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Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Cuyp


Cuyp, sol poente, os pombos revoam, o céu
Tremula como água e a umidade de ouro
Rola da bétula, auréola à frente do touro,
Resina azul da tarde fumegante, agouro
Do charco inerte sob o límpido ouropel.
Cavaleiros a postos, plumas rosa-ouro,
As mãos do lado: o ar vivaz é um sorvedouro
A inflamar seus finos cachos anelados;
Sem perturbar o avanço do nimbado touro,
As frescas ondas vagam em campos raiados,
E partem, nevoeiro, rumo ao nascedouro
Onde vão aspirar uns minutos dourados.

 

 

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Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Paulus Potter


Céu de langor sombrio, vazio, cinzento,
Mais triste sob o azul do clarão agourento
Que deixa destilar, sobre o morro nevoento,
As tépidas lágrimas de um sol pardacento;
Potter, magoado humor de planícies sombrias
A se estender sem fim, sem alarde e sem cor;
A aldeia já se recolhe; nas gelosias
E nos canteiros não há mais nenhuma flor.
Um camponês com seu pote à casa regressa
E sua mula, resignada, cativa,
Erguendo ao céu a cabeçorra pensativa,
Num hausto aspira o vento forte, só promessa.
 

 

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Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Antoine Watteau


Crepúsculo adornando as árvores e as faces
Com seu véu azulado, máscara errante,
Beijos e beijos a rondar bocas fugaces...
O vago se faz terno; o próximo, distante.


A mascarada – melancólica lonjura –
Ensaia um falso gesto de amar, arrogante,
Capricho de poeta ou prudência de amante
(O amor é tão mais sábio quanto mais galante):
Barcarolas, repastos, silêncios, candura.

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Antoine Van Dick


Doce altivez dos corações, graça gentil
Nos olhos a brilhar, nas sedas e broquéis,
Bela expressão que da pose emana, sutil,
Natural sedução das fêmeas e dos reis!
Tu triunfas, Van Dyck, príncipe da alma,
Nos seres belos que antes preferem morrer,
Em toda bela mão, sábia em se oferecer:
Sem hesitar – que importa? – ela te estende a palma!
Paragem de cavaleiros, perto das ondas
Calmas – como eles, soluçando nas rondas;
Infantes reais, com suas vestes solenes,
Sublimes em seus chapéus de plumas e ramas,
Auriflama onde plange – onda através das chamas –
O lamento que vibra nas almas perenes
Mas jamais se converte em lágrimas infrenes.
E acima disso tudo, caminhante raro,
Camisa azul-pálido, tu, príncipe augusto,
Na mão erguendo o multifoliado arbusto;
Medito em teu contorno e em teu olhar preclaro,
Aprumado e sereno em obscuro asilo,
Ó duque de Richmond, sábio insatisfeito,
E lembro: uma safira aninhada em teu peito,
Chamas tão doces como teu olhar tranqüilo.
 

 

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Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Chopin


Chopin, mar de soluços, lágrimas, suspiros,
Que um vôo de ágeis borboletas atravessa,
A brincar com a tristeza, a apascentar seus giros.
Seduz, aquieta, sofre, agita, grita, apressa,
Ama ou embala, e faz rolar em meio às dores
O doce olvido do capricho teu, fugaz,
Como as borboletas embriagadas de flores:
Tua alegria é cúmplice da dor tenaz,
O alado torvelinho amaina os dissabores.
Das águas e da lua meigo confidente,
Príncipe da aflição ou grão-senhor traído,
Quanto mais pálido mais belo, entretido
Com o sol a inundar teu quarto de doente,
Tu te exaltas com a luz, a bem-aventurança
Da luz que chora o seu sorriso de Esperança.
 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Gluck


Templo ao amor, templo à coragem, à amizade,
Pela marquesa erguido no seu parque inglês
Onde Watteau, com muita graça e altivez,
Alveja os corações com sua alacridade.


Mas o artista alemão – a sonhar com Cnida! –
Ali esculpiu, mais fundo, com arte precisa,
Os amantes e os deuses que rondam na frisa:
Hércules com seu fogo nos jardins de Armida!


Os pés que dançam mal resvalam no caminho
Onde a cinza dos olhos – do amor, da inconstância –
Abafa nossos passos e azula a distância;
A voz dos clavecinos morre em murmurinho.


De Admete ou Ifigênia ainda o grito mudo
Ecoa e nos amedronta e rola, tocado
Por Orfeu, ou pela pobre Alceste arrostado
Ao Estígio: águas que banham seu gênio agudo.


Tal como Alceste, Gluck é sempre o vencedor
Da morte infame, a remota, fatal paragem,
Onde se ergue imponente o templo da coragem,
Sobre as pobres ruínas do templo ao Amor.
 

 

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Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Schumann


Velho jardim cuja amizade te acolheu,
Vozes e arbustos que sibilam nos valados,
Suspiros e aflições de amantes fatigados –
Schumann, soldado cantor que a guerra abateu.


Lá onde passam as pombas o vento truão
Impregna de jasmim a sombra da nogueira,
O infante lê o porvir nas chamas da lareira,
A nuvem fala do sepulcro ao coração.


Vertias lágrimas em meio ao carnaval,
Mesclava-se a doçura à amarga vitória,
Ainda freme a loucura na tua memória;
Podes chorar: ela pertence ao teu rival.


Rumo a Colônia, as águas do Reno sagradas...
Em suas margens, que regozijo de festas!
Tudo cantava! Mas agora só funestas
Lágrimas rolam nas trevas iluminadas.


Com lealdade, a morte viceja em teu sonho,
São flores de esperança e o seu mal se desfaz...
Mas aflito despertas e a ingrata falaz
Outra vez te golpeia o coração tristonho.


Coleia ao som dos guizos, desfila, tão bela!
Schumann, doce amigo das almas e das flores,
A apascentar feliz o riacho das dores
Pelo velho jardim, fiel, sob a cancela
Onde o luar e os lírios se beijam – e ela
Se afasta, criança, a suplicar teus amores.
 

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

"Retratos de pintores e músicos"

 

 

Mozart


Italiana abraçada ao nobre da Baviera,
Cujo olhar glacial se entrega ao seu langor...
Ele afaga, nos frios jardins, com ardor,
Seus seios túrgidos, à sombra da quimera.


Entre suspiros de germânica ternura,
Ele degusta, enfim, a preguiça de amar,
Feliz de poder às frágeis mãos confiar
A esperança da mente imersa na lonjura.


Querubim, D. Juan, a lembrança mundana
Vagueia, e ele tanto pisoteou as flores
Que o vento se desfez, sem aplacar as dores
Do jardim andaluz, túmulos de Toscana.


E no parque alemão, onde o tédio se esfuma,
A italiana é de novo a rainha da bruma.
No ar, seu alento esparge um halo de mel
E a Flauta mágica destila, caprichosa,
À sombra morna de uma tarde langorosa,
O frescor dos regalos, dos beijos, do céu.

 

 

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26.3.2017