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Eleuda de Carvalho


 


O jardim dos caminhos que se bifurcam

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil
15 de Maio de 2006




No bairro da Várzea, em Recife, o artista plástico Francisco Brennand vem erguendo uma obra monumental. Pórticos e esculturas transtornadas, figuras totêmicas, que remetem ao mundo mítico


"Partidos estão os vasos harmoniosos, os pratos com a face grega, as cabeças douradas dos clássicos - mas o barro e a água continuam a girar nos casebres dos oleiros" (Ernst Jandl)

"Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito postulava. Sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular abaixo as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos. Sabia que sua imediata obrigação era o sonho" (Jorge-Luís Borges)

"Tudo flui" (Heráclito)

 

Fica à beira do rio, que corta em banda a cidade do Recife. Mais além do casario histórico e esguio, na periferia mesmo, em meio ao verde da mata atlântica que resiste, desde o tempo rico e doce dos engenhos. Em um deles, Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand passeia sua barba branca, seus suspensórios, sua elegância levemente apoiada em aristocrática bengala. Recém completara 75 anos, naqueles dias de junho de 2005. A visita tinha dois objetivos: o artista pernambucano em si e sua amizade com o escritor paraibano Ariano Suassuna - sobre quem preparávamos um caderno especial. Ainda do lado externo da fábrica-ateliê, sua Oficina, a visão de um mundo bizarro. No pátio quadrado, entre pórticos, a cúpula azul e, dentro, o Ovo Cósmico suspenso. Em nichos frontais, Adão, Eva e Caim - eis aí a filiação demasiado humana, inclusos o pecado e o crime. Totens de gaviões transfigurados contrastam com o céu e seu reflexo nos espelhos dágua. Por todo lado, criaturas que nos jogam em um outro tempo, ao mesmo tempo conhecido e profundamente estranho. Veja este Nascimento de uma perna. Ou Mercúrio Aprisionado, uma Helena de Tróia despojada da beleza, e por isso tão comovente, entre as cabeças degoladas das trágicas Hália, Lara, Galatéia e Híera. Amalgamados em barro e fogo, o belo e o terrível ou, como melhor define o crítico Olívio Tavares de Araújo, "uma insólita e incômoda beleza".

Nos murais de cerâmica, a palavra. Como nas três frases que servem de epígrafe à entrevista (e a onipresença de Borges, o mago argentino, de onde saiu o título destas Azuis). Encandeando os sentidos, na manhã de claro sol, o poema que Ariano Suassuna escreveu, especialmente para este espaço - templo, catedral e sonho - Primórdia: "Sim, o conjunto era um enorme anfiteatro e a laje central um altar, semelhantes a estes monumentos brutais de pedra, erguidos quase sempre no meio dos desertos ou perto de serras pedregosas e descalvadas, ou ainda junto ao mar, às fontes e aos rios, como implorações de piedade, memoriais em defesa da pobre raça humana, ou locais de holocaustos sangrentos, oferecidos a suas divindades implacáveis". A Oficina Cerâmica Francisco Brennand se expande além dos dez mil metros quadrados de área coberta, o paredão fabril em harmonia com o jardim, planejado por Roberto Burle Marx, também pontuado por esculturas e, desde 2004, com o marco erguido por Brennand para celebrar os 350 anos da Restauração de Pernambuco. Em cada face, um dos quatro heróis que expulsaram daqui e de vez os holandeses, o índio Filipe Camarão, o negro Henrique Dias, e os portugueses João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros.

A Oficina começou a se gestar em 1971, quando ele resolveu erguer as ruínas da Cerâmica São João, fundada em 1917 por seu pai, Ricardo Brennand. A fábrica estava fechada desde 1945. Os fornos reativados queimam a imaginação do artista, além de cozer peças utilitárias, revestimentos em especial, embalados em caixas de papelão com a marca de Francisco: o arco e flecha de Oxóssi. No escritório de Brennand, a tela inacabada em seu cavalete, outros óleos, livros em estantes por todas as paredes, fotografias. Uma delas, em preto e branco, o rosto de 20 e poucos anos de Francisco e Deborah - poeta, mulher, musa. Em 1947, ele ganha o primeiro prêmio de pintura do Museu do Estado de Pernambuco. Em 49, casa-se com Deborah e viajam para a Europa. Em Paris, Brennand vê uma exposição de cerâmicas de Picasso que mudaria a sua trajetória de artista. Poucos anos depois, faz estágio numa fábrica de faiança, na Itália. Em 55, participa da III Bienal de Barcelona, na Espanha, e vê de perto a arquitetura do catalão Antoní Gaudí. Em 1958, inaugura o mural do Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife e, em 1961, o mural Anchieta, no Ginásio Itanhaém, na cidade de São Paulo.

