Cyro de Mattos
Os Contos Comoventes de “Trapiá”
Depois que João Guimarães Rosa colocou
o sertão nas palavras com canto e plumagem, o regionalismo de nossa
ficção sofreu um impacto e ficou no impasse. Continuar a experiência
do autor de Sagarana (1946) seria impossível porque bem pessoal. Em
sua manifestação transgressora participa da subversão do léxico e
sintaxe, inventa a linguagem fora dos cânones, modifica a estrutura.
Prosseguir na linha regionalista tradicional na qual o enfoque do
típico e do característico, inclusive da fala, tendo por fundo uma
região refletida no conteúdo, conferindo uma nota especial, seria
repetir padrões do que já estava exaurido. A opção pelo regionalismo
nordestino de 30 seria incorrer na superioridade do documental
compromissado com a realidade imediata sobre o subjetivo sem
acrescentar nada de especial em nossa novelística.
Trapiá (1961), contos, é a estréia do
cearense Caio Porfírio Carneiro, que publicaria posteriormente mais
de uma dezena de livros no gênero e seria compendiado como um dos
bons valores da moderna contística brasileira.. A leitura apressada
do livro pode dar equivocada impressão de que se trata de contos
regionais no sentido menor, pelo fato de que a matéria narrativa
estaria presa a um contexto cultural específico que se propõe a
retratar e de onde vai haurir a sua substância. São histórias da
terra áspera, calcinada, coronéis, arrieiros, velhos solitários,
gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida.
A impressão de que os contos de
“Trapiá” são regionais afigura-se como tal dado que a matéria
narrativa incorpora ainda no texto termos e expressões típicas como
“potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”,
“cumaru”, “canarana”, “mofumbó”, “varejão”, “pega-pinto”, ton-fraco
de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”, “baticun’, “capionga”,
“cansansão”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” e “pitombeira”.
Embora não ocorra o abuso do uso desses termos e expressões típicas
na narrativa concisa, não se repetem em cada história quando
incorporados ao discurso coeso. Isso já demonstra uma tomada de
consciência crítica do contista para evitar a presença do
repetitivo, enfadonho, que em geral ocorre no texto de natureza
regionalista.
Não importa ao contista de Trapiá a
transposição da linguagem para o campo literário tal qual ela é. Nem
importa retratar a ambiência onde se passa a história como se fosse
fotografá-la nos mínimos detalhes. Passa longe o dado sociológico
transformado em matéria literária, realidade estética, visando
prevalecer o documento sobre o subjetivo. Embora enraizado em sua
região de origem, fazendo dela muitas vezes a matéria prima de sua
criação literária, Caio Porfírio Carneiro nos contos de Trapiá
ultrapassa os limites do regionalismo dos anos 30/40, para
engajar-se em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado
de suas verdades essenciais: tristezas e dores.
A economia dos meios nos contos de
Trapiá salta aos olhos como uma maneira bem particular da expressão,
a se mostrar com precisão na arte implícita de forjar a história no
que pretende contar. Há uma nota especial disso desde a fala dos
personagens, passando pela ação que os movimenta através de sua
psicologia, até as observaçõese e constatações que fazem dando uma
idéia do lugar onde acontece a intriga. Tanto no fundo como na forma
há sempre o uso dos meios de expressão com síntese, equilíbrio,
intensidade do verbo, “vazios narrativos”, tudo isso manipulado com
facilidade que torna o narrador possuidor de uma dicção muito
própria no corpo do moderno conto brasileiro.
Para não cair no tempo lógico
seqüenciado da narrativa, o contista recorre ao contraponto, fazendo
que os quadros vividos pelos personagens exibam a história com um
interesse eficaz capaz de prender o leitor do princípio ao fim.
