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Cid Seixas




O Único Poeta da Natureza
 


 

O testamento poético de Alberto Caeiro, se assim posso rotular ao poema sem título, serve de apresentação e despedida do pastor de idéias:
 

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença
e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar,
porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas
diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensa-mento.
Compreender isto com o pensamento
seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
[OP, 237]

 

Se o homem, criação da cultura, constitui o seu mundo pela soma de experiências cognitivas, sentimentos e desejos de obscuros objetos; o animal, criatura da natureza, recebe um mundo já constituído, através dos sentidos da visão, da audição, do olfato, do tato e do gosto.

Distanciado da apreensão direta das coisas, o prisioneiro da cultura submete seus sentidos e sua experiência primeira ao vento ancestral da razão: o pensamento simbólico. Entre mim e o mundo que a natureza criou, um outro mundo se entrepõe: o mundo social, síntese das experiências coletivas e individuais anteriores, que empresta suas fôrmas para que eu molde minha percepção.

O poeta, como o menino, sente-se nascido, a cada momento, para a eterna novidade do mundo. Conhecer não é classificar, nem submeter o desconhecido às categorias do já visto: "Olhos novos para o novo" . Os olhos precisam estar limpos da poeira do tempo para que possam ver que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras. Tal compreensão, segundo Caeiro, se dá com os olhos e não com o pensamento, porque este tenderia a achá-las iguais. É a isso que se chama de o olhar inaugural , que o guardador de rebanhos soube tão bem redescobrir. Uma frase contém toda plenitude de uma vida: "Vi como um danado."
Nesta poesia sem metáforas e figuras de pensa-mento que não sejam símiles – comparações evidentes à primeira vista – o olhar não seria uma grande figura? A metáfora maior, primordial, portanto?

Ver seria, então, uma espécie de metáfora obsessiva do plácido Mestre da paz. E eu me pergunto: seria possível tal turbilhão de pensamentos na voz do silêncio? Uma poesia aparentemente primitiva e simples esconderia sua sedução imagística sob o manto diáfano de um sis-tema metafórico?
Da tranqüila paisagem sem figuras, Caeiro tange seu re-banho de nuvens, como se estivesse respondendo às indagações, sem nada responder – apontando noutra direção o dedo do olhar:
 

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
[OP, 217]

 

Neste poema de "O guardador de rebanhos", a recusa de todo objeto vicário ou de todo signo, entendido enquanto coisa que está em lugar de outra coisa, implica, necessariamente, na recusa do pensamento simbólico: aquele que se dá através da linguagem – a mais complexa formulação da ausência. Traçando o espaço do homem por entre as linhas dos cinco sentidos, Caeiro rejeita o sexto sentido conquistado: o sentido simbólico, responsável pela apreensão da ausência e pela sua conversão vicária. Na poesia do mestre, a presença faz fronteira com os limites do olhar.

Se o homem amplia o espaço que lhe foi reservado pela condição animal, os novos limites perdem enquanto ganham. A realidade humana vai além do que o pentágono dos sentidos alcança, mas por medo de perder-se, lança âncoras sobre o nada em que se amarra. Cada cultura estabelece os limites do real através de um processo de convenção implícita. Neste espaço de convenção vestimos as máscaras disponíveis no guarda-roupa de segunda mão das épocas. O mundo dos homens ultrapassa a materialidade do mundo animal, mas, ao substituir o visível pelo imaginário, desvia o olhar do que ainda não foi visto, perdendo a direção do objeto pleno. Outros objetos serão construídos, muitos, milhares, gastando esforços e energia suficientes para descobrir os recônditos da natureza, mas incapazes de capturar o obscuro objeto do desejo.

Ultrapassamos o universo animal, tornamo-nos criadores, como se deuses fôssemos, rompemos a fronteira da presença para encontrar vozes e sentidos na ausência, mas não lançamos nossos olhos além dos limites da convenção social, do velho mundo herdado dos ancestrais. Com o saber recebido, recebemos também não-saberes, dissabores: vendas para os olhos e desvios para os caminhos tangenciais. Só no sonho ou no verso legitimamos o risco, a contravenção do estabelecido. O percurso do olhar é traçado pelos objetivos da civilização, e não pelo movimento do objeto.