Entre 1961 e 1962, Brennand realiza uma das obras mais significativas da sua trajetória: Batalha dos Guararapes, para uma agência do Banco da Lavoura de Minas Gerais, no Recife. Ainda nos anos 60, cria os figurinos para a primeira filmagem do Auto da Compadecida, de seu amigo de longas datas, Ariano Suassuna. A cenografia é da arquiteta Lina Bo Bardi. Na década de 70, faz parte do Movimento Armorial, criado por Ariano. Em 1993, Brennand é o segundo artista brasileiro (antes dele, Volpi) a receber o Prêmio Interamericano de Cultura Gabriela Mistral, concedido pela OEA, pelo "conjunto e singularidade do seu trabalho". Brennand expôs em diversos países do mundo e no Brasil - a mais recente, em Curitiba, no centro cultural desenhado por Oscar Niemeyer. Há uma bela página do artista na internet (www.brennand.com.br). Mas, bom mesmo, é ir à Várzea, e ver de perto. Junto com Brennand.

Como surgiram estas figuras, estas esculturas, que não se parecem com nada conhecido ou, como disse Ariano Suassuna, talvez possam ser comparadas somente a catedrais e templos?

Nada surge do nada, e sobretudo na arte. Na realidade, está presente sempre o homem e o homem carrega em si a forma humana da inteira condição. Não escapando da sua humanidade, você sempre é igual aos outros. Às vezes, por falta de memória, você se esquece do que já foi feito e passa a fazer aquilo que ignorou. Isto remete ao Eclesiastes, "não há nada de novo entre o sol e a terra, o que foi é o que há de ser". Em matéria de arte, sobretudo, você tem que começar a partir das cavernas. Já aí o homem, por uma razão inexplicável... Por que desenhavam? Eles reproduziam a si próprios, e sobretudo a sua caça. Além de tudo, à procura da forma, porque reproduziam de uma maneira perfeita.

Os homens das cavernas desenharam tão bem quanto Michelangelo, um Rafael ou o melhor dos desenhistas dos tempos modernos. Estava presente o mesmo coração antigo. Esta referência é de um grande escritor italiano de origem judaica, Carlo Levi, estou citando o título de um livro dele, O futuro tem um coração antigo. Não existe futuro se não tiver o homem para relatar. O homem foi o passado, é o presente e todo o futuro que nos rodeia.

Então, volto à sua pergunta. Se estas formas não se parecessem com coisa alguma seriam invisíveis, não há possibilidade alguma de o homem criar uma forma nova. Se você olhar para o mundo arcaico, vai encontrar o filão aonde eu fui beber. Qual a fonte de Brennand? Foi a fonte renascentista, foi a fonte grega? Não. Você tem que ir para Creta, para a África, a Oceania, para toda a arte pré-colombiana. Segui aquilo que foi defendido e advogado por um dos maiores pintores da arte moderna, Paul Gauguin. Francês e, para nossa alegria, com ascendência peruana. Portanto, ele é um dos nossos. As fontes, a origem daquilo que busco não está na arte clássica. Existe todo o mundo arcaico e a interpretação de Brennand.

Esta ligação basilar com o arcaico me faz lembrar outra vez de Ariano...
E isto é uma coisa que me é muito grata. Agora, que completo 60 anos de trabalho, Ariano também completa os seus e nós nos encontramos exatamente no momento em que estávamos fazendo, ele, seus primeiros poemas e se preparando para escrever suas primeiras peças de teatro, e eu fazendo meus desenhos e me preparando para entrar no mundo da pintura, em 1945, no colégio Oswaldo Cruz. Ariano já se destacava, muito jovem e conhecedor profundo da língua portuguesa. E veja só a tendência dele, que não era só literatura. Ele interessou-se também por pintura e isso me surpreendeu. Ao mesmo tempo, surpreendeu a ele o conhecimento literário que eu tinha, para um pretenso jovem pintor.

