Eduardo Portella
Palavras e
presságios
Não sei se o
professor admirado, o agudo analista do acontecimento literário, o
ensaísta sagaz, conseguiram, mesmo que involuntariamente, ocultar o
poeta que existe em Antonio Carlos Secchin. Espero que não. E estou
certo de que, se alguma dúvida persistir, ela se dissipará a partir
deste Todos os ventos.
Aqui tomam corpo e
ganham vida os enlaces intersubjetivos que constituem a coerência do
olhar, o vigor das experiências impuras, o material verbal
habilmente gerido, aptidões reprogramadas pelo poeta sensível às
menos perceptíveis vibrações da palavra ¾ o poeta que mantém com a
palavra o intercâmbio comedido e respeitoso, de que nos dá conta o
segundo poema da série "Terra":
Palavra,
não me encantas nem te ilude.
Te cancelo no meu sono ilegível,
que, mudo, é dexistência do profundo — e é tudo.
Este relacionamento
leal progride em meio a poemas breves, sínteses informais,
pontuações precisas, sem nenhum descuido caligráfico. Secchin já nos
antecipara, no poema "Arte", que os "Poemas são palavras e
presságios". As palavras dizem e silenciam ¾ que é talvez quando
mais nos atingem. Os presságios adivinham o amanhã, em meio ao
sobressalto e ao risco. Não falta nunca, como em "Colóquio", o
impulso irônico ou a crônica do Poeta Infeliz, como a levar adiante
o processo de desmitificação. O poeta desce do pedestal que o tornou
um dia intolerante e prepotente. Encara a contingência. Mas sem
resvalar na irrelevância. Em Antonio Carlos Secchin nada é
irrelevante. E me lembro da seqüência final do livro, "Ária de
estação", e principalmente das reconstituições coloquiais, operadas
com aquela naturalidade que jamais exclui a complexidade. O livre
trabalho da linguagem dignifica o que estaria fadado à depreciação e
ao deperecimento.
Todos os ventos e
nenhum vendaval. A não ser a serena percepção do precipício, esse
núcleo tenso e intenso que promove a dispersão e garante a coesão.
Há uma transparência lacônica, que induz e desvela:
No princípio do precipício
meu início.
Na derivada do nada
minha estada.
No compasso da mudez
minha nudez.
O poeta inscrito no
horizonte cultural se move o tempo todo. Não são permitidos grandes
intervalos para pequenas comemorações. Nem contorcionismos, nem
ilusionismos. O poema "Trio", retrato poético do parnaso, evita os
retoques de praxe ou de escola. Apenas a ironia sem sarcasmo nos
lembra tempos distantes. Palavras, coisas, presságios, triângulo
quase nunca amoroso, se vêem confrontados com fragmentos da
existência alerta e ativa, atirados sobre o projeto humano e sua
temerária precipitação. Certos gestos claros, algumas insinuações
veladas, compõem o mosaico multiforme. Alguma coisa como a poética
de "todos os ventos". A errância dos ventos conduz o jogo crispado
de intencionalidades reencontradas e repentinamente abdicadas. É
assim que se movimenta o relógio do vento, na sua peregrinação
alada. E o poeta parece a uma só vez enraizado na terra e no vento.
Da primeira ele recolhe os abalos da faticidade, e do segundo o
não-limite, a liberdade do fazer. Sobre a liberdade vale a pena
transcrever um dos seus aforismos mais instigantes: "Nossa liberdade
passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas
sobretudo pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar".
A intersubjetividade
combina o "dentro" e o "fora", para se transformar em linha de força
da poesia de Antonio Carlos Secchin, e dar curso às permutas
simbólicas que se verificam no seu interior, com total consentimento
e cumplicidade exteriores.
Se tivesse de
mencionar três convivas do poeta de todos os ventos, apontaria
certamente Bandeira, Vinícius e João Cabral. Mas não esqueceria nem
Cecília nem Gullar. O fluxo dessas diferenças subverte o imobilismo
identitário. Articulam um espaço diversificado, soprado e vivificado
por múltiplas correntes de ar. A infiltração de Bandeira abre
passagem para a sábia expressão da cotidianidade, para o hibridismo
convincente. A lira subjetiva de Vinícius aí se cruza com a antilira
de João. A circulação de Cecília não reforça necessariamente o
apreço pelo absoluto ¾ o pleno. Mas a companhia de Gullar apóia a
destituição do sublime, alarga o espaço do saber poético socialmente
plantado, denegando igualmente as dicotomias estressadas de puro ou
impuro, ou sujo, e belo e feio, conforme demarcações mais ou menos
institucionalizadas.
O seu poema "A um
poeta", que é também um pleito de amor ao autor de Duas Águas,
aposta naquela poética capaz de valorizar a impureza e denunciar o
desperdício verbal, em meio a espécies provavelmente sinuosas:
Há poemas que transportam
num tapete rente ao chão.
Poemas menos que escritos,
bordados, talvez, a mão.
Outros há, mais indomados,
que são contra e através,
coisa arisca e tortuosa,
versos quebrados pelos pés.
E há poemas muito impuros,
onde não vale a demão.
Deles brotam versos duros,
poemas para ferro e João.
A dicção é
reconhecível, e do mesmo modo surpreendente. Porque Antonio Carlos
Secchin recolhe todos esses ventos, esses intermináveis caprichos
meteorológicos, e põe superiormente a serviço da palavra e do
presságio.
Leia a obra de Antonio Carlos Secchin
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