Caeiro recusa esta prisão – a submissão das percepções do homem às diretrizes da cultura –, propondo o retorno à dimensão primitiva das coisas.
 

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
[OP, 217]

 

O mesmo mestre da simplicidade admite o quanto complexo seria desnudar a alma, pendurando num cabide as vestes que a cultura cingiu ao corpo diáfano. Despidas as vestimentas que o vento dá corpo, o que sobraria desta alma humana que a cultura veste para que seja vista – e exista?
Sobraria, talvez, o vácuo, o vazio. O nada desnudo.
 

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
[OP, 72]

 

Desvestida a alma dos vínculos com a cultura, veríamos diante dos nossos olhos esta mesma alma desnuda se desmanchar, não ficando nada que não fosse a veste, vazia.
Mas o poeta da natureza continua cantando; fazendo da sua arte um monumento de protesto contra a própria arte; valendo-se da fala para dizer o silêncio; falando a língua dos homens para anunciar a falência da fala, enquanto linguagem.
O poema XI de "O guardador de rebanhos" declara inútil o simbólico e vã a intervenção do homem sobre o mundo:
 

Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
[OP, 213]

 

A arte é reconhecida como uma forma de interpretar a natureza, ou de representá-la; uma forma vicária, simbólica, portanto. A música aparece como recriação do correr dos rios ou do murmúrio das árvores, perante os ouvidos de quem não sabe ouvir a natureza.

Distante da linguagem falada pelos homens, o amante da natureza escuta sua sinfonia, sem precisar que seus sons sejam traduzidos pelos sons da cultura. O continuum difuso, à espera dos sentidos, permanece vazio de vozes, sem se transformar em linguagem, ou se articular com o universo de significações construídas pelo comércio dos homens.

Mas se os ouvidos que escutam são ouvidos que aprenderam a ouvir apenas o que escutam, como fazê-los aptos a escutar o inaudível, ou o inesperado? O homem, por ser homem, transformou seu cotidiano, sua realidade, numa outra realidade, podada, aparada, tornada coerente: socializada. As múltiplas veredas abertas ao animal em estado natural, enquanto caminhos virtuais, foram substituídas por algumas poucas estradas, menos longas e mais largas. Enfim, o homem, pela sua própria construção, deixou de ser um animal da natureza para ser um animal da cultura. Abandonando o caminho explora-tório do vasto mundo objetivo, optou pelo conhecimento do mundo subjetivo, que projeta sua sombra sobre a praça da cultura.

A evidência que a cultura é uma construção de natureza subjetiva, ou melhor, intersubjetiva, levou Pessoa a conceber Caeiro como poeta do objetivismo absoluto. Ricardo Reis, depõe sobre o mestre: "Caeiro, no seu objetivismo total, ou, antes, na sua tendência constante para um objetivismo total, é freqüente-mente mais grego que os próprios gregos. Duvido que grego algum escrevesse aquela frase culminante de “O Guardador de re-banhos”: A Natureza é partes sem um todo, onde o objetivismo vai até a sua conclusão fatal e última, a negação de um Todo, que a experiência dos sentidos não autoriza sem a intromissão, para o caso externa, do pensamento." [PR, 111-112]

Em nota solta, datada provavelmente de 1924, Fernando Pessoa levanta as relações entre o poeta e a cultura, ressaltando a importância do tesouro simbólico socialmente transmissível. Aí ele estabelece a diferença entre os elementos exteriores e interiores, os elaborados pela inteligência individual e pela comunicação humana, englobando-os em três classes: os dados diretos dos sentidos, que são as sensações; os que resultam da trans-mis-são de impressões e sensações alheias, através do convívio social; e os dados provenientes de influências indiretas, impressões colhidas em livros, museus, espetáculos etc.

Estas invenções da cultura, destinadas a permitir ao homem um aprendizado mais intenso, através da experiência socialmente compartilhada, afasta o animal simbólico do experimento pessoal, do contato direto com as coisas, para aproximá-lo da representação desta experiência: da sua elaboração simbólica.

