Eleuda de Carvalho
O jardim dos caminhos que se
bifurcam
15 de Maio de 2006
No bairro da Várzea, em Recife, o artista plástico Francisco
Brennand vem erguendo uma obra monumental. Pórticos e esculturas
transtornadas, figuras totêmicas, que remetem ao mundo mítico
"Partidos estão os vasos harmoniosos, os pratos com a face grega, as
cabeças douradas dos clássicos - mas o barro e a água continuam a
girar nos casebres dos oleiros" (Ernst Jandl)
"Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito
postulava. Sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido
estrangular abaixo as ruínas de outro templo propício, também de
deuses incendiados e mortos. Sabia que sua imediata obrigação era o
sonho" (Jorge-Luís Borges)
"Tudo flui" (Heráclito)
Fica à beira do rio, que corta em
banda a cidade do Recife. Mais além do casario histórico e esguio,
na periferia mesmo, em meio ao verde da mata atlântica que resiste,
desde o tempo rico e doce dos engenhos. Em um deles, Francisco de
Paula Coimbra de Almeida Brennand passeia sua barba branca, seus
suspensórios, sua elegância levemente apoiada em aristocrática
bengala. Recém completara 75 anos, naqueles dias de junho de 2005. A
visita tinha dois objetivos: o artista pernambucano em si e sua
amizade com o escritor paraibano Ariano Suassuna - sobre quem
preparávamos um caderno especial. Ainda do lado externo da
fábrica-ateliê, sua Oficina, a visão de um mundo bizarro. No pátio
quadrado, entre pórticos, a cúpula azul e, dentro, o Ovo Cósmico
suspenso. Em nichos frontais, Adão, Eva e Caim - eis aí a filiação
demasiado humana, inclusos o pecado e o crime. Totens de gaviões
transfigurados contrastam com o céu e seu reflexo nos espelhos dágua.
Por todo lado, criaturas que nos jogam em um outro tempo, ao mesmo
tempo conhecido e profundamente estranho. Veja este Nascimento de
uma perna. Ou Mercúrio Aprisionado, uma Helena de Tróia despojada da
beleza, e por isso tão comovente, entre as cabeças degoladas das
trágicas Hália, Lara, Galatéia e Híera. Amalgamados em barro e fogo,
o belo e o terrível ou, como melhor define o crítico Olívio Tavares
de Araújo, "uma insólita e incômoda beleza".
Nos murais de cerâmica, a palavra.
Como nas três frases que servem de epígrafe à entrevista (e a
onipresença de Borges, o mago argentino, de onde saiu o título
destas Azuis). Encandeando os sentidos, na manhã de claro sol, o
poema que Ariano Suassuna escreveu, especialmente para este espaço -
templo, catedral e sonho - Primórdia: "Sim, o conjunto era um enorme
anfiteatro e a laje central um altar, semelhantes a estes monumentos
brutais de pedra, erguidos quase sempre no meio dos desertos ou
perto de serras pedregosas e descalvadas, ou ainda junto ao mar, às
fontes e aos rios, como implorações de piedade, memoriais em defesa
da pobre raça humana, ou locais de holocaustos sangrentos,
oferecidos a suas divindades implacáveis". A Oficina Cerâmica
Francisco Brennand se expande além dos dez mil metros quadrados de
área coberta, o paredão fabril em harmonia com o jardim, planejado
por Roberto Burle Marx, também pontuado por esculturas e, desde
2004, com o marco erguido por Brennand para celebrar os 350 anos da
Restauração de Pernambuco. Em cada face, um dos quatro heróis que
expulsaram daqui e de vez os holandeses, o índio Filipe Camarão, o
negro Henrique Dias, e os portugueses João Fernandes Vieira e André
Vidal de Negreiros.
A Oficina começou a se gestar em 1971,
quando ele resolveu erguer as ruínas da Cerâmica São João, fundada
em 1917 por seu pai, Ricardo Brennand. A fábrica estava fechada
desde 1945. Os fornos reativados queimam a imaginação do artista,
além de cozer peças utilitárias, revestimentos em especial,
embalados em caixas de papelão com a marca de Francisco: o arco e
flecha de Oxóssi. No escritório de Brennand, a tela inacabada em seu
cavalete, outros óleos, livros em estantes por todas as paredes,
fotografias. Uma delas, em preto e branco, o rosto de 20 e poucos
anos de Francisco e Deborah - poeta, mulher, musa. Em 1947, ele
ganha o primeiro prêmio de pintura do Museu do Estado de Pernambuco.
