Gilmar de Carvalho
Fortaleza, Ceará - Domingo 24 de março de 2002
Cantel - por
nome Raimundo
Muito se fala em
Raymond Cantel como o professor francês que chamou atenção para os
estudos sobre a literatura de folhetos do Brasil.Não é difícil
imaginar o encantamento de um europeu com a descoberta de uma
manifestação que, na Europa, já estava museificada, confinada aos
estudos teórico - críticos da literatura e da voz, perdida nos
desvãos da memória e escaninhos de velhas bibliotecas.
A chegada de
Cantel ao Brasil, no final dos anos 1950, trouxe essa constatação:
ainda existia um similar da "littérature de colportage" no Nordeste.
E essa produção se mostrava viva, sintonizada com o mercado,
permanentemente atualizada. Cantel estaria interessado no capitão
Virgulino Lampião, é o que dizem as narrativas que se tecem, tão
ricas como os folhetos que ele recolheu e levou para Poitiers.
Teria sido no
Ceará que ele se encontraria frente a frente com essa literatura
tradicional e popular. Um folheto sobre o rei do cangaço o levaria
diretamente ao mito, contado de uma forma que parecia perdida.
Toda uma herança
trovadoresca foi retomada, como em um instante epifânico. A leitura
atualizava a voz dos menestréis e jograis. O mesmo deslumbramento
que Martine Kunz experimentou no sertão de Pernambuco, quando
presenciou a leitura coletiva de um folheto.
Lá e cá, a mesma
descoberta, não de um sertão medieval, mas de ecos das vigílias,
quando ao pé das fogueiras se enredavam as narrativas. Resíduos dos
improvisos, canções de amigo e de amor, lais e outras gestas, aqui
no caso de Lampião, reinventadas a partir do que Hobsbawm chamaria
de rebeldia primitiva.
Estava
estabelecido um nexo Sorbonne / sertão.
Voz poética que
seria profética, no dizer de outro teórico, o suiço - francês Paul
Zumthor, autor de A Letra e a Voz ( São Paulo, Cia das Letras,
1993).
Cantel veio ao
Brasil várias vezes. Nesse ínterim, o nexo se fortalecia. Cantel
amiudava as viagens. Comprava e ganhava folhetos. Formava uma
coleção valiosa que, no dia 28 de março, será definitivamente
incorporada ao acervo da Universidade de Poitiers, onde encerrou sua
carreira acadêmica.
A curadora deste
tesouro, Ria Lemaire, refaz, periodicamente, os itinerários de
Cantel. Ano passado esteve durante quinze dias no Cariri cearense.
No carnaval deste ano, cumpriu temporada em Campina Grande e Recife.
Orienta tese sobre José Alves Sobrinho, faz contatos com Baccaro, da
Casa das Crianças de Olinda. Mantém e estreita, assim, muitos laços.
Ela adquire
folhetos, faz entrevistas e organizará, em 2005, um volume sobre
cordel para a coleção Archivos. Tem também planos de uma publicação
destinada a reconstituir as passagens de Cantel pelo Brasil. O que,
de certo modo, contribuirá para se compreender a gênese dessa
coleção e os vaivéns de suas pesquisas acadêmicas.
Nunca é demais
relembrar que foi na França que um policial, Charles Nizard, a
pretexto de coibir a edição desses pequenos livros, considerados
perigosos pelas autoridades de plantão, organizou uma coletânea que
preservou esses impressos do esquecimento, do lixo ou da fogueira.
Incorporados aos autos de um processo, eles tiveram sua permanência
assegurada.
Foi graças ao conjunto de técnicas apropriadas por Gutemberg, e que
se costuma chamar de invenção da imprensa, que esse conjunto de
narrativas passou a ter o suporte do papel, a voz ganhou a letra.
Aqui no Brasil, a
maior parte dessas histórias de encantamento deve ter sido trazida
pelo colonizador. Como a imprensa foi proibida até a chegada da
Corte, em 1808, a transmissão era exclusivamente oral. E aí se pode
pensar na contribuição indígena e na herança africana para a
consnotasição de um corpus sincrético ou mestiço, adaptado, não
apenas à cor local, mas às especificidades do Brasil. Daí não fazer
sentido se falar em genuíno, autêntico ou puro.
Tudo é produto de uma circularidade da cultura, de um processo de
apropriações e rejeições, de influências e trocas, de contaminações.
Foi um folheto,
nestes moldes, que Cantel teve o prazer de ler em sua primeira
visita a Fortaleza, quem sabe vendido por Moisés Matias de Moura, em
sua banca na saída do mercado, pela rua do Rosário. Cantel sabia que
estava diante de um tesouro.
Essa literatura
ganhou a possibilidade de impressão com a inclusão de títulos como A
Donzela Teodora, Roberto do Diabo, A Imperatriz Porcina, A Princesa
Magalona e João de Calais no catálogo da Impressão Regia. O que
Cascudo depois chamaria de cinco livros do povo.
Estava lançada a
proposta de uma literatura que se perfazia no rastro da
multiplicação das cópias, embrião do que se convencionou chamar,
muito tempo depois, de Indústria Cultural.
Aqui no Brasil, o
molde ganhou a possibilidade da rima, da métrica e o ponteio da
viola. E assim passamos a ter os versos em sextilha ou setilhas,
impressos nas pequenas tipografias, obsoletas para os grandes
centros, lidos nas feiras, muitas vezes, por vendedores analfabetos,
para platéias absortas. Leitura interrompida no melhor da história
para provocar as vendas.
