempo perdido, antes mesmo de chegar a existir. A reação
proustiana, subentendida nesses poemas, talvez esteja insinuando que
o espírito moderno mais consistente e duradouro só pôde ser forjado,
exatamente naquele instante de vertigem entre dois séculos, graças à
atenção paradoxalmente respeitosa e revolucionária concedida aos
clássicos e à tradição.
Escrever? Viver? Exercícios de
estilo, diria Proust, mas a um só tempo distantes e apaixonados, no
encalço, quem sabe, de algo menos precário que a brilhante esteira
de frivolidades resultante da estupidez pretensiosa ou da
iconoclastia gratuita – como podemos ler em seus intrigantes
retratos de pintores e músicos.
Notas
[1] A fonte a que recorri foi a edição organizada por Thierry Laget
(Gallimard,1993), que contém ampla documentação relativa à fortuna
crítica da obra. (A tradução brasileira, Os prazeres e os dias, sob
a chancela da Editora do Brasil, está no prelo.)
[2] France, fin-de-siècle, de Eugen Weber (Harvard University Press,
1986), contém minucioso registro a respeito dessa e de muitas outras
modas do período.
[3] Volume organizado por Claude Francis e Fernande Gontier para a
coleção “Cahiers Marcel Proust” (2a série, no 10), da Gallimard, que
vem recolhendo, há anos, inéditos de Proust, bem como estudos a seu
respeito. (A 1a série, entre 1927 e 1935, abrange 7 títulos; a 2a,
iniciada em 1971, já reuniu 14.)
[4] Além do já mencionado livro de Eugen Weber nota 2), France
1848-1945: anxiety and hypocrisy (Oxford University Press, 1981), de
Theodore Zeldin, traz também valiosas informações sobre o período.
[5] - Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas, Americ-Edit,
1944, pp. 148-149. (Drummond traduziu Proust: A fugitiva/Albertine
disparue, Globo, 1956.)
[6] - Ao verter os poemas, a opção pelo verso livre, que brota
naturalmente de uma tradução mais literal, teria realçado a
assimetria. Mas preferi manter fidelidade a métrica e rima, na
tentativa de reproduzir os efeitos do casamento som-significado,
mesmo correndo os riscos, aqui e ali, de uma tradução/adaptação.
[7] - Theodore Zeldin, na obra já citada (pp. 52-58), estabelece
curiosas relações entre reclusão, solipsismo, misoginia e (pre)conceitos
de classe, no caso de Proust.
Leia "Retratos de
pintores e músicos" - oito
poemas de Marcel Proust traduzidos por
Carlos Felipe Moisés
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