Dimas Macedo
A ficção de Gilmar de Carvalho
A posição ocupada pela ficção de
Gilmar de Carvalho, nos quadros da nova literatura cearense, se
ainda não se converteu numa aliciante proposta de vanguarda, isto se
deve certamente à insubmissão do seu singularíssimo discurso.
Sua concepção borgeana e, portanto, inusitada do apreender a
concretude do universo ficcional, aliada a uma refinada capacidade
de resgatar o insólito através de recursos estilísticos
alegorizantes, tudo isso tem concorrido para emprestar a produção
literária de Gilmar de Carvalho uma situação privilegiada entre o
inventário dos seus contemporâneos de geração.
Rompendo com a estrutura linear da escritura ficcionista, desde a
gestação do seu livro de estréia, intitulado Plurália Tantum (1973),
Gilmar de Carvalho vem assumindo uma postura literária que
decididamente se contrapõe à monotonia da narrativa tradicional.
Prova disso é o que nos vem testemunhar Parabélum (1977), sua
segunda experiência editorial. Através da utilização de métodos
ficcionais revolucionários, com este romance Gilmar de Carvalho
antecipa-nos caminhos até então ainda não percorridos pela moderna
prosa de ficção, imprimindo ao romance cearense, no plano estético,
a mesma revolução que no plano ideológico Durval Aires havia
anteriormente imprimido à novelística regional.
Com Parabélum Gilmar de Carvalho adiciona à literatura cearense
contemporânea o mais experiente e o mais expressivo romance
publicado na década de 70 no Ceará, vez que através de suas páginas
resgata toda uma legendária galeria de mitos, ídolos, deuses e
heróis nordestinos, que em conflito questionam o seu inserir-se em
toda uma mística e fantástica realidade regional.
Parabélum é um livro com o qual Gilmar de Carvalho alcança a sua
melhor expressão criativa, e com o qual nos convence haver
descoberto todos os possíveis horizontes a serem palmilhados pela
sua depuradíssima linguagem.
Entretanto, retornando à atividade editorial, em 1982, com Resto de
Munição (1982), Gilmar de Carvalho já com este novo livro parece-nos
que não mais consegue manter na sua escritura o mesmo nível
alcançado com as suas duas primeiras produções, ainda que
conseguindo nos transmitir o seu texto envolvido com a mesma
atmosfera simbólica identificada nos seus livros anteriores.
Há qualquer coisa neste livro de contos de Gilmar de Carvalho que
incontestavelmente o distancia de Parabélum e Plurália Tantum.
Talvez só mesmo um depoimento pessoal do seu autor pudesse revelar a
anterioridade dos textos de Resto de Munição em relação aos seus
dois outros livros aqui mencionados, exatamente como o fez o
escritor na apresentação do seu volume de crônicas intitulado Queima
de Arquivo (1983), ainda recentemente editado e seguramente o
trabalho de menor importância no contexto da obra literária de
Gilmar de Carvalho.
Resto de Munição e Queima de Arquivo, pois, são dois livros cuja
publicação representa um ligeiro equívoco na atividade editorial de
Gilmar de Carvalho, mas não na sua produção literária propriamente
dita. São duas propostas que, se por um lado não pecam pela
literariedade do conteúdo que exibem; por outro, talvez pela
infelicidade dos títulos que ostentam, parecem antecipar ao leitor o
esgotamento dos próprios recursos inventivos de seu criador.
Entretanto, se realmente existe em Gilmar de Carvalho uma
"necessidade de queimar arquivos para 'renascer", como ele fez
questão de registrar na dedicatória que me ofereceu, quando do
lançamento do seu último livro, isto é prenúncio de que o
ficcionista em breve ressurgirá com todo o seu potencial criativo,
sepultando, definitivamente, estes hiatos que não deixam de ofuscar
sua trajetória de teatrólogo e ficcionista brilhante.
DN Cultura, Fortaleza, 27/05/1984.
Leia Gilmar de Carvalho
|