Daniel Piza
Rei morto, Rei posto
Quem é o novo Rei?
O escritor, poeta também, Daniel Piza, faz a pergunta inquietante,
tan-rrrran-tan-tan-tan!: Quem é novo rei da poesia brasileira? Seria
também o maior da poesia lusófona? Aliás, desculpem, ele nem
pergunta nada, vai logo dizendo, Cabral morto, o trono é do Gullar!
O leitor concorda?
Meta a colher, diga que o Daniel endoidou, que o maior poeta do
mundo é... você mesmo. Espelho meu, espelho meu, quem é mais poeta
do que eu?
Pois aí está, o JP lança a temporada de caça ao maior poeta do
Brasil. Que dirá o Affonso? E o Ivan, e os Campos - qual dos 2? E o
outro, quase Campos, Pignatari? E o Alberto da Costa e Silva, e dona
Adélia, e o Gerardo? E oThiago? Ah, meu Deus, me acuda! Tremei,
Brasil, tremei lusófonos! Habemus poetam?
Eis o texto do Daniel:
Anemia brasiliensis
(in Gazeta Mercantil,
23.10.1999)
Raras vezes o país esteve em tal crise cultural, sofrendo de tanta e
inegável anemia de idéias. E por quê? Por causa da doença infantil
do populismo, dessa alta e ruidosa banda de música populista
brasileira que domina o espaço público como trio elétrico no
Carnaval. Em sua versão não explicitamente política, o populismo é a
pressuposição de que um criador - de idéias e/ou linguagens - deve
chegar a todos os componentes do distinto público, custe o que
custar. Se não é entendido por boa parte ou pela maioria do público,
a culpa é sua. 'Todo artista tem de ir aonde o povo está', dizia o
verso daquela canção xaroposa tocada nos comícios das Diretas-já.
Não é verdade. Primeiro, o artista tem de ir aonde acha que deve ir,
conforme o que lhe parece íntegro e urgente. Segundo, ninguém sabe
direito onde o povo está. Às vezes um projetado 'fenômeno' é fiasco
completo, às vezes uma obra sem pretensões de popularidade cai nas
graças do público, ora por exaltação da mídia, ora no simples
boca-a-boca. Além disso, há os mais diversos públicos, com seus mais
diversos gostos, níveis, vivências, etc. Achar que só é válido
aquilo que for 'universal' é cometer o mesmo erro do elitismo: este
acredita que o que fala a uma minoria 'superior' tem (ou deveria
ter) valor para toda a base da pirâmide; o populismo acredita que o
que cativa a maioria 'modesta' (pois todo artistazinho de televisão
declara, entre um comercial e outro, que 'é preciso ter humildade
para vencer') precisa ser aceito pela minoria que não gosta daquilo.
Mas o populismo não é só o elitismo às avessas: é também o cinismo
de megafone e holofote, a ocupar cada vez mais espaço no mundo 'midiático'
de hoje. Então você abre a revista semanal e lá está o cantor brega
do momento curtindo seus quinze meses de fama e decretando: 'Se a
maioria gosta, é porque é bom'. Agora, o pior: a mesma frase é dita
por inúmeros intelectuais e jornalistas de gabarito, a todo momento,
nas academias e redações do país. E escritores dizem que querem ser
lidos pelo máximo possível de leitores, do dono do boteco na esquina
(onde talvez consiga fiado) ao Antonio Candido... E se o Candido não
o ler - ou o Wilson Martins ou o Davi Arrigucci - é apenas porque
eles desprezam a 'massa', o mercado, o sucesso. Qual o resultado?
