Dimas Macedo
Narrativas de Ronaldo Brito
Desculpem-me se estou perdendo um
pouco a lucidez ou se me tornei um crítico excessivamente polido
pelo delírio da imaginação. Sou assim mesmo. Nunca me perdoaria se
tivesse nascido leitor mediano, desses que lêem para se distrair ou
para triturar o tempo. Leio para morrer de uma forma totalmente nova
ou, pelo menos, para sentir que ressuscitarei de uma maneira um
pouco diferente. É que as escavações literárias me matam a cada dia
de um jeito quase irreversível. Os contistas, com os seus
flagrantes, às vezes me abatem de uma forma muito especial, pois
sendo raros até em quantidade, é indiscutível que uma revelação
entre eles é um fato a ser rememorado
Em matéria de contos, me parece, Katherine Mansfield é a matriz de
todos os contistas modernos, sendo a sua ficção, em essência, uma
anatomia da simplicidade e um elogio poético do cotidiano. Juan
Rulfo, o mexicano, eu o considero o mais genialíssimo e o mais
canônico entre os contistas que nasceram do lado de cá das Américas.
Já Moreira Campos, o cearense, foi o que mais de perto tocou a minha
sensibilidade, mestre que foi na arte de elaborar a estória curta,
dela sabendo extrair o melhor proveito literário. Ronaldo Correia de
Brito, o estreante, já sendo uma revelação que se mostra esboçada
nos seus textos, poderá, se quiser, ser a grande afirmação do conto
brasileiro da década de noventa, isto se assumir a coragem de não
mais escrever quando se sentir esgotado
Com Juan Rulfo aconteceu justamente o exercício de uma obra mínima:
um livro de contos, uma brevíssima novela de atmosfera, uma obra
completa posteriormente publicada pela Editora Fundo de Cultura. E
pronto. Estávamos diante de um dos maiores escritores americanos. O
mais sintético, possivelmente, entre todos os ficcionistas e o
artista mais denso e profundo de toda a civilização mexicana.
Ronaldo Correia de Brito não está nessas alturas ainda, mas com
paciência, perícia e força de vontade poderia muito bem escalar os
degraus do sucesso. Talvez seja certo que jamais aspire à glória que
um dia lhe possa ser revelada, tal como Simão Bacamarte, o célebre
personagem de Machado de Assis, mas é impossível que não venha a ser
reconhecido como um contista que convence pela exibição do livro de
estréia, já sendo ele um dos maiores teatrólogos do Nordeste e uma
vocação que aflora na área da literatura infanto-juvenil.
Volto-me agora para contemplar As Noites e os Dias (Recife,
Editora Bagaço, 1996), o livro de contos de Ronaldo Correia de Brito
a que me refiro, no qual me deparo com uma atmosfera um tanto
sombria e alegórica, a revelar o quanto a mulher é uma instituição
mitológica, enquanto personagem que pensa e decide sobre o destino
do texto que vai arquitetando. Em Ronaldo Brito o vento da poesia é
um tecido. É uma aragem permanentemente alojada entre as camadas do
palimpsesto. O seu texto é todo ele uma poética da inconsciência e
da erudição. É todo ele uma poeira da revelação e do mistério, no
que ele possui de verdade, no que ele exibe de aproximação com a
realidade e com a lógica da imprecisão no campo do concreto.
Por outro lado, nos contos de Ronaldo a tradição é uma referência. E
bem assim um recorte estético bastante utilizado. Quer nas
entrelinhas do enredo, quer na expressão literária que modela toda a
grandeza do discurso. A intertextualidade, por exemplo, é um recurso
utilizado para resgatar a lenda e a sabedoria dos antigos, no seu
jogo de espreita e sedução, mas na maioria dos contos funciona
também como um espelho a mostrar uma outra história paralela.
Daí a grandiosidade da técnica que permeia a construção dos seus
contos. E daí também a densidade emocional e ficcional que se
projeta na mente do leitor. Não é o enredo, no geral muito
elaborado, o que interessa à curiosidade da crítica. Mas a nuvem
densa da concentração teatral é certamente aquilo que chama a
atenção a cada passo da sua narrativa.
Em Otacílio Mendes, o primeiro conto do volume, a angústia é uma
forma de ambiguidade existencial, na qual os efeitos da morte,
apesar de planejados de forma milimétrica, simbolizam tão-somente a
vulgarização da catarse, não se mostrando suficientes para resolver
o conflito humano situado no plano da alteridade.
O rito que envolve a tessitura do corpo e do costume, o ciclo do
amor e da libido, sempre em movimento pendular, a mística popular
arraigada na tradição iletrada, a repressão sensual bastante
fecundada e a insinuação maliciosa do prazer, entre outros elementos
e procedimentos narrativos, aparecem com certa recorrência nos dois
contos seguintes, a travessia talvez mais difícil de As Noites e
os Dias.
Inácia Leandro, a sugerir uma visão alegorizante, é quem inaugura,
a partir do próximo conto do livro, o processo de estruturação das
pequenas narrativas de Ronaldo Brito. Não me lembro de outro
contista, na história da literatura, que tenha concebido e retocado,
de maneira tão exemplar e comovente, um perfil de mulher como o fez
o autor de As Noites e os Dias. Inácia Leandro, Eufrásia
Menezes, Cícera Candóia e Maria Caboré são protótipos mais do que
acabados do gosto e do sentir da alma feminina, retalhada entre o
desalinho, a determinação e a postura no pertinente ao ato de
viver.
Mas outros contos de Ronaldo Correia de Brito é certo que igualmente
merecem ser destacados. “O Governo”, “A Espera da Volante” e
“Lobisomem”, por exemplo, exibem, como pano de fundo, uma temática
já banalizada por um certo regionalismo umbilical e bairrista, mas
que Ronaldo Correia de Brito universaliza com os recursos da sua
escritura literária, captando do regionalismo exclusivamente aquilo
que interessa à essência do humano, suporte nobre, portanto, da
literatura universal como um todo, seja qual for a sua latitude ou
instância de comportamento.
E qual seria, por fim, o mistério que gira em torno de “A Faca”, o
conto mais denso e profundo de Ronaldo Correia de Brito?
Particularmente não saberia explicar porque essa narrativa tanto me
tocou. É claro que se trata de um conto maldito e sagrado a um só
tempo, mas é indiscutível também que por trás dessa história plural
e diabólica uma inexplicável poeira fere os nossos olhos e se planta
gravada no coração e na memória dos vivos.
Elaborada com o domínio da forma e a
figuração simbólica da metáfora, a escritura de Ronaldo Correia de
Brito parece sempre assestada em busca dos valores da honra e da
vingança, cultuados na penumbra dos velhos casarões, onde o clamor
do sangue e o sentimento de culpa se conjugam na construção da ordem
textual, aparentemente caótica na sua dispersão intersubjetiva,
porém dialética e estrutural na unidade da sua disciplina semântica
e morfológica.
Resenha alusiva ao livro
As Noites e os Dias,
de autoria de Ronaldo Correia
de Brito. Recife-PE: editora Bagaço, 1996/Inédita.
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Ronaldo Correia de Brito
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