As reflexões de Fernando Pessoa parecem apontar para a impossibilidade de construção do edifício visto por Caeiro, conforme podemos ler na aludida nota sobre o poeta e a cultura: "Os dados diretos dos sentidos são, em si mesmos, necessariamente limitados, pois cada um de nós só é quem é: não vê senão com os próprios olhos, nem ouve senão com os próprios ouvidos. Não vemos nem ouvimos bem e profundamente senão quando a inteligência, ampliada pelos outros dois fatores ou por qualquer deles, amplia as nossas sensações, com as quais insensivelmente colabora. Vemos e ouvimos melhor – no sentido de mais completa e interessantemente – quanto mais ampla e informada é a inteligência que está por trás do nosso ver e ouvir." [PR, 266] Por isso, Pessoa completa o raciocínio com a citação de Blake: Um néscio e um sábio não vêem a mesma árvore.
Tal ponto de vista é inteiramente oposto ao de Caeiro, no poema XXXIX de "O guardador de rebanhos":
 

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso
no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E de que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
[OP, 223]

 

O aprendizado dos sentidos deste poeta rústico não é um aprendizado histórico, síntese da experiência transmitida pelas gerações, ao longo do seu processo civilizacional, mas um pasmo primitivo, um nascer consciente para o mundo, conforme o fragmento do verso afirmativo: "os meus sentidos aprenderam sozinhos". É esta ausência de história, do mundo de Caeiro, e das coisas que o constituem, que retira a significação ou o sentido oculto das mesmas. É como se estivéssemos diante de um corte, de um momento paradisíaco da história do homem, anterior à descoberta do sabor do fruto colhido na árvore do conhecimento. Outra não poderia ser a conclusão do poeta: Só a inocência e a ignorância são felizes.

Caeiro olha para as coisas, e não para o animal que as contempla: sua utopia cognitiva consiste em ver o objeto em si, ignorando a relação deste objeto com o sujeito. É verdade que "As coisas não têm significação: têm existência", mas o mundo dos homens se constrói a partir da significação destas coisas perante a realidade prática, e não a partir da sua existência pura e simples. Por isso, os homens não apreendem os objetos na sua totalidade, mas quanto aos aspectos que respondem aos seus interesses e necessidades. Daí o despaisamento operado pelo poeta, o estranhamento, que nada mais é do que a recuperação da face ocultada das coisas: daquilo que foi esquecido ou negligenciado pela cultura.

O objetivismo de Caeiro é uma síntese da atitude de todo poeta perante o mundo. O projeto responsável pela construção deste autor-personagem ambiciona tomá-lo como ponto de convergência da melhor poesia.

Assim, o mestre dos heterônimos tem razão quando proclama:
 

Procuro despir-me do que aprendi
Procuro esquecer o modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.
[OP, 226]

 

O projeto de Caeiro é o de retornar à natureza, para recuperar as direções do olhar, perdidas pela cultura. Retirar dos olhos as lentes comuns, que projetam na retina uma imagem previamente refratada. Devolver aos sentidos a percepção imediata, não conduzida pela soma de outras percepções sintetizadas na experiência simbólica. Romper os vínculos com a cultura, que produz o homem, seu animal, e reatá-los com a natureza, que produziu outras espécies.

Como nossos sentimentos são os sentimentos que a cultura nos reservou, e nossas sensações são aquelas que a experiência histórica da sociedade construiu, antes de nós e independentemente da nossa própria experiência, Caeiro quer sentir a natureza não como um homem, mas como se sente a natureza. Ao abdicar dos instrumentos perceptivos usuais do homem, em favor dos instrumentos afinados pelo artista, que quer assim melhor perceber a natureza e o mundo como totalidade, ele re-afirma a submissão do homem à cultura e a impossibilidade de construir-se fora dela; a não ser através das saídas que ela mesma aponta: os mitos poéticos – a (p) arte.

Se o universo humano é o simbólico, construído pelas representações, figurações e ausências, assim como pelas convenções implícitas, o guardador de rebanhos traz ao Universo um novo Universo, porque traz ao Universo ele próprio, no seu estádio natural: o universo virgem de intervenção humana.
Mas, será que ele traz o Universo mesmo? O Universo único, ímpar: na sua objetividade total; sem a aposição das categorias subjetivamente constituídas. Ou será que ele traz, também, como todo homem, uma nova representação do Universo? Contrário a Caeiro, Pessoa, o Outro, Ortônimo, propõe: um novo universo é só uma palavra.

Assim, o verso volta, vôa --- e ressoa:
 

Não procures nem creias: tudo é oculto.
[OP, 139]

 



Fernando Pessoa
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