Em 49, casa-se com Deborah e viajam para a Europa. Em Paris,
Brennand vê uma exposição de cerâmicas de Picasso que mudaria a sua
trajetória de artista. Poucos anos depois, faz estágio numa fábrica
de faiança, na Itália. Em 55, participa da III Bienal de Barcelona,
na Espanha, e vê de perto a arquitetura do catalão Antoní Gaudí. Em
1958, inaugura o mural do Aeroporto Internacional dos Guararapes, no
Recife e, em 1961, o mural Anchieta, no Ginásio Itanhaém, na cidade
de São Paulo.
Entre 1961 e 1962, Brennand realiza
uma das obras mais significativas da sua trajetória: Batalha dos
Guararapes, para uma agência do Banco da Lavoura de Minas Gerais, no
Recife. Ainda nos anos 60, cria os figurinos para a primeira
filmagem do Auto da Compadecida, de seu amigo de longas datas,
Ariano Suassuna. A cenografia é da arquiteta Lina Bo Bardi. Na
década de 70, faz parte do Movimento Armorial, criado por Ariano. Em
1993, Brennand é o segundo artista brasileiro (antes dele, Volpi) a
receber o Prêmio Interamericano de Cultura Gabriela Mistral,
concedido pela OEA, pelo "conjunto e singularidade do seu trabalho".
Brennand expôs em diversos países do mundo e no Brasil - a mais
recente, em Curitiba, no centro cultural desenhado por Oscar
Niemeyer. Há uma bela página do artista na internet (www.brennand.com.br).
Mas, bom mesmo, é ir à Várzea, e ver de perto. Junto com Brennand.
Como surgiram estas figuras, estas esculturas,
que não se parecem com nada conhecido ou, como disse Ariano Suassuna,
talvez possam ser comparadas somente a catedrais e templos?
Nada surge do nada, e sobretudo na arte. Na realidade, está presente
sempre o homem e o homem carrega em si a forma humana da inteira
condição. Não escapando da sua humanidade, você sempre é igual aos
outros. Às vezes, por falta de memória, você se esquece do que já
foi feito e passa a fazer aquilo que ignorou. Isto remete ao
Eclesiastes, "não há nada de novo entre o sol e a terra, o que foi é
o que há de ser". Em matéria de arte, sobretudo, você tem que
começar a partir das cavernas. Já aí o homem, por uma razão
inexplicável... Por que desenhavam? Eles reproduziam a si próprios,
e sobretudo a sua caça. Além de tudo, à procura da forma, porque
reproduziam de uma maneira perfeita.
Os homens das cavernas desenharam tão bem quanto Michelangelo, um
Rafael ou o melhor dos desenhistas dos tempos modernos. Estava
presente o mesmo coração antigo. Esta referência é de um grande
escritor italiano de origem judaica, Carlo Levi, estou citando o
título de um livro dele, O futuro tem um coração antigo. Não existe
futuro se não tiver o homem para relatar. O homem foi o passado, é o
presente e todo o futuro que nos rodeia.
Então, volto à sua pergunta. Se estas formas não se parecessem com
coisa alguma seriam invisíveis, não há possibilidade alguma de o
homem criar uma forma nova. Se você olhar para o mundo arcaico, vai
encontrar o filão aonde eu fui beber. Qual a fonte de Brennand? Foi
a fonte renascentista, foi a fonte grega? Não. Você tem que ir para
Creta, para a África, a Oceania, para toda a arte pré-colombiana.
Segui aquilo que foi defendido e advogado por um dos maiores
pintores da arte moderna, Paul Gauguin. Francês e, para nossa
alegria, com ascendência peruana. Portanto, ele é um dos nossos. As
fontes, a origem daquilo que busco não está na arte clássica. Existe
todo o mundo arcaico e a interpretação de Brennand.
Esta ligação basilar com o arcaico me faz lembrar outra vez de
Ariano...
E isto é uma coisa que me é muito grata. Agora, que completo 60 anos
de trabalho, Ariano também completa os seus e nós nos encontramos
exatamente no momento em que estávamos fazendo, ele, seus primeiros
poemas e se preparando para escrever suas primeiras peças de teatro,
e eu fazendo meus desenhos e me preparando para entrar no mundo da
pintura, em 1945, no colégio Oswaldo Cruz. Ariano já se destacava,
muito jovem e conhecedor profundo da língua portuguesa. E veja só a
tendência dele, que não era só literatura. Ele interessou-se também
por pintura e isso me surpreendeu. Ao mesmo tempo, surpreendeu a ele
o conhecimento literário que eu tinha, para um pretenso jovem
pintor.
