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Cid Seixas




Rui Espinheira Filho: O lirismo como
expressão pessoal


 

 

O ano de 1997 marcou a afirmação do nome de Ruy Espinheira Filho no vasto painel da literatura brasileira. Além da recepção favorável da sua obra pela crítica especializada, e da condição de finalista de um dos mais importantes prêmios nacionais de literatura, ele foi apontado por muitos leitores como o autor do melhor livro de poesia do ano. Memória da chuva constitui, ao lado da Antologia poética de Ruy, um dos momentos mais eloqüentes da poesia brasileira dos nossos dias. O epíteto aqui não tem função ornamental nem bombástica: é, de fato, a eloqüência ou a corrente do discurso poético que confere ao verso de Ruy o seu valor, sustentado na ousadia de retomar os caminhos renegados pela vanguarda estruturalista. A crescente audiência do poeta baiano, produto do seu momento e da atual circunstância do país, pode ser entendida como uma resposta expressiva da arte poética às encruzilhadas do lirismo, cujos descaminhos, muitos de nós não soubemos resolver. (Mais uma vez, o adjetivo quer ressaltar que tal resposta se sustenta na expressão poética e na força da palavra). A partir da primeira metade do século, o lirismo deixou de representar a expressão de uma individualidade privilegiada para esquadrinhar o território do outro, caracterizando a modernidade já esboçada pela revolução estética do século XIX. Se, desde a velha Grécia, a lírica era aceita como manifestação da subjetividade e rito de ascensão do sujeito ao centro constelar do mundo social, o conceito de despersonalização destruiu a clareza das fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático. Drummond sentenciou, inapelavelmente: “Não faças versos sobre acontecimentos”. Isto porque “as afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam”. Fernando Pessoa levou esta explosão ao paroxismo com a dramatização do lirismo. Os heterônimos são outros eus postos na cena do teatro do ser. Através deste caminho radical, o eu do poeta dá lugar a uma multiplicidade de sujeitos verossímeis que atuam como porta-vozes de todos nós. Tal lírica não é mais a expressão do sujeito, mas um lugar de encontro com todos os homens – e espaço da alteridade. Muito depois de estabelecida a ruptura com os modelos da lírica até então praticados, e consolidada a novidade, é que vieram as vanguardas formalistas, cujo alcance da revolução operada no âmbito da linguagem não ultrapassou o significante, ou a camada material da palavra.

Demasiadamente concreto, o tartamudear das vanguardas surgidas nos meados do século não chegou ao plano do conteúdo do dito, sempre abstrato e fugido como o pensamento. Algumas tentativas de renovação da lírica brasileira, como a poesia concreta, a praxis e o poema processo, marcados pela esterilidade seminal da escrita, não deixaram frutos nem herança além do bombo teórico (às vezes ruidoso) dos seus pais e criadores. A crise do lirismo se instaurou com a “impossibilidade” de expressar a subjetividade do poeta. A efusão do eu lírico se dissolveu ao tropeçar naquela pedra que havia no meio do caminho. O que caracteriza a poesia de Ruy Espinheira Filho e dá a ela um lugar na história da literatura brasileira deste fim de século é precisamente o choque agressivo com a noção vigente de modernidade na lírica. Quando os caminhos considerados mais atuais passam, de um lado, pelos monumentos da intertextualidade ou, do outro, pela hipertrofia da valorização das camadas fônicas do verso, Ruy mergulha nos desvãos da memória para retirar o lirismo pessoal e transferível. Sua matéria é o sentimento de um instante fugidio. É a observação de um pedaço de mundo, visto pelas lentes dos seus óculos. É o tempo morto que não se perdeu, guardado vivo na memória. O impulso memorialístico surge no escritor, em geral, quando os novos fatos não mais surpreendem; quando não têm a mesma intensidade e o mesmo brilho das coisas passadas; quando a velhice aproxima o homem da travessia de Caronte. Mas alguns poetas, sintonizados com a história e o destino do animal ou anjo lírico, não precisam esperar este tempo crepuscular. Em Ruy Espinheira Filho, a observação do mundo presente e a recuperação do mundo passado são caudais que confluem para um mesmo estuário. Leitor voraz e atento dos livros e do mundo, este lírico deslocado num tempo de lirismo raquítico, abre lugar para recuperar a força da subjetividade num mundo onde o sujeito às vezes não conta.