E de onde vem este apreço, já neste começo de conversa você citou vários autores, obras. Além dos poemas e textos inscritos nos murais de sua Oficina.

Sempre tive paixão por literatura. Minha mãe teve uma formação francesa no colégio Sacre Coeur, do Rio de Janeiro, e tinha uma biblioteca enorme. Havia alguns livros de Colette, uma leitura avançadíssima para uma senhora que pretendia o casamento. Inclusive, encontrei um livro de Joseph Conrad, Nostromus, em francês. Mas meu pai também tinha paixão pela literatura e lia Flaubert, Balzac, no original. Além de tudo, fui iniciado em velhas bíblias ilustradas por Gustave Doré, o Dom Quixote de Cervantes, também ilustrado por ele, A História Natural, de Buffon, Varões Ilustres, de Plutarco. Tive uma iniciação literária, mesmo se eu não quisesse, compreende? Além de tudo, minha namorada, futura poetisa Deborah Brennand, era uma pessoa iniciada na literatura por paixão. Ela me fez ficar em dia com a literatura contemporânea. Esta dupla vertente - Ariano Suassuna e minha futura mulher - me deram uma força muito grande para penetrar mais fundo, cada vez mais fundo, no mundo da literatura. E entrando no mundo da literatura, a minha tendência natural para a pintura se acentuou. Foi através de um livro de Somerseth Maughan, Um Gosto e Seis Vinténs, uma biografia ficcional de Gauguin, que se confirmou, de fato, a minha vontade de ser pintor. Dos pintores modernos, foi quem teve, de fato, a vida mais aventurosa.

Gauguin deu as costas à Europa, isto é um fato extraordinário. Ele estava à procura de um mundo primitivo, aliás, primordial. Esta palavra primitivo é um pouco ambígua no mundo moderno. Os egípcios pintavam as figuras de perfil não porque não sabiam pintá-las de frente, tanto que eram magníficos escultores, conheciam a tridimensionalidade. Aquilo fazia parte de uma ordenação estética, talvez mágica. A maneira, que vem de manus, mão, continua a mesma, e inda hoje o objeto valorizado é aquilo que os ingleses chamam hand made. O que há de mais antigo no homem é a maneira do homem, e é o que há de mais moderno: a mão que modifica as coisas. A máquina é o resultado da manipulação do homem, sempre a maneira, o manus, o manuscrito. Ariano está fazendo um livro escrito e decorado a mão. Ele nasceu antigo, por isso é o mais moderno. Este encontro definitivo com Ariano Suassuna foi uma coisa importantíssima na minha formação. E, simultaneamente, ter encontrado a bela mulher com quem me casei e com quem ainda troco idéias a respeito da arte.

Engraçado... Quando eu era premiado em alguma coisa, ele também ganhava um prêmio no seu setor. Ariano, além do grande artista, de uma importância enorme para toda a arte brasileira, é um excelente contador de histórias.

Quando a gente se depara com a sua obra, aqui exposta, monumental, neste cenário, também se percebe uma história sendo contada.
Você acertou em cheio. Veja bem, esta trajetória, que é a de todos os seres humanos, de uma certa forma é eterna, porque mesmo com o desaparecimento de cada um continua a história através dos outros. Você deixa uma marca qualquer, seja através da reprodução, um dos enigmas do universo - aliás, um dos temas que orientam minha arte. Toda minha arte está baseada nisso, no elemento reprodutivo da criação. As coisas são eternas porque se reproduzem.

E esta marca, símbolo da sua Oficina, este ferro, de onde vem?

