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Cid Seixas




Caeiro, o estraga-festa ou o meta-simbólico
 

 


Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
ALBERTO CAEIRO


 

A estrutura do conhecimento é levada à condição de tema nuclear da obra de Fernando Pessoa: as mais diversas formas de conhecimento, desde a ciência à arte e ao mito, constituem etapas do pensamento pessoano, tecido pelo confronto de universos que vão da pragmática tecnológica aos ensinamentos da doutrina secreta. O mundo clássico e o moderno, a vida urbana e a rural, a objetividade e a subjetividade, a descrença e a fé, o realismo aristotélico e o idealismo platônico (clássicas referências do homem, mais de vinte séculos depois) estão harmonicamente contidos no caos e no cosmo do texto do poeta.

A fragmentação, a fratura e o falso são as tônicas do verdadeiro. Síntese exemplar da modernidade, Fernando Pessoa é essencialmente um intelectual da cultura, uma presa da civilização, a se debater nas teias do simbólico.

Filósofos e lingüistas dos nossos dias concordam com a inversão da crença segundo a qual somos nós que falamos e dominamos a língua. Depositária da história e do momento, lugar de encontro do individual e do coletivo, é a língua que nos fala e domina. Para Wartburg, quando a criança aprende a falar, está também aprendendo a conhecer o espírito objetivo depositado na língua. Toda vez que surge uma nova vida humana, o espírito coletivo que vive na língua transforma e modela esse indivíduo. Mesmo quando ele procura se expressar de modo pessoal, obedece aos contornos das palavras postas à disposição dos membros da comunidade lingüística a que pertence .

Pelas mãos de um escritor que evidencia esta realidade, surge a figura de ficção chamada Caeiro. Personagem nascida nos cadernos e folhas de papel guardados na arca, Alberto Caeiro habita o cimo do outeiro como guardador de rebanhos e Mestre da outra humanidade, criada com o universo pessoano. O mesmo contexto de modernidade, produzido pelo processo de criação poética de Fernando Pessoa, levou Heidegger à célebre indicação da linguagem como morada do ser.

Como então dar a voz a um sábio que harmoniza o homem com a natureza através da negação da língua? Como re-conhecer no verbo a matéria inaugural, a partir de um templo onde se cala e a fala funda o culto do silêncio?
 

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

[OP, 220]

 

Como dar a voz a um sábio, ou a um néscio, que nega a linguagem? Como dar ouvidos à fala que se nega a si mesma? Como pensar um sábio que se sabe equívoco? São contradições que Caeiro nos impõe, ao ser aceito como poeta e mestre da causerie pessoana.

Já vimos em Bernardo Soares que Pessoa ultra-passa radicalmente, e por antecipação, a revolucionária proposta heideggeriana da Linguagem como morada do Ser. Na formulação de Soares, a essência seria a Linguagem, enquanto ao Ser estaria reservado o simples papel acidental de projeção da realidade instaurada pelo Discurso. O Ser que habita a Linguagem seria um personagem de ficção nascido da realidade concreta que é o texto. Simultaneamente lírico e dramático: épico, por narrar a aventura do espírito.

A linguagem funda o ser: O mito é o nada que é tudo; um novo deus é só uma palavra. Aqui, novamente, o versículo bíblico se refaz, ecoando as palavras de João: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus." (João, 1.1.) "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós" (1.14.).

Segundo o grande mito judaico-cristão, Deus não fez. Mas disse: faça-se. E tudo foi feito a partir da palavra divina. Da mesma forma que o primeiro Livro de Moisés, chamado Gêneses, tomou o verbo como matéria inaugural, a linguagem é a realidade primeira no universo de Pessoa. A primazia da linguagem é manifestada em diversos momentos do Livro do Desassossego, como o fragmento número 15, por exemplo, que se inicia com uma declaração feitichista da palavra, enquanto sensualidade incorporada, e termina com a célebre lembrança de leitura da obra de Vieira: "Não tenho sentimento nenhum político ou social.

Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa." Ou ainda: "Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar."

A aparição de um poeta como Caeiro na densa floresta de símbolos do cosmo pessoano é como uma tocha de fogo soprada pelo vento no palheiro. Antes de ser o mestre, Caeiro não seria o estraga-festa? Se não fosse o meta-simbólico?

Compreendido como negação da cultura e do simbólico, lugar de silêncio da linguagem, Caeiro quebraria o encanto do mundo instaurado por Pessoa, revelando o seu non sense, e propondo a inutilidade da própria escrita heteronímica. Assim compreendido, o chamado Mestre não seria um poeta, mas uma contradição capaz de provocar uma fenda na dialética da construção estruturada pelo projetista do engenheiro Álvaro de Campos: um incerto senhor Fernando; Antônio, também; nascido na atônita casa dos Nogueira Pessoa. Senão, vejamos aquele que se proclama.
 



Fernando Pessoa
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