Preenche-se de interesse o drama na medida em que os personagens
agem. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no
final imprevisível o efeito intenso.. No conto “Milho Empendoado”,
por exemplo, o coronel revela à mulher apenas no desfecho que não
pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito
vigiar as galinhas. Em “O Pato do Lilico”, o pai não acredita que o
menino tenha recebido o brinquedo de presente do homem na cidade. Em
sua rusticidade estúpida, pensa revoltado que o menino havia roubado
o brinquedo. De nada adiantava o choro e a insistência do filho
querendo mostrar a inocência. No final, bruscamente, jogou o pato no
chão e pisou com raiva, enquanto a mulher lá da cozinha dizia para o
filho se calar, não fazer isso outra vez, Nosso Senhor castiga. Em
“O Gavião”, a raiva que o menino tem da ave que lhe roubou o canário
de estimação, insistindo para que o pai a matasse, transforma-se em
admiração quando entra em contato direto com ela, percebendo sua
maneira de reinar na natureza com coragem e beleza. Comove o final
quando a ave é abatida pelo pai e o menino sente. Em “Candeias”, o
vadio menino Rafael implica a todo instante com a Velha Candoca,
mandando os companheiros sujar os panos do coradouro, chamando-a de
“velha cachimbeira”. Quando retiraram do açude o menino morto, “ na
certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, a velha
sente água nos olhos. Nunca ouviria mais a provocação: Velha
cachimbeira!
Nas onze histórias de Trapiá, a
conservar alguns elementos clássicos do realismo, com observações
exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a
estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de
ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos
blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram
qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o
drama sem desprezar a ternura.
O estilo enxuto e sintético de Caio
Porfírio Carneiro projeta densidade humana forçando o leitor
participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos
personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do
discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que
evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha
para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um pensar
sobre a complexidade do mistério da existência. Em “Macambira”, o
velho Firmo com o olhar perdido no poente, conversa em silêncio ao
perscrutar o tempo, o vento e sua poeira. Vê a criação se esvaindo
sem a ração, e ele resistindo à seca, à solidão, não atendendo ao
pedido dos filhos em São Paulo para deixar suas terras, porque um
homem não se dobra ao vazio de tudo, nem quando perde a mulher.
Nestes contos de Trapiá não se vê a
intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes
de determinada região, transpondo os elementos para o literário em
seu espaço documental típico. O contista não experimenta a
linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta,
pouco a pouco, no texto enxuto.. Não chega a forçar em algum momento
as emoções do seu fundo a sustentar o drama. A cumplicidade que
emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da
capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos
verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes
comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura
humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência..
Assim, no eixo desses contos bem
escritos de Trapiá vemos a solidariedade inesperada latejar
sentimentos e nervos em “Mata-Pasto”,“Come Gato”; o absurdo da
incompreensão em “O Pato do Lilico”; a astúcia do coronel em “Milho
Empendoado”; a afeição intensa da Velha Candoca em “Candeias”; a
vontade feita dureza na solidão de velho Firmo em “Ventania” e o
ódio revertido em amor pela ave de rapina em “O Gavião”.
Não é preciso ser crítico arguto para
saber que nos onze contos enfeixados no livro de estréia de Caio
Porfírio Carneiro aconteceu o nascimento de um contista moderno e
dos bons. Possuidor de dicção simples, mensagem forte em sua
grandeza humana. Dono do chão literário que pisa, exprimindo
sentimento do mundo entre o drama e a ternura. Percebe-se facilmente
em qualquer dessas histórias de Trapiá a união harmoniosa entre o
escritor e o ficcionista.
O estilo do contista flui com
naturalidade, sua dicção desenvolve a história com uma capacidade
particular que seduz e flagra a vida num instante que nem sempre se
esgota em si mesmo. Continua na mente do leitor. O autor de Trapiá
tem também uma capacidade incrível de colocar bem os diálogos no
tempo necessário e, quando toca na alma humana sob o peso da vida,
nunca extrapola das notações agudas. Sempre preenche o texto com
sentimentos verdadeiros, penetrantes de luz, a evitar que se percam
no anonimato e esquecimento.
Referências Bibliográficas
CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e
Editora, São Paulo, 2003.
GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto
brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.
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Cyro de Mattos é contista,
poeta, cronista, ensaísta e autor de livros infanto-juvenis. Autor
de mais de 30 livros, com destaque para “Os Brabos”, contos, Prêmio
Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, “Cancioneiro do
Cacau”, Prêmio Nacional de Poesia Ribeiro Couto, para livros
inéditos, da União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro), Prêmio
Internacional “Maestrale-Marengo D‘Oro”, Itália, “O Menino Camelô”,
poesia infantil, Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes,
e “Vinte Poemas do Rio”, Palimage Editores, Viseu, Portugal. É
Membro da Academia de Letras da Bahia, Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia e Centro de Estudos Americanos Fernando Pessoa
(SP)..
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