Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12 de agosto de 2004,

o 1ºdia

da Biblioteca Cururu,

mas não houve fotos!

 

Soares Feitosa

        

Bom, meus amigos, hoje, 12 de agosto de 2004, a Biblioteca Cururu deu-se por "fundada". Quinhentos exemplares, eu, o poeta Rodrigo Marques e os estagiários do escritório Feitosa Tributos, Diego e Vicente, mais uma máquina fotográfica que não funcionou, aliás, o "fotógrafo", de tanta emoção, é que deixou tudo em branco. O carro, entupido de livros, e arrastamos em meio as aflições do escritório, para a Faculdade de Letras, sem não antes desviar caminhos para visitar um cliente de hora desesperada.

Ufa! Chegamos. Poucos alunos. E o terror, infundado ou não, de muitas noites de mal-pensar: «...E se os alunos não aceitarem os livros? A recusa da oferenda?! Ah, meu caro Caim, tu, que passaste por este amargo...!» [Ainda bem — filho único, não tenho a quem matar. Nem morrer.] 

Aplacamo-nos num belo local de sombras do pátio das Letras. O carro aberto, com a tampa da mala escancarada, meio milhar de livros da Cururu, devidamente etiquetados e carimbados: "Não venda! Não guarde! Circule-o!" 

Gritamos aos primeiros alunos, três gatos pingados, porque, um pouco antes das onze, ainda não se completara a hora de sair. 

— Livros de graça, pessoal!

Disseram que não acreditavam. Mas foram chegando e ganhando. Mais outros, mais e mais; em pouco, não deu para quem quis. As fotos, Rodrigo Marques as batia. A máquina, de pilhas novas, deixara-as carregando de carga inteira a noite toda. 

O problema é que além de fazer a visada, o "fotógrafo" tinha que apertar o pitoco da máquina um pouco mais, até ouvir um clic, leve estalido de ok! Fotógrafo "precoce" — «é já!» —, dizia o Rodrigo a cada foto. O pior é que em meio a tribuzana, ainda teve o desplante de me dizer: 

— Poeta, estou batendo essas fotos, mas não tenho certeza de que estejam prestando... Eu disse: 

— Poeta Rodrigo, esta festa está "tão ótima" que isto de fotos prestarem ou não prestarem não tem a menor importância. Bata mais! 

— É já! — dizia e batia. Na volta, já dentro do carro, Diego, que nunca levou tantos bons amassos de tão belas protuberâncias, elas, no ruge-ruge dos livros da Cururu — pegou da máquina e viu que não havia um único arquivo. 

Pronto, foi a conta de me lembrar do velho Sócrates, apud Platão, in Fedro, contando sobre os males do surgimento da escrita. Segundo Sócrates, que já contava aquela história de muitas mãos, a escrita muito empobreceu a narrativa, pois aquele que memoriza, se não tiver livros por perto a desmenti-lo, é capaz de contar e recontar tudo muito melhor. Com os "acréscimos", evidentemente. E ornatos! [Indaguem de Cícero e Quintiliano, justamente sobre os "ornatos" — uns craques, sobretudo, o primeiro, ótimo de teoria, superlativo de prática, mas isto é outro assunto.] Foi assim que vi, ali, naquela animação dos livros, quanto a fotografia pode ser danosa (o cinema também) a uma bela "narrativa" tão-só “de ouvido”.

Garanti-me que contaria melhor, sem foto alguma, do que com as fotos do Rodrigo Marques jamais batidas. Mas, cadê? Quem disse que é fácil?! Porque contar bem contado há de passar sob a terrível sanha e senha do "desde quê", vide ensaiote meu sobre uma oficina poética, comentando um texto de Saramago.

Bom, enquanto não me chegavam os "desdes-quês", fundamentais, deliberamos substituir o sôfrego fotógrafo (é-já, é-já) e, com mais uma "automovada" de livros, batê-las, fotos, com cuidado e competência. Diego, agora na missão de "escrivão" oficial da maquineta de clik-ok!, seguimos para as Letras. 