Onde a máquina realiza com eficiência e neutralidade o que o homem constrói com envolvimento. Com o poder da palavra, esta velha arma branca que, às vezes, se transforma em míssil de efeito remoto, o poeta abre clarões por entre os desvãos de um tempo para plantar sementes de um outro tempo. O poeta transita para além da temporalidade, munido de um passaporte irrecusável: o poder da palavra. É assim que Ruy Espinheira Filho restaura o lirismo e nos obriga a fazer silêncio para escutar a sua voz. Tal convicção daquilo que tem para dizer começa por cercar o seu dito de respeito. É assim que ele arranca do leitor palavras de admiração: “Ruy é poeta que escreve no peito dos homens”, conforme Mário da Silva Brito. Ou ainda: “Sua poesia é hoje uma referência importante na renovação que se processa no lirismo brasileiro”, como Antonio Carlos Brito escreveu no Leia Livros. Se os movimentos e consubstanciações da arte e do pensamento obedecem a um processo dialético, no qual uma nova síntese de vertentes e valores é a recuperação de uma velha tese enriquecida pela sua antítese, podemos dizer que o autor de Memória da chuva vai buscar nos escaninhos da temporalidade os materiais perenes da construção. Neste diálogo de tempos superpostos, ou nesta dialética de escrituras, Ruy Espinheira Filho se permite atualizar a proposição de Manuel Bandeira no livro Libertinagem, que reúne poemas dos anos 20, como Poética, onde o modernista converso resiste ao sufocamento dos clamores do sujeito. “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado”, reclama Manuel Bandeira:”Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbados / O lirismo difícil e pungente dos bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare”. Não estaria o poeta Ruy Espinheira Filho restaurando o lirismo liberto de Bandeira? Nos primórdios do modernismo brasileiro, quando os padrões já desenvolvidos pela lírica moderna desde o final do século passado atrofiam o lugar do sujeito, poetas marcados pela exaltação lírica começam a protestar contra a “orfandade de poesia” que a todos ameaçava. É a mesma opção pelo lirismo enquanto voz do sujeito que alimenta a insurreição do autor de Memória da chuva e da exemplar Antologia poética. Este embebedar-se de poesia, tão grato aos boêmios, aos clowns das horas sérias e aos cantores mais exaltados, deságua na simplicidade caudal desta Canção de depois de tanto, incluída em Memória da Chuva: “Vamos beber qualquer coisa, / que a vida está um deserto /e o coração só me pulsa / sombras do Ido e do Incerto. / Vamos beber qualquer coisa, / que a lua avança no mar / e há salobros fantasmas / que não quero visitar. / Vamos beber qualquer coisa, / amarga, rascante, rude, / brindando sobre o já frio / cadáver da juventude. / Vamos beber qualquer coisa. / O que for. Vamos beber. / Mesmo porque não há mais / o que se possa fazer.

A ironia, perpassada pelo pessimismo conformista dos versos finais, confere um tom melancólico à alegre irresponsabilidade da canção. O poeta continua nos surpreendendo com grandes doses do lirismo mais exaltado e comovente. Seu ímpeto de nadar contra o fluxo das águas e dos modismos permite realizar um poesia pessoal e transferível. Transferível porque, ao alcançar a terceira margem do rio, aquela que a correnteza guarnece, Ruy Espinheira aproxima as suas verdades das verdades do outro. Liberta as palavras do seu peito para escrevê-las nas grandes muralhas da razão e da sensibilidade dos homens.
 



Ruy Espinheira Filho
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