E de onde vem este apreço, já neste começo de
conversa você citou vários autores, obras. Além dos poemas e textos
inscritos nos murais de sua Oficina.
Sempre tive paixão por literatura. Minha mãe teve uma formação
francesa no colégio Sacre Coeur, do Rio de Janeiro, e tinha uma
biblioteca enorme. Havia alguns livros de Colette, uma leitura
avançadíssima para uma senhora que pretendia o casamento. Inclusive,
encontrei um livro de Joseph Conrad, Nostromus, em francês. Mas meu
pai também tinha paixão pela literatura e lia Flaubert, Balzac, no
original. Além de tudo, fui iniciado em velhas bíblias ilustradas
por Gustave Doré, o Dom Quixote de Cervantes, também ilustrado por
ele, A História Natural, de Buffon, Varões Ilustres, de Plutarco.
Tive uma iniciação literária, mesmo se eu não quisesse, compreende?
Além de tudo, minha namorada, futura poetisa Deborah Brennand, era
uma pessoa iniciada na literatura por paixão. Ela me fez ficar em
dia com a literatura contemporânea. Esta dupla vertente - Ariano
Suassuna e minha futura mulher - me deram uma força muito grande
para penetrar mais fundo, cada vez mais fundo, no mundo da
literatura. E entrando no mundo da literatura, a minha tendência
natural para a pintura se acentuou. Foi através de um livro de
Somerseth Maughan, Um Gosto e Seis Vinténs, uma biografia ficcional
de Gauguin, que se confirmou, de fato, a minha vontade de ser
pintor. Dos pintores modernos, foi quem teve, de fato, a vida mais
aventurosa.
Gauguin deu as costas à Europa, isto é um fato extraordinário. Ele
estava à procura de um mundo primitivo, aliás, primordial. Esta
palavra primitivo é um pouco ambígua no mundo moderno. Os egípcios
pintavam as figuras de perfil não porque não sabiam pintá-las de
frente, tanto que eram magníficos escultores, conheciam a
tridimensionalidade. Aquilo fazia parte de uma ordenação estética,
talvez mágica. A maneira, que vem de manus, mão, continua a mesma, e
inda hoje o objeto valorizado é aquilo que os ingleses chamam hand
made. O que há de mais antigo no homem é a maneira do homem, e é o
que há de mais moderno: a mão que modifica as coisas. A máquina é o
resultado da manipulação do homem, sempre a maneira, o manus, o
manuscrito. Ariano está fazendo um livro escrito e decorado a mão.
Ele nasceu antigo, por isso é o mais moderno. Este encontro
definitivo com Ariano Suassuna foi uma coisa importantíssima na
minha formação. E, simultaneamente, ter encontrado a bela mulher com
quem me casei e com quem ainda troco idéias a respeito da arte.
Engraçado... Quando eu era premiado em alguma coisa, ele também
ganhava um prêmio no seu setor. Ariano, além do grande artista, de
uma importância enorme para toda a arte brasileira, é um excelente
contador de histórias.
Quando a gente se depara com a sua obra, aqui exposta, monumental,
neste cenário, também se percebe uma história sendo contada.
Você acertou em cheio. Veja bem, esta trajetória, que é a de todos
os seres humanos, de uma certa forma é eterna, porque mesmo com o
desaparecimento de cada um continua a história através dos outros.
Você deixa uma marca qualquer, seja através da reprodução, um dos
enigmas do universo - aliás, um dos temas que orientam minha arte.
Toda minha arte está baseada nisso, no elemento reprodutivo da
criação. As coisas são eternas porque se reproduzem.
E esta marca, símbolo da sua Oficina, este
ferro, de onde vem?
Isto é africano, não é? É o arco e a flecha de Oxóssi.
Escolhi esta marca por uma razão misteriosa, talvez religiosa. Eu
não entendia e ainda não entendo nada de religiões africanas mas,
como brasileiro, está no meu corpo a raça africana. A nossa religião
do Brasil, queiram ou não os católicos, não pode deixar de ser um
catolicismo muito brasileiro. Todas as religiões são eternas, que
essa é a vocação do sagrado que existe no homem. Um dos grandes
erros das doutrinas materialistas foi justamente prescindir de Deus.
