Cláudio Daniel
Poesia em tempo de barbárie
Polivox, nova coletânea poética de Rodrigo Garcia Lopes, é uma
polifonia dissonante de vozes que revelam o imaginário e a
arquitetura semântica de um poeta capaz de elaborado artesanato com
as palavras. Como o título indica, este é um livro plural, onde
encontramos desde um sutil e delicado lirismo, que recorda a canção
popular, até o impacto visual de certas imagens e a violência tonal
de farpas vocais. O poeta fratura a lógica narrativa, seqüencial do
discurso, operando o corte imprevisto e a montagem de frases como se
o volume fosse um cinema em versos, com variação abrupta de cenas e
ritmos.
Embora a metáfora esteja presente, até com fúria barroca ("Céus de
cristal líquido. / Limalhas de ferro formam uma rosa imantada."), há
nesta poesia um viés crítico, uma reflexão via linguagem sobre a
época em que vivemos, caótica, descontínua, ruidosa. Uma época de
violência e banalidade, em que o mercado, hostil ao artista e à obra
de arte, se sobrepõe a qualquer esforço de reconstrução da ética e
do humanismo, impondo a hegemonia do lugar-comum. Em vez de entoar
um coral melancólico, porém, Rodrigo registra imagens da aldeia
enlouquecida, com sátira e ironia, usando inclusive, de maneira
paródica, recursos do videoclipe e o vocabulário digital. Assim, por
exemplo, na peça de abertura do livro, que recorda um jogo alucinado
("On line. Psiu: 'Épico é poema / contendo história'. / E se um
Plano de Saúde / Pudesse expressar / sua / Individualidade?"). Em
contraste com o Leviatã midiático, que intenta o exílio do
refinamento pela imposição de caricaturas alienantes, Rodrigo compõe
sua sinfonia com símbolos vivos de múltiplos territórios e culturas.
Ao longo de Polivox, vamos encontrar referências a mitologias,
poéticas e religiões, como o budismo e o xamanismo, concepções mais
orgânicas do que pode ser o humano e o estar no mundo, superando
fronteiras espaciais e temporais, e também balizas de repertório. Na
seção do livro chamada Thoth, o autor dissolve as noções de prosa e
poesia, razão e onirismo, para compor uma elegia egípcia ao deus dos
escribas e da linguagem ("Sou Thoth, deus dos dizeres, senhor dos
sentidos / o que assimila o semblante / de todos os deuses").
Em outra peça de boa fatura, nesta mesma seção, o autor diz: "A
deusa lua entra no salão de espelhos, em transe: / para onde olha,
linguagem (vibrátil), estranhos / estilhaços de um corpo que mutua /
mente se reflete: até o infinito. / E feitos da mesma imagem / (que
se rebate) / até o infinito". Uma seção singular é Satori Uso, onde
Rodrigo coloca a máscara / persona do poeta japonês para apresentar
uma safra de haicais em que as palavras são dispostas verticalmente
na página, como ideogramas.
Em Latrinália, o autor veste a toga de um vate romano, no estilo de
Marcial, para alçar poemas de vôo mais rasante e ligeiro, porém com
jovial erótica epigramática, que ressoa a sua verve fescenina.
Pensagens é talvez a seção mais instigante, onde encontramos um
poema notável, intitulado Canzone: "Seu riso sonoro / me reverbera /
alquímico / me desmascara, mas / peregrino, perenigro / seus nítidos
vestígios / beijos hieróglifos / em tua essência / virtú". Já em
Coda, que fecha a coletânea, podemos ler versos fortes como estes:
"Tigre na folhagem de damasco", "mastigo flor e morte", "Andaluzia,
lua / moura, céu / Quetzal, que tal / um céu / de papel /
líquido?".Na partitura dissonante de Polivox, entre camadas de som e
significado, referências ocidentais e orientais, notamos uma demanda
do imaginário, uma declaração dos direitos da mente, que anseia por
vivên-cia e viagem, pela beleza que salva da dor. Hoje, num mundo
sem fronteiras, o poeta reivindica o direito de ser, ao mesmo tempo,
um lorde inglês e um índio apache, um libertino parisiense e um lama
tibetano, apropriando-se de um vasto repertório cultural e
imaginativo que não pertence mais a códigos estanques. No poema que
dá título à coletânea - que reúne peças escritas entre 1997 e 2001
-, Rodrigo nos diz: "Não há nenhuma voz que seja minha".
Certamente, encontramos em Polivox ecos de variegada leitura, mas
não é difícil reconhecer, entre essas vozes díspares, a voz do
autor, que estreou na década passada com livros de consistência,
como Solarium e Visibilia, além de traduções de Sylvia Plath e
Rimbaud. Polivox, projeto que nomeia o livro, publicado pela Azougue
Editorial, e também um CD, com canções interpretadas pelo próprio
poeta, é o resultado mais ambicioso do trabalho de Rodrigo, que
retornou ao Brasil após concluir sua tese de doutorado nos Estados
Unidos. Este livro, assim como Zona Branca, de Ademir Assunção, e
Trívio, de Ricardo Aleixo, vem reafirmar que a poesia brasileira
recente é capaz de vitalidade e inovação, ao contrário do que
salmodiam as sibilas do apocalipse. Poesia, não falta; o que falta,
sim, é divulgação e inserção editorial, nesta Babilônia que devora
os seus próprios poetas.
Claudio Daniel - poeta e tradutor, publicou a
antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil (Landy,
2002), em parceria com Frederico Barbosa. Especial para Weblivros
Leia a obra de Rodrigo Garcia Lopes |