O resultado é que, do dia para a noite, amadores espertos são
elevados à condição de 'autoridades' em determinado assunto;
tropicalistas dizem que gravam canções bregas porque 'unem o erudito
ao popular'; qualquer vestígio de debate de idéias é retirado dos
cadernos de 'variedades' dos grandes jornais, onde só sobra algum
espaço para a coluna, resenha ou crônica impressionista, ou então
para a polêmica narcisista, cheia de efeitos, vazia de argumentos;
tudo, em suma, oscila da timidez para a arrogância, passando ao
largo de sutilezas e provocações consistentes. No fundo, e mais uma
vez à semelhança do elitismo, o coração do populismo se alimenta do
medo da cultura - do desafio inerente a ela, em sua ambivalência
entre compreender e julgar - que distingue especialmente a classe
média, pois a classe média quer a aparência de cultura e, quase
sempre, fica até mesmo sem ela.
Outro resultado, agora mais óbvio - até mesmo para muitos dos que
vivem de vender a 'criatividade brasileira', necessariamente
fingindo que é maior do que é -, está na simples ausência dos tais
grandes nomes. Isso não é bem verdade, como indico nas notas abaixo,
mas é difícil negar que uma cultura que já teve Machado de Assis,
Villa-Lobos, Mario Schemberg ou João Cabral, ou, para entrar no
repertório um pouco mais acessível, Erico Verissimo, Tom Jobim,
Rubem Braga ou tantos outros, hoje não tem muitos equivalentes. Quer
checar?
Jorge Amado já passou dos 80 anos e está com problemas de saúde, se
bem que seus melhores livros são os primeiros (dos anos 30 e 40),
quando seu vigor narrativo ainda não estava convertido em fórmula
apelativa. Restam apenas Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Carlos
Heitor Cony, fazendo uma literatura de qualidade mas incomparável
com a dos citados; o único que talvez pudesse chegar lá, Raduan
Nassar, desistiu. O grande Dorival Caymmi já não compõe há muito
tempo, e mesmo os cinquentões Chico Buarque e Caetano Veloso começam
a dar mostras de cansaço em relação à canção popular e redirecionam
sua carreira para atividades mais 'intelectualizadas'; depois deles,
o dilúvio. A pintura não tem ninguém à altura de Alfredo Volpi ou
Iberê Camargo. O cinema, apesar do oba-oba com o ressurgimento
recente, não tem ninguém com a ambição estética de um Glauber Rocha,
apesar dos pesares discursivos. Teatro, então! Brasileiros nunca
foram muito bons nisso, mas Nelson Rodrigues era dramaturgo de porte
internacional; hoje não há nada. Mesmo a TV perdeu sua capacidade de
criar estereótipos divertidos, como os de Dias Gomes, outra perda
recente. Na dança existe o Grupo Corpo, mas, em compensação, o nível
médio é constrangedor. Fatos são fatos.
Várias explicações podem ser tentadas, como a sociológica: o regime
de 64 suprimiu a ousadia, e o período democrático pós-85 ainda não
venceu a turbulência institucional e econômica. Com certeza, são
ingredientes. Mas o que talvez se possa combater é essa mentalidade
populista, signo maior de sua própria incapacidade de convencer.
A arte da crítica - Um exemplo perfeito da anemia brasiliensis: como
era de esperar, a imprensa saiu atrás de quem seria o novo João
Cabral, etc, etc, etc. Besteira procurar o novo João Cabral, mas
besteira maior ainda é ignorar que o melhor poeta depois dele se
chama Ferreira Gullar e seu melhor livro, 'Muitas Vozes', lançado há
apenas cinco meses. 'Está fora/ de meu alcance/ o meu fim/ Sei só
até/ onde sou/ contemporâneo/ de mim.' Basta ler.
OPINIÃO DOS LEITORES:
Anchieta Pinheiro
Caríssimo Feitosa
Acabo de ler o texto ANEMIA BRASILIENSIS, de Daniel Piza. E gostaria
de dar a minha opinião. No caso, se estivéssemos falando do príncipe
das letras nacionais, seriam tantos... Quer dizer...o príncipe eu
não sei o nome, mas o trono do rei, na minha imberbe perspectiva,
deveria ser ocupado pela figura magistral de Gerardo Mello
Mourão...com cetro real e tudo o mais...
Anchieta Pinheiro Pinto
Leia a obra de Daniel
Piza
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