Isto é africano, não é? É o arco e a flecha de Oxóssi. Escolhi esta marca por uma razão misteriosa, talvez religiosa. Eu não entendia e ainda não entendo nada de religiões africanas mas, como brasileiro, está no meu corpo a raça africana. A nossa religião do Brasil, queiram ou não os católicos, não pode deixar de ser um catolicismo muito brasileiro. Todas as religiões são eternas, que essa é a vocação do sagrado que existe no homem. Um dos grandes erros das doutrinas materialistas foi justamente prescindir de Deus. Não é difícil verificar que não é só de pão que vive o homem. O homem tem vocação para o sagrado, para o desconhecido. Fui pra Salvador há 50 anos. Encontrei, no Mercado de Água de Meninos, antes do incêndio... Vi lá um pedaço de arame carregado de pequenas esculturas, berloques de ferro, que eram vários orixás. Quando cheguei na vez de Oxóssi, parei, dali não saí, nem pra frente nem pra trás, e foi aquele que me acompanhou nesta direção, de volta a Recife. Fiquei hipnotizado pela figura de Oxóssi, este arco e a flecha estilizados. E determinei que seria, definitivamente, a marca do meu ateliê, da minha Oficina. Descobri, com esta flecha que me perseguiu, a magia e o elemento religioso. Mando para um amigo que era designer no Rio, mas pernambucano como eu, recifense como eu, Aloísio Magalhães, que antes de ser a pessoa extraordinária no mundo da política e da cultura foi um designer, pintor, o criador do Gráfico Amador, aqui em Recife, enfim, ele fez de tudo. Com menos de uma semana, Aloísio me manda de volta esta marca. É uma forma perfeitamente inscrita dentro de um triângulo equilátero e toda forma contida num triângulo equilátero é uma forma perfeita. Não havia como meu olho fugir, eu acertei pelos sentidos. Passados 11 anos, José Cláudio da Silva, que morou na Bahia, me escreve uma carta perguntando se eu conhecia a simbologia de Oxóssi. Ele é um iniciado em religião africana, foi um dos quatro artistas brasileiros convidados pelo rei do Benim para ir pintar lá. Oxóssi é um deus inquieto, assim como a criatura humana, sempre à procura de algo que não encontra. É um símbolo viril, está de acordo com toda a verticalidade de minhas esculturas e com uma série de elementos estéticos e religiosos que eu professo.

Falando de sua arte, aqui nesta sala, com suas pinturas ainda no cavalete, os desenhos, os lápis. Você aí tem o domínio total, é senhor do seu trabalho. Mas, quanto à arte em cerâmica, há a ação do fogo, e pode haver uma mudança daquilo que você imaginou...

Conto com ela! No desenho e na pintura eu começo, termino e assino, e lastimo que não passe pelo fogo, porque aí eu estaria a salvo. Porque, se comecei o desenho canhestro e medíocre, ele vai continuar a vida inteira assim. Diz Matisse, o pior inimigo dos pintores são seus maus quadros. Nunca vi uma peça cerâmica minha entrar, normal, no forno - não vou nem chamá-la de medíocre porque é muito desagradável isso. É um Brennand, ainda cru, e vai passar pela grande aventura da chama. Uma peça entra no forno várias vezes, um mural pode entrar 10, 15 vezes. Miró foi daqueles pintores que faziam cerâmicas que me entusiasmavam muito como matéria, porque a cerâmica de Picasso era inigualável. E foi definitiva para me afastar de um preconceito que me deixava inerte. Hesitei em fazer cerâmica, antes de ir pra Europa eu não fiz cerâmica nenhuma, só me interessava por pintura a óleo. Fui pra Europa em 1949, estava com 22 anos. Eu tinha passado pelo crivo de Abelardo da Hora, que trabalhou aqui com meu pai e me ensinou a modelar. Só pra não dizer que não fiz, está vendo o perfil daquela moça? Foi o rosto de Deborah a única coisa que fiz, ela tem um perfil grego. Não moro com ela mas falo com ela todos os dias e é a única mulher com quem sinto alguma proximidade, é quem me dá os conselhos necessários para que eu não erre sempre. Depois de casado, tive várias namoradas, isso infelicitou muito minha mulher, mas como eu podia deixar, se sou um artista e a beleza da mulher é o que mais me influenciava? Hoje não existe mulher que possa competir com ela, as outras todas são acréscimos. Ela é a pessoa que fala minha língua, a única.

Quer dizer que só ao voltar da Europa é que você vai se dedicar à cerâmica? Por quê?

