| 
            Eduardo Portella
             
 
            
 
 Cyro de Mattos, a palavra 
            enraizada
 
            
 
 
            Em Cyro de Mattos o poema e a narrativa se entrelaçam 
            engenhosamente. Quando escreve o poema, narra; quando narra, jamais 
            se afasta do sopro vital da poesia. Talvez por isso o poema preserva 
            caprichosamente a precisão descritiva. E o relato, em nenhum momento 
            perde de vista os sinais emitidos pela torre de comando do que já 
            fora, em dias menos conturbados, o laborioso assentimento da arte 
            poética.  
            O livro de poemas que agora publica Cyro de Mattos, “Cancioneiro do 
            Cacau”, registra essa mesma tensão constitutiva. Nela a percepção 
            imediata e a memória mediata, o acontecimento e a rememoração, 
            recolhem e dão vida a paisagens e figuras das “terras do sem fim”. 
            Sobre esse território quase minado, o poeta e narrador Cyro de 
            Mattos escreve a estória animada e inanimada, em meio ao sobressalto 
            da natureza, da cotidianidade, das representações institucionais. A 
            cronometragem do tempo, ao longo da terra e das estações, expõe ao 
            olhar perplexo de seus habitantes, a labuta diária, a colheita 
            ocasional, e não raro a inviabilidade. Daí a contenda interminável 
            que supre de dramaticidade o verso espesso, e mais ainda crispado, 
            dos melhores momentos de “Cancioneiro do Cacau”.  
            O vigor cultural da região sulina do Estado da Bahia vem alimentando 
            vários poetas e narradores qualificados. Alguns se circunscreveram 
            ao espaço regional, outros saíram Brasil afora, e uns quantos 
            tomaram o caminho do mundo. Talvez prevaleça em Cyro de Mattos, como 
            impressão digital, a combinação bem sucedida de Sosígenes Costa, 
            Jorge Amado e Adonias Filho, esses escritores emblemáticos das 
            terras do cacau, de cidades em formação, cifradas entre o chão e o 
            mar, a esperança e o desencantamento, personagens cindidos entre o 
            conflito interior, certamente localizado no fundo da alma, e o 
            pleito corpóreo da justiça social, jamais atendido, ferida aberta 
            sobre o mundo da vida.  
            Cyro de Mattos é um deles. Acompanho-o desde os dias matinais, com 
            admiração que só tem crescido com o tempo. Cyro se distingue também 
            como fabulador hábil, na boa linhagem dos seus antecessores, e como 
            poeta e narrador que conhece de perto os segredos e as artimanhas da 
            linguagem. Com essas aptidões, o impulso poético, a ação da fábula e 
            a argumentação da linguagem, calibradas com sabedoria, Cyro de 
            Mattos prossegue em sua jornada instauradora.  
            Mas o seu poema não irrompe de qualquer abalo sísmico, ou de 
            qualquer intempérie facilmente previsível. Ele eclode da história 
            revigorada, nasce do fundo do homem e das coisas, da sua raiz em 
            curso, da sua origem protegida do menor sedentarismo. Lembro-me logo 
            do poema IX, da parte do livro intitulada “Os Descaminhos”: 
 “Dentro de mim ressoa uma nação.
 O clima que vem dela nas raízes
 Se alimenta em razão de verdes vozes
 Do suor derramado pelo chão.
 
 Houve tempo de dedos corroídos,
 Duro clamor nos dias mais sofridos,
 Cobra no inverno, bala no verão,
 De cacau era a flor no coração.
 
 Homem de saga molhada, sangrada,
 O ouro vegetal vi sustentar toda
 Essa nação enquanto pela estrada
 
 O tempo dava voltas. Tudo agora
 Se desfaz. Cai das folhas, insonora,
 Essa flor murcha que a agonia gera.”
 
 
            Cyro de Mattos se compraz em revalorizar a raiz, e reverenciar a 
            origem, em reconhecer o fundamento radicalmente imune ao 
            fundamentalismo. O poeta enraizado, e, no caso, porque enraizado, 
            generoso, recorda para frente. Livremente. Como quem retira dos 
            filtros do passado, e dos detectores de metais do presente, lições, 
            mesmo que enviesadas , para a construção do amanhã. 
 Eduardo Portella – Ensaísta e Professor Emérito da 
            Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Ministro da Cultura e 
            Esportes do Brasil e Presidente da Conferência Geral da UNESCO. 
            Fundou e dirige, há 30 anos, a revista “Tempo Brasileiro”. Publicou 
            “Dimensão I”, “Dimensão II” e “Teoria da Comunicação Literária”, 
            dentre outros livros. Atualmente ocupa o cargo de presidente da 
            Fundação Biblioteca Nacional.
 
 
 
            
  Leia a obra de Cyro de Mattos
 |