Objeto de estudo
de folcloristas, como Sílvio Romero, Rodrigues de Carvalho, Gustavo
Barroso e Leonardo Mota, e de recolha e anotações, de próprio punho,
de Mário de Andrade. Até que vieram os estudos acadêmicos, no campo
da literatura, antropologia, sociologia, lingüística, história e
semiótica.
Quando Cantel chegou ao Ceará, no final dos anos 50, essa literatura
florescia. A Tipografia São Francisco, de José Bernardo da Silva, em
Juazeiro do Norte, era seu grande pólo produtor e irradiador para
todo o país.
Em Fortaleza,
destacava-se a Tipografia Graças Fátima, de Joaquim Batista de Sena,
paraibano que se radicou durante muito tempo entre nós, autor de uma
obra que merece ser estudada.
A cidade tinha
menos de 500 mil habitantes. O cine São Luís tinha sido inaugurado,
a catedral esperaria mais de dezoito anos, e o porto do Mucuripe
devastara a Praia de Iracema. O fornecimento de energia elétrica era
precário. Havia seqüelas da seca e das eleições de 1958 e grande
expectativa pela inauguração de Brasília e da Tv Ceará, que iria ao
ar em novembro do ano seguinte.
Os grandes jornais
circulavam à tarde e a rádio Dragão do Mar era a mais ouvida. Ayla
Maria cantava Babalu. O prefeito era Cordeiro Neto, o homem da lata
e o governador Parsifal Barroso era homem das letras. A Universidade
do Ceará tinha sido consnotasída quatro anos antes. O Banco do
Nordeste se expandia e a Sudene se implantava.
Cantel deve ter-se
encantado com o mar de Paracuru, onde passou alguns finais de semana
na casa da amiga Neusinha Góis.
A partir dele, os
estudos sobre folhetos ganharam visibilidade e aumentaram de
quantidade. Ele teve esse papel de divulgação no exterior e, entre
nós, chancelava essa literatura, ainda hoje vista com preconceito
por uma parte das elites que pensa só existir a alta cultura.
Cantel fez o
circuito nordestino. Foi interlocutor de Câmara Cascudo e, no Crato,
esteve com J. de Figueiredo Filho, autor de Folclore do Cariri (
Fortaleza, Imprensa Universitária, 1962) e organizador de Patativa
do Assaré - Novos Poemas Comentados. (Fortaleza, Imprensa
Universitária, 1970).
Figueiredo Filho
que fez a ponte entre Cantel e Patativa. O poeta relembra: Ele foi o
portador do meu livro Inspiração Nordestina lá na França. E esse
livro, houve um estudo sobre esse livro...É o doutor Raimundo Cantel.
Dá para invadir a
cena: Eu estava no Crato e o J. de Figueiredo Filho me procurou, me
levou para apresentar a ele. Eu recitei umas coisas pra ele e tudo.
E ele próprio portador do livro levou para a França. Eu autografei
um livro pra ele, viu? Pois, olhe, eu conheci esse doutor Raimundo
Cantel.
Juntando as peças
do quebra-cabeças ou invocando a figura mítica do uróboro, serpente
que morde a própria cauda, Cantel também entrevistou Patativa que
lhe recitou Dor gravada que, em 1979, abriria seu disco Poemas e
Canções, produzido por outro Raimundo, mais conhecido por Fagner.
Cantel entrevistou
Patativa no mesmo gravador que estás gravando/ aqui no nosso
ambiente? / tu gravas a minha voz, / o meu verso, o meu repente, /
mas gravador tu não gravas/ a dor que meu o peito sente.Tantas
pessoas passaram pela vida de Patativa - e Cantel seria mais um - ,e
sempre muito cético, ele disse: que eu sei bem como é, como são os
pesquisadores, a sua maneira, a sua qualidade pra poder arranjar
aquilo que ele está interessado. Cantel não esquecido por conta da
memória privilegiada do poeta pássaro e pelo fato de ter levado sua
obra para a Sorbonne Nouvelle - Paris III, onde o divulgou em seus
seminários.
Dá para visualizar
Cantel lendo os poemas, já no final dos anos 70, do recém - lançado
Cante lá que eu canto cá ( Petrópolis, Vozes, 1978). O austero
edifício da universidade reverberava a leitura em voz alta de uma
poesia que foi feita para ser fruída assim.
Para homenagear a
doação formal da coleção Cantel à Universidade de Poitiers, Martine
Kunz vajou para lá, José Lourenço fez uma xilogravura e o registro
de Patativa falando de Cantel foi gravado em cd. Lembranças e
saudades se entrelaçam, tradição e novas tecnologias são apropriadas
(a fotografia de Cantel para servir como referência do portrait ,
cortado em xilogravura, chegou de Poitiers pela Internet). Ficou
faltando um folheto para comemorar a festa. Patativa não é de fazer
laudatórios (ainda que outro dia tenham usado fragmentos de um
improviso dele com finalidades políticas).
A melhor homenagem
é a certeza de que, apesar de todo o agouro, o folheto continua
vivo, impresso, na música do Cordel do Fogo Encantado, na poesia
visual do cinema e vídeo contemporâneos, na xilogravura de Juazeiro
do Norte, Bezerros e Caruaru, na performance dos Irmãos Anicete e na
voz rascante e anasalada dos cegos de feira.
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Nordeste.
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