Não é difícil verificar que não é só de pão que vive o homem. O
homem tem vocação para o sagrado, para o desconhecido. Fui pra
Salvador há 50 anos. Encontrei, no Mercado de Água de Meninos, antes
do incêndio... Vi lá um pedaço de arame carregado de pequenas
esculturas, berloques de ferro, que eram vários orixás. Quando
cheguei na vez de Oxóssi, parei, dali não saí, nem pra frente nem
pra trás, e foi aquele que me acompanhou nesta direção, de volta a
Recife. Fiquei hipnotizado pela figura de Oxóssi, este arco e a
flecha estilizados. E determinei que seria, definitivamente, a marca
do meu ateliê, da minha Oficina. Descobri, com esta flecha que me
perseguiu, a magia e o elemento religioso. Mando para um amigo que
era designer no Rio, mas pernambucano como eu, recifense como eu,
Aloísio Magalhães, que antes de ser a pessoa extraordinária no mundo
da política e da cultura foi um designer, pintor, o criador do
Gráfico Amador, aqui em Recife, enfim, ele fez de tudo. Com menos de
uma semana, Aloísio me manda de volta esta marca. É uma forma
perfeitamente inscrita dentro de um triângulo equilátero e toda
forma contida num triângulo equilátero é uma forma perfeita. Não
havia como meu olho fugir, eu acertei pelos sentidos. Passados 11
anos, José Cláudio da Silva, que morou na Bahia, me escreve uma
carta perguntando se eu conhecia a simbologia de Oxóssi. Ele é um
iniciado em religião africana, foi um dos quatro artistas
brasileiros convidados pelo rei do Benim para ir pintar lá. Oxóssi é
um deus inquieto, assim como a criatura humana, sempre à procura de
algo que não encontra. É um símbolo viril, está de acordo com toda a
verticalidade de minhas esculturas e com uma série de elementos
estéticos e religiosos que eu professo.
Falando de sua arte, aqui nesta sala, com suas
pinturas ainda no cavalete, os desenhos, os lápis. Você aí tem o
domínio total, é senhor do seu trabalho. Mas, quanto à arte em
cerâmica, há a ação do fogo, e pode haver uma mudança daquilo que
você imaginou...
Conto com ela! No desenho e na pintura eu começo, termino e assino,
e lastimo que não passe pelo fogo, porque aí eu estaria a salvo.
Porque, se comecei o desenho canhestro e medíocre, ele vai continuar
a vida inteira assim. Diz Matisse, o pior inimigo dos pintores são
seus maus quadros. Nunca vi uma peça cerâmica minha entrar, normal,
no forno - não vou nem chamá-la de medíocre porque é muito
desagradável isso. É um Brennand, ainda cru, e vai passar pela
grande aventura da chama. Uma peça entra no forno várias vezes, um
mural pode entrar 10, 15 vezes. Miró foi daqueles pintores que
faziam cerâmicas que me entusiasmavam muito como matéria, porque a
cerâmica de Picasso era inigualável. E foi definitiva para me
afastar de um preconceito que me deixava inerte. Hesitei em fazer
cerâmica, antes de ir pra Europa eu não fiz cerâmica nenhuma, só me
interessava por pintura a óleo. Fui pra Europa em 1949, estava com
22 anos. Eu tinha passado pelo crivo de Abelardo da Hora, que
trabalhou aqui com meu pai e me ensinou a modelar. Só pra não dizer
que não fiz, está vendo o perfil daquela moça? Foi o rosto de
Deborah a única coisa que fiz, ela tem um perfil grego. Não moro com
ela mas falo com ela todos os dias e é a única mulher com quem sinto
alguma proximidade, é quem me dá os conselhos necessários para que
eu não erre sempre. Depois de casado, tive várias namoradas, isso
infelicitou muito minha mulher, mas como eu podia deixar, se sou um
artista e a beleza da mulher é o que mais me influenciava? Hoje não
existe mulher que possa competir com ela, as outras todas são
acréscimos. Ela é a pessoa que fala minha língua, a única.
Quer dizer que só ao voltar da Europa é que
você vai se dedicar à cerâmica? Por quê?
As novas gerações pensam que sou escultor, ninguém se lembra que
minha iniciação foi como pintor e nunca deixei de pintar, mas a
parte visível do meu trabalho, como um iceberg, era a escultura.