Conto-lhes que uma jovem, no dia sem foto, 12.8.2004, havia dito:

— Já sei por que o nome é Cururu! A gente bota o bicho para fora, na vassourada, mas ele salta para dentro de casa outra vez. Eu disse que sim. Outra falou que trazer-lhes livros de graça só podia ser por conta de políticos, próximas que estão as eleições. Eu disse que sim, que eram livros mandados pelo Lula, o FHC e o Xarney. E, por isto mesmo, votasse nos três. [Uma terceira, mais afoita, disse que aquilo, de livros de graça, jamais vista, só podia ser coisa de doidos, assim me contaram. Confirmo que sim; aliás, talvez.] 

Perguntaram quem era o Xarney. Disse-lhes que era um velho pajé, especialista em pajelanças. [Fato histórico, ano de 1986, os caciques Raoni e Paiakan foram chamados pelo Lula de então a fazerem uma soleníssima pajelança, devidamente transmitida ao vivo e a cores pela TV, em horário nobre, a "curar" o cientista Augusto Ruschi, que se metera com uns cururus de super-veneno, da Amazônia]. As alunas, moças em flor, nunca tinha ouvido falar.

Perguntaram se a Cururu também patrocinava pajelanças. Eu disse que sim. E, a rigor, aquilo ali, livros de graça, era a suprema pajelança. Benzeram-se, aliás, persignaram-se. 

— E o cientista, senhor? - perguntaram. 

— Morreu, poucos dias depois!, disse-lhes. 

— ?

— Não! O Xarney, não! Vivo! Vivíssimo!

Perguntaram se os livros eram de uma livraria quebrada. Eu disse que sim, pois já quebrei bem quebradinho, mais miúdo do que arroz de terceira, no meu tempo de açougues, no Recife, donde voltei com uma mão na frente, outra atrás. Elas se assombraram com isto de botar as mãos desse jeito. Perguntaram se não teria sido mais fácil uma roupa emprestada. Eu disse que, quebrado, ninguém me emprestava coisa alguma, nem roupas, muito menos dinheiro para comprá-las. Quebrado é quebrado, e pronto! É da lei!

— Lei, senhor?!

— Turma, livros de graça! - larguei-as um pouco e gritei para um magote que ia passando.

Mas as "Toméias" (ou seriam Tomásias?) davam-me as costas. Só depois de virem o ajuntado (Pedro e galos, mentiras e o Cristo ressuscitado), voltaram: 

— Cadê o meu? 

— Aqui está, minha fulô! — e lhes enfiava, moças, a destra por entre os sovacos, a lhes dizer:

— Esta chaga é a Tua, Senhor. Agora eu Te creio!

 

Bom, a cururuzagem está feita. Vejam agora as fotos (18.8.2004), sem não antes lhes contar de um estranho telefonema em meio à distribuição.

— Como está você, Soares? - era o poeta Carlos Emílio Correia Lima, meu grande amigo e entrevistador.

— Estou aqui, debaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo...

— De quem mesmo, Soares? 

— Só dEle, do Cristo, é que aceito ficar por debaixo! — disse-lhe. 

— ?!

Contei-lhe rápido sobre a Cururu. Ele disse que não acreditava. Eu disse que os livros dele também estavam, ali, distribuídos. E, milagre de São Francisco do Canindé, só pode ter sido, olhei em frente, e o mais recente trabalho do Carlos Emílio, Virgílio Varzea: os olhos de paisagem do cineasta do parnaso, o mais completo ensaio que já se fez no Brasil sobre a poesia paisagística, estava nas mãos de uma jovem, bem junto de mim. Eu disse:

— Fale com o autor. 

Ela falou. E me devolveu o telefone. Menos a voz, a minha, totalmente surda e emudecida.

Pegamos o carro. E, por muito tempo sem dizer palavra, como se nos houvesse caído dos céus uma tremenda conspiração dos deuses, certificamo-nos de que este planeta, debaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, é... encantado.

— Louvado seja!

Ámem!


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muitas fotos. Sim, merece!

 

Para ler do início a história da Cururu 

 

 

O quadro:

Caravaggio, Michelangelo Merisi da, The Incredulity of Saint Thomas, 1601-02. Oil on canvas, 42 1/8 x 57 1/2 in. Neues Palais, Potsdam

 
 

 

 

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