Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Eduardo Portella 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

 

 

 

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Eduardo Portella


 
Palavras e presságios


 

Não sei se o professor admirado, o agudo analista do acontecimento literário, o ensaísta sagaz, conseguiram, mesmo que involuntariamente, ocultar o poeta que existe em Antonio Carlos Secchin. Espero que não. E estou certo de que, se alguma dúvida persistir, ela se dissipará a partir deste Todos os ventos.

Aqui tomam corpo e ganham vida os enlaces intersubjetivos que constituem a coerência do olhar, o vigor das experiências impuras, o material verbal habilmente gerido, aptidões reprogramadas pelo poeta sensível às menos perceptíveis vibrações da palavra ¾ o poeta que mantém com a palavra o intercâmbio comedido e respeitoso, de que nos dá conta o segundo poema da série "Terra":

Palavra,
não me encantas nem te ilude.
Te cancelo no meu sono ilegível,
que, mudo, é dexistência do profundo — e é tudo.
 

Este relacionamento leal progride em meio a poemas breves, sínteses informais, pontuações precisas, sem nenhum descuido caligráfico. Secchin já nos antecipara, no poema "Arte", que os "Poemas são palavras e presságios". As palavras dizem e silenciam ¾ que é talvez quando mais nos atingem. Os presságios adivinham o amanhã, em meio ao sobressalto e ao risco. Não falta nunca, como em "Colóquio", o impulso irônico ou a crônica do Poeta Infeliz, como a levar adiante o processo de desmitificação. O poeta desce do pedestal que o tornou um dia intolerante e prepotente. Encara a contingência. Mas sem resvalar na irrelevância. Em Antonio Carlos Secchin nada é irrelevante. E me lembro da seqüência final do livro, "Ária de estação", e principalmente das reconstituições coloquiais, operadas com aquela naturalidade que jamais exclui a complexidade. O livre trabalho da linguagem dignifica o que estaria fadado à depreciação e ao deperecimento.

Todos os ventos e nenhum vendaval. A não ser a serena percepção do precipício, esse núcleo tenso e intenso que promove a dispersão e garante a coesão. Há uma transparência lacônica, que induz e desvela:

No princípio do precipício
meu início.
Na derivada do nada
minha estada.
No compasso da mudez
minha nudez.
 

O poeta inscrito no horizonte cultural se move o tempo todo. Não são permitidos grandes intervalos para pequenas comemorações. Nem contorcionismos, nem ilusionismos. O poema "Trio", retrato poético do parnaso, evita os retoques de praxe ou de escola. Apenas a ironia sem sarcasmo nos lembra tempos distantes. Palavras, coisas, presságios, triângulo quase nunca amoroso, se vêem confrontados com fragmentos da existência alerta e ativa, atirados sobre o projeto humano e sua temerária precipitação. Certos gestos claros, algumas insinuações veladas, compõem o mosaico multiforme. Alguma coisa como a poética de "todos os ventos". A errância dos ventos conduz o jogo crispado de intencionalidades reencontradas e repentinamente abdicadas. É assim que se movimenta o relógio do vento, na sua peregrinação alada. E o poeta parece a uma só vez enraizado na terra e no vento. Da primeira ele recolhe os abalos da faticidade, e do segundo o não-limite, a liberdade do fazer. Sobre a liberdade vale a pena transcrever um dos seus aforismos mais instigantes: "Nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas sobretudo pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar".

A intersubjetividade combina o "dentro" e o "fora", para se transformar em linha de força da poesia de Antonio Carlos Secchin, e dar curso às permutas simbólicas que se verificam no seu interior, com total consentimento e cumplicidade exteriores.

Se tivesse de mencionar três convivas do poeta de todos os ventos, apontaria certamente Bandeira, Vinícius e João Cabral. Mas não esqueceria nem Cecília nem Gullar. O fluxo dessas diferenças subverte o imobilismo identitário. Articulam um espaço diversificado, soprado e vivificado por múltiplas correntes de ar. A infiltração de Bandeira abre passagem para a sábia expressão da cotidianidade, para o hibridismo convincente. A lira subjetiva de Vinícius aí se cruza com a antilira de João. A circulação de Cecília não reforça necessariamente o apreço pelo absoluto ¾ o pleno. Mas a companhia de Gullar apóia a destituição do sublime, alarga o espaço do saber poético socialmente plantado, denegando igualmente as dicotomias estressadas de puro ou impuro, ou sujo, e belo e feio, conforme demarcações mais ou menos institucionalizadas.

O seu poema "A um poeta", que é também um pleito de amor ao autor de Duas Águas, aposta naquela poética capaz de valorizar a impureza e denunciar o desperdício verbal, em meio a espécies provavelmente sinuosas:

Há poemas que transportam
num tapete rente ao chão.
Poemas menos que escritos,
bordados, talvez, a mão.
Outros há, mais indomados,
que são contra e através,
coisa arisca e tortuosa,
versos quebrados pelos pés.
E há poemas muito impuros,
onde não vale a demão.
Deles brotam versos duros,
poemas para ferro e João.
 

A dicção é reconhecível, e do mesmo modo surpreendente. Porque Antonio Carlos Secchin recolhe todos esses ventos, esses intermináveis caprichos meteorológicos, e põe superiormente a serviço da palavra e do presságio.
 



Secchin
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