Inclusive, porque está aqui dentro deste magnífico espaço, não
poderia haver cenário melhor para apresentar uma obra de arte do que
este lugar. E até começaram a me chamar de ceramista, foi preciso
alguns críticos advertirem que eu sou um escultor que trabalha com
barro. Aliás, esculpir é o ato de retirar matéria dura, quando você
trabalha com barro você modela, mas o resultado é o mesmo,
tridimensional. Na realidade, sou um pintor, meto tinta pra cima,
acrescento, eu não retiro. Picasso começou a trabalhar com cerâmica
no sul da França, em 1946, um ano depois do fim da II Guerra,
coincidindo com um amor novo. Ele tinha deixado Dora Maar, pintora e
fotógrafa que o acompanhou no período difícil da dominação alemã na
França.
Françoise Gilot, uma pintora de 21 anos, foi visitá-lo no ateliê e,
com seus encantos e juventude, conquistou o velho Picasso, nessa
época com 60 e poucos anos. Picasso foi-se embora para o
Mediterrâneo com Françoise. Nesse período de encantamento, de joie
de vivre, de alegria de viver, começou a fazer cerâmica, coisa que
ele não havia abordado ainda. Trabalhou durante três anos.
Francisco Brennand sai de Recife, vai à França, e a primeira
exposição que teria de ver foi a de cerâmicas de Picasso. Cícero
Dias, pintor pernambucano que você não desconhece, me chamou no
hotel, vamos ver uma exposição de Picasso?, mas não me disse do que
era. Eu tinha saído daqui, de um universo cerâmico ao qual eu dava
as costas impertinentemente, de uma forma imperdoável, e ia cair
exatamente no centro do mundo para mim, que era Pablo Picasso, o
maior dos artistas modernos. Ele me jogou na cara a cerâmica que eu
desdenhava. Fiquei envergonhado, a palavra é essa, envergonhado da
minha tolice. Eu não era uma pessoa que estava aqui de passagem, eu
era filho do dono da fábrica de cerâmica. E embora meu pai dissesse,
faça alguma coisa, desenhe este prato, eu preferia pintar um
auto-retrato como o Cardeal Inquisidor, um óleo sobre tela, ou então
A Primeira Visão da Terra Santa, premiado com o primeiro prêmio no
Salão de 1947. E este prêmio me fez desdenhar ainda mais a cerâmica.
Eu teria que ter sido castigado, por não ver que a cerâmica era tão
grande. Daquele momento em diante, passei a prestar atenção aos
outros artistas da Escola de Paris, como Miró, Léger, Matisse e até
Gauguin, grande mestre de todos os tempos, que haviam incursionado
pelo mundo da cerâmica. Existem 300 cerâmicas de Gauguin que foram
expostas em Paris na comemoração do segundo centenário da Revolução
Francesa.
E como foi retornar ao Recife, após este virar
as costas ao universo que já povoava sua vida, até decidir
continuar, ao seu modo, a fábrica que foi de seu pai?
Devo tudo à Escola de Paris, mas acontece que sou brasileiro.
Aprendi muito na Europa, mas não desaprendi de ser brasileiro.
Chegando aqui adulto, com este museu mais ou menos formado, cheio de
peças por todo lado, hoje eu sei a razão, naquela época eu não
sabia. Três franceses que vieram aqui me perguntaram, afinal de
contas, não estamos vendo muito visível uma marca brasileira no que
o senhor faz, mas nomes ligados à mitologia grega, à França, estão
aqui Joana d´Arc, Luís XVI, Maria Antonieta, Cirano de Bergerac.
Como o senhor determinaria seu lado brasileiro? Eu disse, o mais
importante de todos! Eles olharam pra mim, qual? - A liberdade. -
Então o senhor quer dizer que na França não existe liberdade? Digo,
evidente, mas a própria cultura milenar de vocês é uma servidão. Eu
tenho muito mais independência fazendo cerâmica do que fazendo
pintura. Eu ousei tudo, daí a minha liberdade, disse aos franceses,
exatamente porque estou no espaço brasileiro. Em Paris, vocês não
permitiriam.
Se eu chegasse em Paris e tivesse uma fábrica com um espaço como
este, que eu iria me apossar solitariamente, iam aparecer 200
parceiros para compartilhar comigo a reconstrução disso. Trabalhei
aqui 11 anos só recebi uma visita, a de meu pai. Nem de meus irmãos,
de ninguém! Onze anos depois, a desgraça estava feita, não tinha
como consertar. Se chegasse um crítico, ou elogiando demais ou
criticando, já não teria nenhuma influência, porque já estava
consolidado o que eu deveria fazer.