As novas gerações pensam que sou escultor, ninguém se lembra que minha iniciação foi como pintor e nunca deixei de pintar, mas a parte visível do meu trabalho, como um iceberg, era a escultura. Inclusive, porque está aqui dentro deste magnífico espaço, não poderia haver cenário melhor para apresentar uma obra de arte do que este lugar. E até começaram a me chamar de ceramista, foi preciso alguns críticos advertirem que eu sou um escultor que trabalha com barro. Aliás, esculpir é o ato de retirar matéria dura, quando você trabalha com barro você modela, mas o resultado é o mesmo, tridimensional. Na realidade, sou um pintor, meto tinta pra cima, acrescento, eu não retiro. Picasso começou a trabalhar com cerâmica no sul da França, em 1946, um ano depois do fim da II Guerra, coincidindo com um amor novo. Ele tinha deixado Dora Maar, pintora e fotógrafa que o acompanhou no período difícil da dominação alemã na França.

Françoise Gilot, uma pintora de 21 anos, foi visitá-lo no ateliê e, com seus encantos e juventude, conquistou o velho Picasso, nessa época com 60 e poucos anos. Picasso foi-se embora para o Mediterrâneo com Françoise. Nesse período de encantamento, de joie de vivre, de alegria de viver, começou a fazer cerâmica, coisa que ele não havia abordado ainda. Trabalhou durante três anos.

Francisco Brennand sai de Recife, vai à França, e a primeira exposição que teria de ver foi a de cerâmicas de Picasso. Cícero Dias, pintor pernambucano que você não desconhece, me chamou no hotel, vamos ver uma exposição de Picasso?, mas não me disse do que era. Eu tinha saído daqui, de um universo cerâmico ao qual eu dava as costas impertinentemente, de uma forma imperdoável, e ia cair exatamente no centro do mundo para mim, que era Pablo Picasso, o maior dos artistas modernos. Ele me jogou na cara a cerâmica que eu desdenhava. Fiquei envergonhado, a palavra é essa, envergonhado da minha tolice. Eu não era uma pessoa que estava aqui de passagem, eu era filho do dono da fábrica de cerâmica. E embora meu pai dissesse, faça alguma coisa, desenhe este prato, eu preferia pintar um auto-retrato como o Cardeal Inquisidor, um óleo sobre tela, ou então A Primeira Visão da Terra Santa, premiado com o primeiro prêmio no Salão de 1947. E este prêmio me fez desdenhar ainda mais a cerâmica. Eu teria que ter sido castigado, por não ver que a cerâmica era tão grande. Daquele momento em diante, passei a prestar atenção aos outros artistas da Escola de Paris, como Miró, Léger, Matisse e até Gauguin, grande mestre de todos os tempos, que haviam incursionado pelo mundo da cerâmica. Existem 300 cerâmicas de Gauguin que foram expostas em Paris na comemoração do segundo centenário da Revolução Francesa.

E como foi retornar ao Recife, após este virar as costas ao universo que já povoava sua vida, até decidir continuar, ao seu modo, a fábrica que foi de seu pai?

Devo tudo à Escola de Paris, mas acontece que sou brasileiro. Aprendi muito na Europa, mas não desaprendi de ser brasileiro. Chegando aqui adulto, com este museu mais ou menos formado, cheio de peças por todo lado, hoje eu sei a razão, naquela época eu não sabia. Três franceses que vieram aqui me perguntaram, afinal de contas, não estamos vendo muito visível uma marca brasileira no que o senhor faz, mas nomes ligados à mitologia grega, à França, estão aqui Joana d´Arc, Luís XVI, Maria Antonieta, Cirano de Bergerac. Como o senhor determinaria seu lado brasileiro? Eu disse, o mais importante de todos! Eles olharam pra mim, qual? - A liberdade. - Então o senhor quer dizer que na França não existe liberdade? Digo, evidente, mas a própria cultura milenar de vocês é uma servidão. Eu tenho muito mais independência fazendo cerâmica do que fazendo pintura. Eu ousei tudo, daí a minha liberdade, disse aos franceses, exatamente porque estou no espaço brasileiro. Em Paris, vocês não permitiriam.

Se eu chegasse em Paris e tivesse uma fábrica com um espaço como este, que eu iria me apossar solitariamente, iam aparecer 200 parceiros para compartilhar comigo a reconstrução disso. Trabalhei aqui 11 anos só recebi uma visita, a de meu pai. Nem de meus irmãos, de ninguém! Onze anos depois, a desgraça estava feita, não tinha como consertar. Se chegasse um crítico, ou elogiando demais ou criticando, já não teria nenhuma influência, porque já estava consolidado o que eu deveria fazer.

