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Erorci Santana


Antífona, uma ode ao sol
 

Soares Feitosa, cearense de Ipu, órfão de pai no mesmo dia em que nasceu, e filho único, despertou tardiamente para a poesia, mais precisamente num domingo de setembro de 1993, no limiar dos cinqüenta anos, no dia em que produziu em um só e irrefreável jorro o poema “Siarah”. Até então, não havia cometido um só desses pecados literários. Desde então, vem sendo sistematicamente estuprado e possuído pelas musas, forças obscuras, inexplicáveis que, se por tanto tempo o privaram da criação da poesia, o tornaram escravo delas, num jogo de vassalagem grata e consentida, a ponto de fazer do poeta um de seus principais divulgadores, através de um sítio fundado na Internet, intitulado “Jornal de Poesia. Esse militante da palavra traz agora ao público o objeto deste artigo, Psi, a Penúltima, Edições Papel em Branco, 254 pp., Salvador/BA, conjunto de poemas em livro extraídos de sua obra maior Réquiem em Sol da Tarde, 750 páginas. A presente publicação vem acompanhada de um saquinho de imburana-de-cheiro, torrada a moída pelo próprio poeta. Dupla oferenda, pois, que o livro oferta a expressão maior de seu povo, a poesia, e a erva traz a seiva de sua terra.

Há menos de quatro anos, portanto, do ingresso nas lides do verso, o poeta causa espanto tanto pela quantidade quanto pela qualidade de sua obra, merecedora de um bom número de elogios de escritores qualificados e não menos estarrecidos do que eu diante do fenômeno: Thiago de Mello, Jorge Amado, Gerardo Mello Mourão, Millôr Fernandes, Manoel de Barros, José Louzeiro e César Leal, entre outros.

Após a leitura — e confirmado o refinamento de Soares Feitosa, devo acrescer-me ao coro daqueles que fazem justiça ao poeta com a palavra mais fraterna e concertada, opiniões acertadas de per si e complementares na visão do seu trabalho, que resumidamente apontam o essencial: o surgimento inesperado de um grande poeta, maior na expressão, com a vantagem de não estar poluído pela virtuose, um tipo de recorte estético que tem estragado muito talento genuíno.

A poesia de Soares Feitosa, filha de lenda, brota mesmo das obras recônditas do ser, ali onde se irmano real e o imaginário, e tanto pode ser brutal como também angelical. Mas lembro aos incautos que os anjos, apesar de certo senso que se quer comum, não são apenas seres éticos, arautos da boa nova; que bem filtrado e decantado o mito, Satanás tem lugar privilegiado na formação do burgo celeste e é um conselheiro privilegiado do Senhor da Criação, lógica fundada na necessidade da desordem, sem o que, fraterno leitor, não haveria ordem alguma.

Sem desvios enganadores, anuncio a lavra de Soares Feitosa como “cosa nostra”, concebida com gratidão humana, poesia da qual não se deve permitira desgarragem e o desaparte. Abeberar-se ali, é o que digo!

A leitura encantatória de Rio Macacos reportou-me ao neo-barroquismo de Dantas Mota in “Elegias do País das Gerais”, pela evocação das águas de modo jocoso e irado (Rio?! / quem chamaria aquilo de rio? / era apenas uma grato risível), porque águas escassas, inseridas em áspera paisagem, fio d’água mirrado, ordenado pelas vertentes, cantado com um misto paradoxal de raiva e de orgulho. A realeza dos nadas, como aquela outra louvação das pedras presente em João Cabral ou aquele olhar sujo da escória, de Manoel de Barros, operação alquímica grandiosa, que é mesmo o principal objeto da poesia, transmudar os nadas em tudos, resgatar o caos, refundi-lo para a beleza, ofício divino.

Esse parentesco com Dantas Mota também revelou-se pelo lado recorrente às escrituras judicristãs, com não parcas referências, motes, intertextualidade bíblica, certa orientalização da geografia nordestina, de que é exemplo o belíssimo “Siarah”, magnifica transposição substantiva.

São observações casuais, porém, que não têm a presunção de atrelar esses cantos vigorosos a esse poeta ou àquela modalidade estética. Só quero registrar que o regional e o telúrico na poesia de Soares Feitosa catapultam-se para o universo, mesmo que não mesclassem em sua poesia elementos da tradição greco-latina. O substrato último é a voz do vate-propheta às avessas, que longe de anunciar o futuro, conta o que ocorreu e o que ocorre num mundo paralelo, aparentemente carecedor de interesse, mas pleno de assombro. No poema-título, Psi, a Penúltima, comparece a queixa da raposa-símbolo da tragédia secular dos excluídos, pelagra, faminta, estigmatizada, marginalizada por detrimento dos bichos da mídia, segundo o códice do primeiro mundo.

Em Antífona, a saga do sol, vivo pai dos vivos, personificado e redimido da fúria por um olhar lírico que se diria gorguiano. Sol pujante como aquele retratado por Maiakóvski em a “Extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski, no verão da Datcha, traduzido por Augusto de Campos. Assim o poeta celebra o sol: “volúpia de luz, volúpia de cor, / cavalgava o horizonte e desabava /queda brusca por detrás da serrania; /era quase todas as tardes,/ lá,/que raramente chovia”.

Ali, aonde comparece um dos rios da infância do poeta, o Poti. “Rio velho, cobarde e mentiroso”, que para resultar mais memorável só faltou o poeta dizer que jogava cartas e tomava cachaça. Sempre o retrato das águas em fuga.

Enfim Psi, a Penúltima é poesia que se inscreve no chão geral do universo, no terreiro do planeta, com suas entidades mágicas, lendas, costumes, com a convocação dos gigantes, os deuses da fala, os bardos cantadores, verdadeira teogonia. Poesia e de resgate e aprendizado, pródigos achados no meio daquilo que se julgava inexoravelmente perdido.
 



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"Antífona", de Soares Feitosa

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Cida Sepúlveda