E este templo ou catedral, como diz Ariano, se
fez nesse tempo. Havia um plano prévio?
Não gosto de citar a mim mesmo, mas em alguma entrevista ou coisa
que escrevi, disse que gosto das idéias abandonadas. Esta fábrica
estava em ruínas, portanto, era uma idéia abandonada. Foi uma idéia
de meu pai, que era usineiro.
Na época dele, não havia privilégio maior do que herdar uma usina,
ele herdou duas. Achou pouco, e era inteligente para verificar, de
uma forma premonitória, que a indústria açucareira nordestina estava
fadada ao desastre. Quando São Paulo começou a fabricar açúcar e
logo em seguida o Paraná, terras descansadas e extremamente férteis,
o destino da indústria açucareira nordestina estava traçado. Pois
bem, meu pai resolveu, em 1917, com apenas 20 anos, fundar a
cerâmica São João da Várzea, para fazer telhas e tijolos. A idéia
era fazer porcelana, que ele foi fazer 30 anos depois, em 1947,
quando inaugurou a fábrica de porcelana no outro lado do rio
Capibaribe, na margem direita. Esta fábrica durou até 1968 e só foi
fechada porque meus irmãos, à frente do grupo, achavam que era
complexa, de difícil comando, eram 400 operários, um vasto
artesanato, tudo feito com a mão de obra retirada da cana, de gente
daqui, dos nossos camponeses, cortadores de cana da usina. Depois
acrescentado por modeladores portugueses, torneadores, filetadores,
decoradores e a parte gerencial com alemães, grandes produtores de
porcelana, mas jamais competindo com o que a China, o Oriente fez.
E o que você faz, a partir do barro, como se
dele extraísse um outro mundo...
Minha cerâmica é toda pardacenta, ferruginosa, não tenho nenhum
vermelho, porque trabalho com 1.400 graus centígrados, a alta
temperatura não me permite tirar partido de cores vivas, nem
vermelho, nem amarelo, nem laranja, nenhum azul estridente, nenhum
preto retinto. Tudo se dissolve numa mistura do pardo-ferruginoso.
Mas me habituei a amar estas cores, que estão lá dentro da pedra, no
coração da matéria. Eu estava construindo isto com este exagero,
esta idéia do demasiado e, achando pouco os espaços, prolonguei,
para trás e para os lados, perdi a ponte, isto criou um fosso, lá o
mundo industrial, aqui o mundo do artesanato, da mão. Logo que
cheguei da França, em 1954, fui chamado por um descendente direto de
Jerônimo de Albuquerque, dos poucos que não poderiam dizer que eram
bastardos, José Maria Albuquerque, cujo apelido era Zemaria Cavalão,
porque era enorme de gordo e comia como um animal. Mas era um homem
afeito às artes, e criou, com o poeta Joaquim Cardoso, a famosa
Revista do Nordeste. Ele me disse, por que você não faz uma
homenagem ao tricentenário da restauração pernambucana? Fiz,
recém-chegado da Europa, placas, pratos e algumas alegorias, pela
primeira vez abordando o tema da Batalha dos Guararapes. Foi uma
previsão do que eu faria alguns anos depois. E descobri que aqui era
um território sagrado. Daqui partiu a grande conspiração que levou a
Tabocas e Guararapes. O historiador Pereira da Costa diz que partiu
da Várzea a grande conspiração, porque estas terras pertenciam a
João Fernandes Vieira, o maior proprietário de engenhos na periferia
da cidade. E André Vidal de Negreiros, que era paraibano, vendeu
suas terras na Paraíba e comprou o engenho São Francisco, colado com
Vieira. Diz Pereira da Costa que, entre 1645 e 1654, a Várzea passou
a ser a capital de Pernambuco, porque Recife estava em posse dos
holandeses e Olinda eles incendiaram.
Houve um tempo, ainda antes do Movimento
Armorial, de 1970, que você, Ariano e outros artistas da cidade
confabulavam num desses antigos e históricos engenhos.