E este templo ou catedral, como diz Ariano, se fez nesse tempo. Havia um plano prévio?

Não gosto de citar a mim mesmo, mas em alguma entrevista ou coisa que escrevi, disse que gosto das idéias abandonadas. Esta fábrica estava em ruínas, portanto, era uma idéia abandonada. Foi uma idéia de meu pai, que era usineiro.

Na época dele, não havia privilégio maior do que herdar uma usina, ele herdou duas. Achou pouco, e era inteligente para verificar, de uma forma premonitória, que a indústria açucareira nordestina estava fadada ao desastre. Quando São Paulo começou a fabricar açúcar e logo em seguida o Paraná, terras descansadas e extremamente férteis, o destino da indústria açucareira nordestina estava traçado. Pois bem, meu pai resolveu, em 1917, com apenas 20 anos, fundar a cerâmica São João da Várzea, para fazer telhas e tijolos. A idéia era fazer porcelana, que ele foi fazer 30 anos depois, em 1947, quando inaugurou a fábrica de porcelana no outro lado do rio Capibaribe, na margem direita. Esta fábrica durou até 1968 e só foi fechada porque meus irmãos, à frente do grupo, achavam que era complexa, de difícil comando, eram 400 operários, um vasto artesanato, tudo feito com a mão de obra retirada da cana, de gente daqui, dos nossos camponeses, cortadores de cana da usina. Depois acrescentado por modeladores portugueses, torneadores, filetadores, decoradores e a parte gerencial com alemães, grandes produtores de porcelana, mas jamais competindo com o que a China, o Oriente fez.

E o que você faz, a partir do barro, como se dele extraísse um outro mundo...

Minha cerâmica é toda pardacenta, ferruginosa, não tenho nenhum vermelho, porque trabalho com 1.400 graus centígrados, a alta temperatura não me permite tirar partido de cores vivas, nem vermelho, nem amarelo, nem laranja, nenhum azul estridente, nenhum preto retinto. Tudo se dissolve numa mistura do pardo-ferruginoso. Mas me habituei a amar estas cores, que estão lá dentro da pedra, no coração da matéria. Eu estava construindo isto com este exagero, esta idéia do demasiado e, achando pouco os espaços, prolonguei, para trás e para os lados, perdi a ponte, isto criou um fosso, lá o mundo industrial, aqui o mundo do artesanato, da mão. Logo que cheguei da França, em 1954, fui chamado por um descendente direto de Jerônimo de Albuquerque, dos poucos que não poderiam dizer que eram bastardos, José Maria Albuquerque, cujo apelido era Zemaria Cavalão, porque era enorme de gordo e comia como um animal. Mas era um homem afeito às artes, e criou, com o poeta Joaquim Cardoso, a famosa Revista do Nordeste. Ele me disse, por que você não faz uma homenagem ao tricentenário da restauração pernambucana? Fiz, recém-chegado da Europa, placas, pratos e algumas alegorias, pela primeira vez abordando o tema da Batalha dos Guararapes. Foi uma previsão do que eu faria alguns anos depois. E descobri que aqui era um território sagrado. Daqui partiu a grande conspiração que levou a Tabocas e Guararapes. O historiador Pereira da Costa diz que partiu da Várzea a grande conspiração, porque estas terras pertenciam a João Fernandes Vieira, o maior proprietário de engenhos na periferia da cidade. E André Vidal de Negreiros, que era paraibano, vendeu suas terras na Paraíba e comprou o engenho São Francisco, colado com Vieira. Diz Pereira da Costa que, entre 1645 e 1654, a Várzea passou a ser a capital de Pernambuco, porque Recife estava em posse dos holandeses e Olinda eles incendiaram.

Houve um tempo, ainda antes do Movimento Armorial, de 1970, que você, Ariano e outros artistas da cidade confabulavam num desses antigos e históricos engenhos.