As nossas reuniões eram no engenho São Francisco, que havia
pertencido a André Vidal de Negreiros. E, mais do que nunca, tinha
um sentido pra que esta nossa brasilidade aflorasse. Foi quando
pintei a Batalha de Guararapes. E sabe qual foi o título que Ariano
botou nessas reuniões? Academia dos Emparedados! Porque discutíamos
os destinos do mundo e éramos inteiramente ignorados, entre as
quatro paredes da velha casa do engenho São Francisco. Sobrevivi a
mim mesmo, para ver mais 50 anos da Restauração Pernambucana. E
envergonhado em verificar que, atualmente, nem o governo democrático
de Jarbas Vasconcelos se apercebeu da importância deste fato. Os
portugueses também não comemoraram como fizeram no tricentenário,
quando vieram autoridades de Portugal, e achei tímida a participação
da colônia portuguesa. O governo foi absolutamente reticente e eu
até diria pró-Nassau. Nosso prefeito João Paulo, do Partido dos
Trabalhadores, se fantasiou de Maurício de Nassau no Baile Municipal
de 2004, e fez uma avenida paralela à Caxangá, com o nome de
Maurício de Nassau. Foi inaugurado um busto dele, defronte ao
Palácio do Governo. Um primo meu, que inaugurou aqui uma pinacoteca,
fez uma exposição de Frans Post, e tem um busto de Nassau no seu
jardim. Eu tinha de fazer alguma coisa. Aqui na frente, fiz o
obelisco com os quatro heróis e a Praça dos 350 Anos, com versos do
poeta cearense, lá do sertão dos Inhamuns, César Leal. Eu já tinha
feito a Batalha dos Guararapes, em 61, com poemas de César Leal e
Ariano Suassuna, é um mural de 33 metros de comprimento por dois e
meio de altura. Aliás, este mural é muito influenciado pela
tapeçaria de Bayeux, ou tapeçaria da Rainha Matilde, que fala da
Batalha de Hastings, dos normandos contra os ingleses, vencida pelos
normandos.
Como você próprio definiria tudo isto que
criou aqui, em uma década de solidão?
Tenho a certeza que isto é um templo às artes e um templo da pátria,
reafirmada. Isto ainda é uma cidadela ameaçada, porque hoje tem a
dominação mais insidiosa, a econômica. Não precisa se gastar um só
tiro, nem de festim. Os bancos holandeses estão todos aqui. Meu
mural Batalha dos Guararapes estava na parede de um banco
brasileiro, encomendado por dois ilustres mineiros, do Brasil lá de
cima das montanhas, donos do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Hoje
é um banco holandês, o todo-poderoso Amro Bank. O que faz o Amro
Bank? Ele está numa ruazinha estreita, a rua das Flores. Na frente
tem o Banco Safra, um banco judeu. A rua é totalmente deserta à
noite, visitada por mendigos...
Botei o piso com a cerâmica daqui, nesta parte onde tem o painel, e
foi feita uma restauração geral na época em que Jarbas Vasconcelos
era prefeito. Tiraram os camelôs, eles viveram ali mais de um ano,
mas não ao ponto de danificar. Às vezes alguma ponta de pedra,
porque nas juntas da cerâmica eles metiam os pregos, mas o dano não
foi irreparável, mas fizeram dali uma espécie de mictório. O Amro
Bank encontrou a solução ideal. Eles fecharam esta rua com uma
estrutura leve de metal e criaram ali uma espécie de pavilhão do
Brasil holandês.
Quer dizer: meu mural da expulsão dos holandeses vai ficar
aprisionado dentro de um centro cultural do Brasil holandês, veja
que apropriação insidiosa! Fui fagocitado pelo poder econômico, que
pode tudo.
Foi seu o projeto de fazer a Casa de Cultura
no prédio onde funcionou a antiga cadeia?
O doutor Miguel Arraes, com a saída dos presos da Casa de Detenção,
me chamou pra fazer daquele espaço um espaço cultural. Trabalhei
quatro meses, idealizando a Casa de Cultura, que não foi consumada
porque veio a revolução de 64 e este projeto acabou. Mas chamei a
Lina Bo Bardi (arquiteta italiana, radicada no Brasil, que projetou
o Masp), o Lívio Xavier, antropólogo cearense que conhecia
profundamente o artesanato brasileiro. Iríamos fazer da Casa de
Detenção não um falso Mercado de São José, mas um museu do
desenvolvimento brasileiro. Podia ser balé como tecnologia, esta era
a idéia, que foi abaixo porque o governo de Arraes caiu. Logo
depois, veio o governo de Nilo Coelho, meu parente, que queria botar
o prédio abaixo pra fazer um estacionamento, só não botou por preces
de Ariano Suassuna, que foi lá pedir por favor que não fizesse isso,
e Nilo acedeu. Depois inauguraram, mas com outro sentido
completamente diferente. Aproveitaram os projetos da Lina, mas não
os conceitos, os fundamentos. Casa de Cultura é uma conversa, aquilo
é um bazar, com falso artesanato.