As nossas reuniões eram no engenho São Francisco, que havia pertencido a André Vidal de Negreiros. E, mais do que nunca, tinha um sentido pra que esta nossa brasilidade aflorasse. Foi quando pintei a Batalha de Guararapes. E sabe qual foi o título que Ariano botou nessas reuniões? Academia dos Emparedados! Porque discutíamos os destinos do mundo e éramos inteiramente ignorados, entre as quatro paredes da velha casa do engenho São Francisco. Sobrevivi a mim mesmo, para ver mais 50 anos da Restauração Pernambucana. E envergonhado em verificar que, atualmente, nem o governo democrático de Jarbas Vasconcelos se apercebeu da importância deste fato. Os portugueses também não comemoraram como fizeram no tricentenário, quando vieram autoridades de Portugal, e achei tímida a participação da colônia portuguesa. O governo foi absolutamente reticente e eu até diria pró-Nassau. Nosso prefeito João Paulo, do Partido dos Trabalhadores, se fantasiou de Maurício de Nassau no Baile Municipal de 2004, e fez uma avenida paralela à Caxangá, com o nome de Maurício de Nassau. Foi inaugurado um busto dele, defronte ao Palácio do Governo. Um primo meu, que inaugurou aqui uma pinacoteca, fez uma exposição de Frans Post, e tem um busto de Nassau no seu jardim. Eu tinha de fazer alguma coisa. Aqui na frente, fiz o obelisco com os quatro heróis e a Praça dos 350 Anos, com versos do poeta cearense, lá do sertão dos Inhamuns, César Leal. Eu já tinha feito a Batalha dos Guararapes, em 61, com poemas de César Leal e Ariano Suassuna, é um mural de 33 metros de comprimento por dois e meio de altura. Aliás, este mural é muito influenciado pela tapeçaria de Bayeux, ou tapeçaria da Rainha Matilde, que fala da Batalha de Hastings, dos normandos contra os ingleses, vencida pelos normandos.

Como você próprio definiria tudo isto que criou aqui, em uma década de solidão?

Tenho a certeza que isto é um templo às artes e um templo da pátria, reafirmada. Isto ainda é uma cidadela ameaçada, porque hoje tem a dominação mais insidiosa, a econômica. Não precisa se gastar um só tiro, nem de festim. Os bancos holandeses estão todos aqui. Meu mural Batalha dos Guararapes estava na parede de um banco brasileiro, encomendado por dois ilustres mineiros, do Brasil lá de cima das montanhas, donos do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Hoje é um banco holandês, o todo-poderoso Amro Bank. O que faz o Amro Bank? Ele está numa ruazinha estreita, a rua das Flores. Na frente tem o Banco Safra, um banco judeu. A rua é totalmente deserta à noite, visitada por mendigos...

Botei o piso com a cerâmica daqui, nesta parte onde tem o painel, e foi feita uma restauração geral na época em que Jarbas Vasconcelos era prefeito. Tiraram os camelôs, eles viveram ali mais de um ano, mas não ao ponto de danificar. Às vezes alguma ponta de pedra, porque nas juntas da cerâmica eles metiam os pregos, mas o dano não foi irreparável, mas fizeram dali uma espécie de mictório. O Amro Bank encontrou a solução ideal. Eles fecharam esta rua com uma estrutura leve de metal e criaram ali uma espécie de pavilhão do Brasil holandês.

Quer dizer: meu mural da expulsão dos holandeses vai ficar aprisionado dentro de um centro cultural do Brasil holandês, veja que apropriação insidiosa! Fui fagocitado pelo poder econômico, que pode tudo.

Foi seu o projeto de fazer a Casa de Cultura no prédio onde funcionou a antiga cadeia?

O doutor Miguel Arraes, com a saída dos presos da Casa de Detenção, me chamou pra fazer daquele espaço um espaço cultural. Trabalhei quatro meses, idealizando a Casa de Cultura, que não foi consumada porque veio a revolução de 64 e este projeto acabou. Mas chamei a Lina Bo Bardi (arquiteta italiana, radicada no Brasil, que projetou o Masp), o Lívio Xavier, antropólogo cearense que conhecia profundamente o artesanato brasileiro. Iríamos fazer da Casa de Detenção não um falso Mercado de São José, mas um museu do desenvolvimento brasileiro. Podia ser balé como tecnologia, esta era a idéia, que foi abaixo porque o governo de Arraes caiu. Logo depois, veio o governo de Nilo Coelho, meu parente, que queria botar o prédio abaixo pra fazer um estacionamento, só não botou por preces de Ariano Suassuna, que foi lá pedir por favor que não fizesse isso, e Nilo acedeu. Depois inauguraram, mas com outro sentido completamente diferente. Aproveitaram os projetos da Lina, mas não os conceitos, os fundamentos. Casa de Cultura é uma conversa, aquilo é um bazar, com falso artesanato.