Lina trabalhou com você na primeira filmagem do Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, em 1968... Ela criando os cenários e você os
figurinos.
A Lina era uma amiga de longa data. Minha ligação com São Paulo
aconteceu em 1946. Lá, conheci Carlos Pinto Alves e este amigo, mais
amigo do meu pai do que meu, me iniciou neste mundo paulista. Aí
tive o ensejo de conhecer Pietro Maria Bardi, Paulo Mendes da Rocha,
grande arquiteto, Lasar Segall, uma série de pintores. E a Lina.
Voltei a frequentá-la em 61, quando da restauração do Solar do
Unhão, em Salvador. Ela teve que sair da Bahia pelo fato de ser
amiga de todo mundo da esquerda. Quando comecei, em 71, a reforma
aqui na cerâmica, foi diante das leis que ela me ensinou, por
exemplo, jamais eliminar os traços da trajetória de uma construção.
Respeitei, em primeiro lugar, que aqui era uma estrutura fabril, as
máquinas deveriam permanecer. Isso, na Europa, eles chamam de
arqueologia industrial.
Por falar na Europa, de onde vem seu sobrenome
estrangeiro?
Essa gente Brennand veio no século 19, em 1820. O primeiro que
chegou no Brasil tinha 16 anos, devia ser um grumete de navio, um
camaroteiro. Veio tentar a vida. Este meu trisavô embarcou em
Liverpool, a terra dos Beatles, veio de Manchester. Chegou, em
Salvador, e desapareceu na voragem do Sul.
Retornou ao Nordeste, descendo em Maceió - e aí é registrada a
chegada dele, com 38 anos, Edward Brennand, cidadão inglês, a bordo
do navio Martha. O que ele andou fazendo, entre 16 e 38 anos?
Ninguém sabe. Em Maceió, logo se estabeleceu, foi convidado por
firmas inglesas pra trabalhar, e casou-se com uma rica viúva
alagoana. Meu pai não dava atenção a essa ascendência, mas a seus
nomes portugueses e até índios, pelo lado de Jerônimo Cavalcanti de
Albuquerque, que não escondia a sua vida devassa, tinha amantes
índias e negras. Diz a história que ele teria se engraçado com uma
índia, Espírito Santo Arcoverde. O cardeal Arcoverde era um
Cavalcanti de Albuquerque.
Pra finalizar, conta um pouco desta sua
amizade de 60 anos com Ariano Suassuna.
Nós todos, Ariano, Deborah e eu, temos a mesma idade. Ariano
completa no dia 16 de junho, sou do dia 11. Todo sábado, por volta
de meio dia e meia, ele fala na televisão (o programa O Canto de
Ariano). Quando me homenageou, no último dia 11 de junho (2005),
Ariano leu um poema que Carlos Penna Filho tinha dedicado a mim, o
soneto A solidão e sua porta, poema esse que me perseguia como uma
espécie de destino: "Quando mais nada resistir que valha a pena de
viver e a dor de amar/ E quando nada mais interessar (nem o torpor
do sonho que se espalha)/ Quando, pelo desuso da navalha, a barba
livremente caminhar/ e até Deus em silêncio se afastar, deixando-te
sozinho na batalha"... É uma premonição, e durante anos perguntei,
por que diabos Carlos Penna, que não tinha grandes amizades por mim,
éramos apenas conhecidos, me dedicou este soneto, um verdadeiro
calvário - "a arquitetar na sombra a despedida do mundo que te foi
contraditório"...? E, de fato, minha vida foi muito contraditória.
Ariano recitou isso e, pela voz da amizade, este soneto se
transfigurou numa outra coisa e não vai mais me perseguir:
"Lembra-te que, afinal te resta a vida, com tudo que é insolvente e
provisório. E de que ainda tens uma saída - entrar no acaso e amar o
transitório". Foi assim que ele me homenageou e ainda me chamou, de
quebra, de grande artista brasileiro. E tão grande quanto os maiores
da Europa. Fiquei comovidíssimo.
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