Lina trabalhou com você na primeira filmagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, em 1968... Ela criando os cenários e você os figurinos.
A Lina era uma amiga de longa data. Minha ligação com São Paulo aconteceu em 1946. Lá, conheci Carlos Pinto Alves e este amigo, mais amigo do meu pai do que meu, me iniciou neste mundo paulista. Aí tive o ensejo de conhecer Pietro Maria Bardi, Paulo Mendes da Rocha, grande arquiteto, Lasar Segall, uma série de pintores. E a Lina. Voltei a frequentá-la em 61, quando da restauração do Solar do Unhão, em Salvador. Ela teve que sair da Bahia pelo fato de ser amiga de todo mundo da esquerda. Quando comecei, em 71, a reforma aqui na cerâmica, foi diante das leis que ela me ensinou, por exemplo, jamais eliminar os traços da trajetória de uma construção. Respeitei, em primeiro lugar, que aqui era uma estrutura fabril, as máquinas deveriam permanecer. Isso, na Europa, eles chamam de arqueologia industrial.

Por falar na Europa, de onde vem seu sobrenome estrangeiro?

Essa gente Brennand veio no século 19, em 1820. O primeiro que chegou no Brasil tinha 16 anos, devia ser um grumete de navio, um camaroteiro. Veio tentar a vida. Este meu trisavô embarcou em Liverpool, a terra dos Beatles, veio de Manchester. Chegou, em Salvador, e desapareceu na voragem do Sul.

Retornou ao Nordeste, descendo em Maceió - e aí é registrada a chegada dele, com 38 anos, Edward Brennand, cidadão inglês, a bordo do navio Martha. O que ele andou fazendo, entre 16 e 38 anos? Ninguém sabe. Em Maceió, logo se estabeleceu, foi convidado por firmas inglesas pra trabalhar, e casou-se com uma rica viúva alagoana. Meu pai não dava atenção a essa ascendência, mas a seus nomes portugueses e até índios, pelo lado de Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque, que não escondia a sua vida devassa, tinha amantes índias e negras. Diz a história que ele teria se engraçado com uma índia, Espírito Santo Arcoverde. O cardeal Arcoverde era um Cavalcanti de Albuquerque.

Pra finalizar, conta um pouco desta sua amizade de 60 anos com Ariano Suassuna.

Nós todos, Ariano, Deborah e eu, temos a mesma idade. Ariano completa no dia 16 de junho, sou do dia 11. Todo sábado, por volta de meio dia e meia, ele fala na televisão (o programa O Canto de Ariano). Quando me homenageou, no último dia 11 de junho (2005), Ariano leu um poema que Carlos Penna Filho tinha dedicado a mim, o soneto A solidão e sua porta, poema esse que me perseguia como uma espécie de destino: "Quando mais nada resistir que valha a pena de viver e a dor de amar/ E quando nada mais interessar (nem o torpor do sonho que se espalha)/ Quando, pelo desuso da navalha, a barba livremente caminhar/ e até Deus em silêncio se afastar, deixando-te sozinho na batalha"... É uma premonição, e durante anos perguntei, por que diabos Carlos Penna, que não tinha grandes amizades por mim, éramos apenas conhecidos, me dedicou este soneto, um verdadeiro calvário - "a arquitetar na sombra a despedida do mundo que te foi contraditório"...? E, de fato, minha vida foi muito contraditória. Ariano recitou isso e, pela voz da amizade, este soneto se transfigurou numa outra coisa e não vai mais me perseguir: "Lembra-te que, afinal te resta a vida, com tudo que é insolvente e provisório. E de que ainda tens uma saída - entrar no acaso e amar o transitório". Foi assim que ele me homenageou e ainda me chamou, de quebra, de grande artista brasileiro. E tão grande quanto os maiores da Europa. Fiquei comovidíssimo.


 



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16/05/2006